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sábado, 23 de abril de 2011

A RESSURREIÇÃO DO SENHOR

Tal como havia anunciado aos seus ,Jesus ressuscitou. Esse supremo fato já havia sido previsto por David (Sl 15, 10) e por Isaías (Is 11, 10).
São Paulo ressaltará o valor desse grandioso acontecimento: “Se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa pregação, e também é vã a vossa fé” (1 Cor 15, 14). Daí a importância capital da Páscoa da Ressurreição, a magna festa da Cristandade, a mais antiga, e centro de todas as outras, solene, majestosa e pervadida de júbilo: “esse é o dia que o Senhor fez, seja para nós dia de alegria e felicidade” (Sl 117, 24).
Na liturgia, essa alegria é prolongada pela repetição da palavra “aleluia”, pelo branco dos paramentos e pelos cânticos de exultação.
Cristo foi o único que ressuscitou por seu próprio poder
Elias operara a ressurreição do filho da viúva de Sarepta, em casa de quem vivia (1 Rs 17, 17-24). Mais tarde, o mesmo faria Eliseu com o filho de uma sunamita (2 Rs 4, 17-37).
O próprio Salvador, tomado de pena ao encontrar o cadáver da filha de Jairo, ordenou às mulheres que não mais chorassem, pois a menina apenas dormia, tomando-a pela mão, disse: “Menina, eu te ordeno, levanta-te!” Ela se pôs de pé cheia de vida e de alegria.
A compaixão de Jesus pelos sofrimentos humanos se manifestou novamente ao deparar Ele com um enterro, na cidade de Naim. Jesus ressuscitou o filho da viúva.
A mais impressionante de todas as ressurreições operadas por Jesus foi, sem dúvida, a de Lázaro.
Na Sexta-feira Santa, ressurreições numerosas se operaram, concomitantes ao terremoto, às trevas e ao rasgão do véu do templo. Os justos deixaram suas sepulturas, passearam pelas ruas e apareceram a muitas pessoas, certamente para increpá-las pelo deicídio (Mt 27, 52-53).
Ao longo da Era Cristã haverá outras ressurreições: São Pedro fará retornar à vida Tabita (At 9, 36-43); São Paulo, com um abraço, reerguerá da morte o jovem Êutico (At 20,9-12); São Bento devolverá com saúde, a um camponês, o filho, cujo corpo inerte havia sido posto à porta do mosteiro.
Mas, se numerosas foram as ressurreições ao longo dos tempos, no que se distingue especialmente a de Cristo?
Em primeiro lugar, nunca ninguém profetizou seu próprio retorno à vida terrena. Menos ainda pôde alguém operar por seu próprio poder esse milagre tão acima da natureza criada.
“Destruí este templo, e eu o reedificarei em três dias” (Jo 2, 19). Era a maior prova de que Jesus dissera a verdade.
Um aspecto pouco comentado da narrativa da Ressurreição de Jesus
Embora não o tenham afirmado os Evangelistas, é de senso comum, e os bons autores são concordes a este respeito, que Jesus apareceu em primeiro lugar a sua Mãe, logo após a Ressurreição. Na seqüência, apareceu a Santa Maria Madalena (Mc 16,9; Jo, 1117) e, depois, a outras das santas mulheres (Mt 28, 9-10).
Por que motivo teria escolhido as mulheres para Se manifestar, antes dos próprios Apóstolos?
Voltemos nossa atenção para uma passagem do Evangelho muito pouco analisada:
“Passado o sábado, Maria Madalena, Maria, mãe de Tiago, e Salomé compraram aromas para ungir a Jesus. E no primeiro dia da semana, foram muito cedo ao sepulcro, mal o sol havia despontado. E diziam entre si: Quem nos há de remover a pedra da entrada do sepulcro?” (Mc 16, 1-3)
Agiam impensadamente, ou seja, de modo substancialmente imperfeito, por várias razões. Sabiam que o cadáver havia sido ungido dois dias antes. Por que fazê-lo de novo? Ademais, tratava-se do corpo de uma pessoa falecida havia quarenta e oito horas. Por fim, é de bom senso que não se deve violar uma sepultura, qualquer que seja, e as leis romanas não toleravam uma transgressão desse tipo.
Havia dificuldades adicionais, como elas mesmas confessam: “Quem nos há de remover a pedra...?” Naquela hora era improvável que encontrassem homens aos quais pudessem pedir tal serviço. E na hipótese de lá haver alguns, prestar-se-iam a realizar tarefa tão perigosa?
O sepulcro havia sido lacrado com todos os cuidados dos odientos adversários de Jesus, como sabiam os discípulos. Os príncipes dos sacerdotes e os fariseus “asseguraram o sepulcro, selando a pedra e colocando guardas” (Mt 27, 62-66). Como iriam elas convencer as sentinelas a lhes permitirem abrir o túmulo e retirar o cadáver?
E nada indica que elas tenham exposto seus planos a São Pedro e aos outros Apóstolos. É mais uma nota de imperfeição. Agiam por conta própria num assunto que poderia comprometer toda a Igreja nascente. Qualquer violação da sepultura deixaria a incipiente comunidade cristã em complicada situação diante das autoridades judaicas e romanas. O simples fato de chegarem a fazer aos vigias alguma proposta quanto ao cadáver daria razão aos príncipes dos sacerdotes e escribas, que haviam solicitado ao governador romano uma guarda diante do túmulo de Jesus, pois “seus discípulos poderiam vir roubar o corpo e dizer ao povo: Ressuscitou dos mortos”... (Mt 27, 64).
Outra questão de grande peso para a avaliação dos fatos é esta: por que Nossa Senhora não se juntou a elas? Terão perguntado à Mãe de Jesus se estava correto aquele modo de proceder?
Além do mais, elas mesmas não criam na Ressurreição. Do contrário, teriam preferido ficar nas proximidades do Santo Sepulcro, para aguardar os acontecimentos. Igualmente, não lhes teria ocorrido a idéia de embalsamar de novo o corpo, a fim de protegê-lo da agressividade do tempo e da decomposição.
Este juízo parece por demais severo, ainda que apoiado em autores de grande importância. E de fato o é. Acrescente-se a isto que os próprios Apóstolos consideravam a situação com a gravidade que estamos descrevendo. As terríveis notícias sobre os acontecimentos da Paixão do Senhor, que se haviam propagado por todos os lados, e o ódio que podiam sentir pairando no ar, haviam lhes incutido terror até o fundo da alma. Por isto estavam trancados no Cenáculo.
Ora, é precisamente em meio a esse clima de tragédia e pânico que aquele grupo de piedosas mulheres, sem muito refletir sobre as conseqüências de seus atos, resolve sair antes do raiar da aurora...
Apesar da sua imprudência, as mulheres não foram repreendidas
Podemos imaginar a enorme preocupação que tomou a todos no Cenáculo, ao darem por falta dessas mulheres. E também o alvoroço que deve ter havido e os olhares de reprovação, quando elas voltaram para contar o que haviam presenciado no túmulo de Jesus. Apóstolos e discípulos não só não acreditaram na narração, como atribuíram tudo à fértil imaginação feminina: “Mas essas notícias pareciam-lhes como um delírio, e não lhes deram crédito” (Lc 24, 11). Ao narrar o episódio dos discípulos de Emaús, São Lucas lhes coloca nos lábios um lamento sobre tais mulheres, que haviam assustado a todos no cenáculo (Lc 24, 22).
Apenas São Pedro e São João resolveram se mover para certificar-se do que ouviram, e creram em Santa Maria Madalena depois de examinarem o sepulcro de Jesus (Jo 20, 3-8).
No fim de tudo, as próprias mulheres se deram conta do perigo a que se haviam exposto e da imprudência cometida: “Elas saíram do sepulcro e fugiram trêmulas e amedrontadas; e a ninguém disseram coisa alguma (pelo caminho), por causa do medo” (Mc 16, 8). Esta é a reação característica dos imprevidentes: antes do ato, o perigo não existe; após as primeiras configurações deste, o pânico.
Diante desses fatos, tornam-se incompreensíveis as atitudes de Nosso Senhor para com elas. Façamos uma breve recapitulação dos fatos:
1. Por escolha de Jesus, a precedência na pregação do Evangelho cabia aos homens (os doze apóstolos e 72 discípulos). Ora, o mais importante de todos os milagres, o fundamento de nossa fé, a Ressurreição do Senhor Jesus, não é comunicada aos homens em primeiro lugar, mas sim às mulheres. Elas são encarregadas pelo “raboni” de transmitir a Boa Nova para os próprios apóstolos e discípulos, a fim de que estes a anunciem pelo mundo. Por cúmulo, eles nem sequer chegam a lhes dar crédito... (Mc 16, 11).
2. Jesus manda dois Anjos (Lc 24, 4) para lhes comunicar o grande acontecimento (Lc 24, 6; Mc 16, 6; Mt 28, 6). É a primeira vez que no Evangelho deparamos com o termo “ressurreição” após a morte do Senhor.
3. Elas não só não recebem a menor recriminação da parte dos mensageiros celestes, mas são tratadas com enorme bondade e deferência. Um dos Anjos as recebe com palavras carinhosas, procurando logo de início desfazer-lhes o medo e mostrar-lhes que conhecia perfeitamente a alta razão que as movia até ali.
4. Como ficou visto mais atrás, Jesus apareceu a Maria, sua Mãe, logo após sair do sepulcro. Em segundo lugar, a Madalena (Jo 20, 16), com enorme ternura, chamando-a pelo nome. E, em terceiro, às outras mulheres, também com muita bondade, deixando que d’Ele se aproximassem e até osculassem seus pés (Mt 28, 9-10).
O amor puro por Jesus acaba compensando as imperfeições
A esta altura nos perguntamos por que essa diferença de atitude de Jesus, para com elas, de um lado, e para com os Apóstolos, de outro. O trato do Senhor para os Apóstolos é bem descrito por São Marcos: “Finalmente apareceu aos onze, quando estavam à mesa, e censurou-lhes a sua incredulidade e dureza de coração, por não terem dado crédito aos que o viram ressuscitado” (Mc 16, 14). Sua primeira palavra, portanto, segundo o evangelista, é de censura para com eles. Que diferença! Por quê?
Não teria entendido nada dessa sublime lição quem afirmasse que Jesus quis dar preeminência à mulher sobre o homem. Não é este o caso. Na verdade, tais episódios deixam transparecer claramente a essência do Evangelho, que Nosso Senhor havia resumido nos seguintes termos: “Douvos um novo mandamento: amai-vos uns aos outros. Como eu vos tenho amado, assim também deveis amarvos uns aos outros” (Jo 13, 34). É no perfeito amor a Deus e ao próximo que está a síntese do Evangelho.
Era tão grande o amor que aquelas mulheres tinham por Jesus que até seu instinto de conservação havia se definhado, no que significasse ir ao encontro d’Ele. Carregavam imperfeições, mas o amor pelo Senhor era puro. E quando esse amor é assim acrisolado, Cristo mesmo toma sobre si a tarefa de aperfeiçoar as ações que a natureza humana decaída venha a realizar.
Com essa afirmação, não é nossa intenção fazer uma apologia da imprudência enquanto tal, mas ressaltar como as atitudes irrefletidas das santas mulheres do Evangelho eram compensadas pelo puro amor de Deus — a caridade.
É por demais exíguo o espaço destas páginas para discorrer sobre a falsa e a verdadeira prudência. A primeira entrincheira a alma no mero raciocínio e abafa o fervor. Mas nesse episódio do Evangelho vemos premiado o amor, mesmo quando tingido de imperfeição. São Paulo se refere à essa supremacia do amor, ao afirmar de nada valerem o dom das línguas, o de profecia, o de ciência, e outros, sem a caridade (1Cor 13, 1-3).
O fervor é um tesouro
São Tomás transcreve este pensamento de Aristóteles: “Os que são movidos pelo instinto divino são mais audazes...” (1-2 q 45 a3c).
É oportuno lembrar que também o coração do jovem costuma mover-se pelo amor, sobretudo quando arrebatado pelo fervor primaveril. Tal como as santas mulheres, muitas vezes não se guia pela prudência, nem pela razão, mas sim pela audácia. Se se trata de um amor desinteressado e puro, Deus o premia.
Essa chama é um tesouro, que precisa ser tratada com carinho. Cabe aos pais e aos educadores não extingui-la, mas direcioná-la para as sendas do bem e da virtude.
Terminemos estas reflexões com uma explicitação de São Pedro Julião Eymard (1811-1868), fundador da obra da adoração perpétua ao Santíssimo Sacramento e da Congregação Sacramentina:
“Nosso Senhor quer suscitar em nós um amor apaixonado por Ele. Toda virtude ou pensamento que não se torne por fim uma paixão, jamais produzirá algo de grande. (...) O amor só pode triunfar se for em nós uma paixão vital. Sem isso, podemos produzir atos isolados de amor, mas nossa vida não é ganha nem doada. (...)
“Para ser uma paixão, nosso amor deve seguir as leis das paixões humanas. Refiro-me às paixões honestas, naturalmente boas; pois, em si mesmas, as paixões são indiferentes. Fazemo-las más quando as dirigimos para o mal. Depende só de nós utilizá-las para o bem.
 “Quando a paixão domina um homem, concentra-o. Determinado homem quer chegar a uma certa posição honrosa e elevada. Só trabalhará para isto, mesmo que tome dez ou vinte anos, não importa. ‘Chegarei lá’, diz ele. Concentra nisto sua vida. Tudo fica reduzido a servir a este pensamento ou desejo. Deixa de lado tudo o que não o conduza a seu objetivo. (...) Eis como se chega, no mundo, ao que se deseja.
“Essas paixões podem tornarse más, e ai! muitas vezes não são mais que crime contínuo. Mas, enfim, podem ser e são ainda, em si mesmas, honoríficas.
“Sem uma paixão, nada alcançamos. Vivemos sem objetivo, arrastando uma vida inútil. Pois bem, na ordem da salvação, é preciso ter também uma paixão que nos domine a vida e a faça produzir, para a glória de Deus, todos os frutos que o Senhor espera. Amai tal virtude, tal verdade, tal mistério apaixonadamente. Devotai-lhe vossa vida, consagrai-lhe os vossos pensamentos e trabalhos. Sem isso, nada alcançareis, sereis apenas um assalariado que trabalha por empreitada, jamais um herói! (...)
“Olhai os santos. Seu amor os transporta, faz sofrer, abrasa-os; é um fogo que os consome, despende as suas forças e acaba por lhes causar a morte. Mas uma morte feliz! Entretanto, se não chegamos todos a este ponto, podemos pelo menos amar apaixonadamente a Nosso Senhor, e deixar que nos domine seu amor. (...)
“Mas poderíamos dizer: ‘Somos então obrigados a amar assim?’ Bem sei que o preceito de amar deste modo não está escrito. Não é preciso! Nada o diz, mas tudo o clama: esta lei do amor está em nosso coração. (...)
“Alguns dirão: ‘Mas isto é exagero!’ Mas o que é o amor senão o exagero? Exagerar é ultrapassar a lei. E o amor deve exagerar” (S. Pedro Julião Eymard, La Divine Eucharistie). ²

terça-feira, 19 de abril de 2011

As sete palavras de Jesus

Jesus é a Caridade. A perfeição dessa virtude, nós a encontramos nas “Sete Palavras”. As três primeiras têm em vista os outros (inimigos, amigos e familiares); as demais, a Si próprio.
1ª Palavra: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem” (Lc 23, 34)
Pai — É o mais suave título de Deus. Nessa hora extrema, Jesus bem poderia invocá-Lo chamando-O Deus. Percebe-se, entretanto, claramente a intenção do Redentor: quis afastar, dos fautores daquele crime, a divina severidade do Juiz Supremo, interpondo a misericórdia de sua paternalidade. Chega-se a entrever a força de seu argumento: se o Filho, vítima do crime, perdoa, por que não o fazeis também Vós?
É a primeira “palavra” que os divinos lábios d’Ele pronunciam na cruz, e nela já encontramos o perdão. Perdão pelos que Lhe infligiram diretamente seu martírio. Perdão que abarca também todos os outros culpados: os pecadores. Nesse momento, portanto, Jesus pediu ao Pai também por mim.
 Embora não houvesse  fundamento para escusar o desvario e ingratidão do povo, a sanha dos algozes, a inveja e ódio dos príncipes e dos sacerdotes, etc., tão infinita foi a Caridade de Jesus que Ele argumenta com o Pai: “porque não sabem o que fazem”.
A ausência absoluta de ressentimento faz descer do alto da cruz a luminosidade harmoniosa e até afetuosa do amor ao próximo como a si mesmo. Ouvindo essa súplica, chegamos a entender quanta isenção de ânimo havia em Jesus, na ocasião em que expulsou os vendilhões do Templo: era, de fato, o puro zelo pela casa de seu Pai.
2ª Palavra: “Em verdade te digo: hoje estarás comigo no paraíso” (Lc 23, 43)
A cena não podia ser mais pungente. Jesus se encontra entre dois ladrões. Um deles faz jus à afirmação da Escritura: “Um abismo atrai outro abismo” (Sl 41, 8). Blasfema contra Jesus, dizendo: “Se és o Cristo, salva-te a ti mesmo, e salva-nos a nós” (Lc 23, 39).
 Enquanto esse ladrão ofende, o outro louva Jesus e admoesta seu companheiro, dizendo: “Nem sequer temes a Deus, tu que sofres no mesmo suplício? Para nós isto é justo: recebemos o que mereceram os nossos crimes, mas este não fez mal algum” (Lc 23, 40-41).
São palavras inspiradas, nas quais transparecem a santa correção fraterna, o reconhecimento da inocência de Cristo, a confissão arrependida dos crimes cometidos. São virtudes que lhe preparam a alma para uma ousada súplica: “Senhor, lembra-te de mim, quando tiveres entrado no teu Reino!” (Lc 23, 42).
Ao referir-se a Jesus enquanto “Senhor”, o bom ladrão professa sua condição de escravo e reconhece-O como Redentor. O “lembra-te de mim” é afirmativo, não tem nenhum sentido condicional, pois sua confiança é plena e inabalável. Compreende a superioridade da vida eterna sobre a terrena, por isso não pede aquilo que, para o mau ladrão, constitui um delírio: o afastamento da morte, a recuperação da saúde e da integridade.
 O bom ladrão confessa publicamente a Nosso Senhor Jesus Cristo, ao contrário até mesmo de São Pedro, que havia três vezes negado o Senhor. Tal gesto lhe fez merecer de Jesus este prêmio: “Em verdade te digo: hoje estarás comigo no paraíso” (Lc 23, 43).
Jesus torna solene a primeira canonização da história: “Em verdade...”
A promessa é categórica até quanto à data: hoje. São Cipriano e Santo Agostinho chegam a afirmar ter recebido o bom ladrão a palma do martírio, pelo fato de, por livre e espontânea vontade, haver confessado publicamente a Nosso Senhor Jesus Cristo.
3ª Palavra: “Junto à cruz de Jesus estavam de pé sua mãe, a irmã de sua mãe, Maria, mulher de Cleófas, e Maria Madalena. Quando Jesus viu sua mãe e perto dela o discípulo que amava, disse à sua mãe: ‘Mulher, eis aí teu filho’. Depois disse ao discípulo: ‘Eis aí tua mãe’. E dessa hora em diante o discípulo a levou para a sua casa” (Jo 19, 25-27).
Com essas palavras, Jesus finaliza sua comunicação oficial com os homens antes da morte (as quatro outras serão de sua intimidade com Deus). Quem as ouve são Maria Madalena, representando a via da penitência; Maria, mulher de Cleófas, a dos que vão progredindo na vida espiritual; Maria Santíssima e São João, a da perfeição.
Consideremos um breve comentário de Santo Ambrósio sobre este trecho: “São João escreveu o que os outros calaram: [pouco depois de] conceder o reino dos céus ao bom ladrão, Jesus, cravado na cruz, considerado vencedor da morte, chamou sua Mãe e tributou a Ela a reverência de seu amor filial. E, se perdoar o ladrão é um ato de piedade, muito mais é homenagear a Mãe com tanto carinho... Cristo, do alto da cruz, fazia seu testamento, distribuindo entre sua Mãe e seu discípulo os deveres de seu carinho” (in S. Tomás de Aquino, Catena Aurea).
É arrebatador constatar como Jesus, numa atitude de grandioso afeto e nobreza, encerrou oficialmente seu relacionamento com a humanidade, na qual se encarnara para redimi-la. Do auge da dor, expressou o carinho de um Deus por sua Mãe Santíssima, e concedeu o prêmio para o discípulo que abandonara seus próprios pais para segui-Lo: o cêntuplo nesta terra (Mt 19, 29).
É perfeita e exemplar a presteza com que São João assume a herança deixada pelo Divino Mestre: “E dessa hora em diante, o discípulo a levou para a sua casa” (Jo 19, 27). São João desce do Calvário protegendo, mas sobretudo protegido pela Rainha do céu e da terra. É o prêmio de quem procura adorar Jesus no extremo de seu martírio.
4ª Palavra: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Mt 27, 45)
Jesus clama em alta voz. Seu brado fende não somente os ares daquele instante, mas os céus da história. Nossos ouvidos são duros, era indispensável falar com força. Jesus não profere uma queixa, nem faz uma acusação. Deseja, por amor a nós, fazer-nos entender a terrível atrocidade de seus tormentos. Assim mais facilmente adquiriremos clara noção de quanto pesam nossos pecados e de quanto devemos ser agradecidos pela Redenção.
Como entender esse abandono? Não rompeu-se — e é impossível — a união natural e eterna entre as pessoas do Pai e do Filho. Nem sequer separaram-se as naturezas humana e divina. Jamais se interrompeu a união entre a graça e a vontade de Jesus. Tampouco perdeu sua alma a visão beatífica.
Perdeu Jesus, isto sim, e temporariamente, a união de proteção à qual Ele faz menção no Evangelho: “Aquele que me enviou está comigo; ele não me deixou sozinho” (Jo 8, 29). O Pai bem poderia protegê-Lo nessa hora (cfr. Mc 14, 36; Mt 26, 53; Lc 22, 43). O próprio Filho poderia proteger seu Corpo (Jo 10, 18; 18, 6), ou conferir-lhe o dom de incorruptibilidade e de impassibilidade, uma vez que sua alma estava na visão beatífica.
Mas assim determinou a Santíssima Trindade: a debilidade da natureza humana em Jesus deveria prevalecer por um certo período, a fim de que se cumprisse o que estava escrito. Por isso Jesus não se dirige ao Pai como em geral procedia, mas usa da invocação “meu Deus”.
A ordem do universo criado é coesa com a ordem moral. Ambas procedem de uma mesma e única causa. Se a primeira não se levanta para se vingar daqueles que dilaceram os princípios morais por meio de seus pecados, é porque Deus lhe retém o ímpeto natural. Se assim não fosse, os céus, os mares e os ventos se ergueriam contra toda e qualquer ofensa feita a Deus. Mas como frear a natureza diante do deicídio? Por isso, na hora daquele crime supremo, “cobriu-se toda a terra de trevas”... (Mt 27, 45).
5ª Palavra: “Tenho sede.” (Jo 19, 28)

Assinala o evangelista que Jesus dissera tais palavras por saber “que tudo estava consumado, para se cumprir plenamente a Escritura”. Vendo um vaso cheio de vinagre que havia por ali, os soldados embeberam uma esponja, “e fixando-a numa vara de hissopo, chegaram-lhe à boca” (Jo 19, 28-29).
Cumpria-se assim o versículo 22 do salmo 68: “Puseram fel no meu alimento; na minha sede deram-me vinagre para beber”.
Qual a razão mais profunda desse episódio? É um verdadeiro mistério.
Jesus derramara boa quantidade de seu preciosíssimo Sangue durante a flagelação. As chagas, em via de cicatrização, foram reabertas ao longo do caminho e ainda mais quando Lhe arrancaram as roupas para crucificá-Lo. O pouco sangue que Lhe restava escorria pelo sagrado lenho. Por isso, a sede tornou-se ardentíssima. Além desse sentido físico, a sede de Jesus significava algo mais: o Divino Redentor tinha sede da glória de Deus e da salvação das almas.
 E o que lhe oferecem? Um soldado lhe apresenta, na ponta de uma vara, uma esponja empapada de vinagre. Era a bebida dos condenados.
Podemos de alguma maneira aliviar pelo menos esse tormento de Jesus? Sim! Antes de tudo, compadecendo-nos d’Ele com amor e verdadeira piedade, e apresentando-Lhe um coração arrependido e humilhado.
Devemos querer ter parte nessa sede de Cristo, almejando acima de tudo à nossa própria santificação e salvação, com redobrado esforço, de modo a não pensar, desejar ou praticar algo que a Ele não nos conduza. Para Ele será uma água fresca e cristalina nossa fuga vigilante das ocasiões próximas de pecado. Compadeçamo-nos também dos que vivem no pecado ou nele caem, e trabalhemos por sua salvação. Em suma, apliquemo-nos com ânimo na tarefa de apressar o triunfo do Imaculado Coração de Maria.
O Salvador clama a nós do alto da cruz que defendamos, mais ainda que o bom ladrão, a honra de Deus, procurando conduzir a opinião pública para a verdadeira Igreja. É nosso dever buscar entusiasmadamente a glória de Cristo, “que nos amou e por nós se entregou a Deus como oferenda e sacrifício de agradável odor.” (Ef 5, 2).
6ª Palavra: “Tudo está consumado.” (Jo 19, 30)
A Sagrada Paixão terminara e, com ela, a pregação. Todas as profecias haviam se cumprido, conforme interpreta Santo Agostinho: a concepção virginal (Is 7, 14); o nascimento em Belém (Mq 5, 1); a adoração dos Reis (Sl 71, 10); a pregação e os milagres (Is 61, 1; 35, 5-6); a gloriosa entrada em Jerusalém no dia de Ramos (Zc 9,9) e toda a Paixão (Isaías e Jeremias).
Na Cruz foi vencida a guerra contra o demônio: “Agora é o juízo deste mundo; agora será lançado fora o príncipe deste mundo” (Jo 12, 31). No paraíso terrestre, o demônio adquirira de modo fraudulento a posse deste mundo, com o pecado de nossos primeiros pais. Jesus a recuperou como legítimo herdeiro.
Consumado também estava o edifício da Igreja. Este iniciou-se com o batismo no Jordão, onde foi ouvida a voz do Pai indicando seu Filho muito amado, e se concluiu na cruz, na qual Jesus comprou todas as graças que serão distribuídas até o fim do mundo através dos sacramentos.
Para que o preciosíssimo Sangue do Salvador ponha fim ao império do demônio em nossas almas, é preciso que crucifiquemos nossa carne com seus caprichos e delírios, combatendo também o respeito humano e a soberba. Jesus nos abriu um caminho que, aliás, todos os santos trilharam.
7ª Palavra: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito.” (Lc 23, 46)
Estabeleceu-se na Igreja, desde os primórdios, o costume de encomendar as almas dos fiéis defuntos, a fim de que a luz perpétua os ilumine.
Jesus, porém, não tinha necessidade de encomendar sua alma ao Pai, pois ela havia sido criada no pleno gozo da visão beatífica. Desde o primeiro instante de sua existência, encontrava-se unida à natureza divina na pessoa do Verbo. Portanto, ao abandonar o corpo sagrado, sairia vitoriosa e triunfante. “Meu espírito”, e não alma, provavelmente aqui significaria a vida corporal de Jesus.
Mas Jesus aguardava sua ressurreição para logo. Ao entregar ao Pai a vida que d’Ele recebera, sabia que ela Lhe seria restituída no tempo devido. Com reverência tomou o Pai Eterno em suas mãos a vida de seu Filho unigênito, e com infinito comprazimento a devolveu, no ato da ressurreição, a um corpo imortal, impassível e glorioso. Abriu-se, assim, o caminho para a nossa ressurreição, ficando-nos a lição de que ela não pode ser atingida senão pelo calvário e pela cruz. AVE CRUX, SPES UNICA.