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sábado, 29 de outubro de 2011

A morte, fim de todas as quimeras

26Não os temais, pois, porque nada há encoberto que não se venha a descobrir, nem oculto que não se venha a saber. 27

Vivemos nesta terra em estado de prova e de passagem. Tão precária é nossa situação que nos enganamos facilmente mesmo a propósito do tempo, vivendo como se nossa permanência neste mundo fosse eterna. Não é raro cruzar pela nossa mente aquele sonho da possível descoberta do elixir da longa vida, ou do elixir da própria imortalidade. Muitos prefeririam estender ao infinito os limites de sua existência terrena, transformando-a numa espécie de Limbo perpétuo, quer dizer, um tipo de vida no qual pudessem ter felicidade natural, sem nenhum vôo de espírito. Esses participam, consciente ou inconscientemente, de um culto implícito que poderia muito bem ser rotulado de limbolatria.
A morte, com sua implacabilidade e trágica realidade, põe fim a essas quimeras, e retira de nossos olhos os óculos que falseiam a visão do universo criado e do relacionamento de cada um de nós com o próximo e com Deus. Ademais, a morte traz consigo o Juízo divino: “Nada há encoberto que não se venha a descobrir” (v. 26).
Aqueles de nós que se entregam ao pecado, fazem-no muitas vezes às escondidas, longe da vista alheia, por causa do sentimento de vergonha, esquecendo-se de que não podem se esconder da vista de Deus, pois n’Ele fomos criados, n’Ele existimos e n’Ele nos movemos, segundo ensina São Paulo (2). Nada escapa à lembrança de Deus. Pensamentos, desejos, palavras, silêncios, atos e omissões de cada um de nós, segundo por segundo, são conhecidos por Deus: “Até os próprios cabelos de vossa cabeça estão todos contados” (v. 30).
É sobre isso que Jesus nos fala no Evangelho de hoje: tudo quanto houver de mais oculto será descoberto, e todos conhecerão tudo de todos.
Dois serão os momentos da verdade: o do Juízo Particular e o do Final. Não haverá contradição entre um e outro, nem sequer será um a revisão do outro, mas, sim, uma confirmação. Nossas ilusões, como também nossas faltas ou virtudes, sempre têm não só uma repercussão social, mas até mesmo efeitos correlacionados com a ordem do universo. Desse modo, ao homem como indivíduo cabe um juízo particular e, enquanto membro de uma sociedade, um juízo universal.
O Juízo Particular
Não estaremos a sós nem sequer no Juízo Particular, pois Deus, a Verdade em sua essência, estará presente. Nessa ocasião reveremos todas as nossas impressões, apreços, ânsias, raciocínios, etc., pelo prisma da Verdade, que se apresentará majestosa diante de nós. Nessa hora, de que nos adiantarão as honras, as riquezas, os prazeres, os romantismos e coisas do gênero? Terrível será comparecer a esse Juízo em estado de pecado, sem o devido arrependimento e sem ter recebido o Sacramento da Reconciliação. Terrível, porque não haverá mais tempo para implorar perdão.
Que Deus não nos permita cair em tal situação. Quem tivesse essa desventura, veria até mesmo os méritos da Paixão e Morte de Cristo — entretanto colocados à nossa disposição para salvar-nos — levantando-se contra si para condenar. O bom e misericordioso Jesus, todo feito de suavidade, estaria a invocar o seu Preciosíssimo Sangue, derramado todo na Cruz, como motivo de condenação, para lançar o infeliz imediatamente no inferno.
Aqueles que um dia clamaram: “Caia o seu sangue sobre nós e sobre nossos filhos” (Mt 27, 25), assistiram anos depois à tremenda catástrofe da destruição de sua amada Jerusalém. Castigo análogo e infinito se precipitaria sobre nós se caminhássemos ao encontro de Jesus sem estarmos devidamente em ordem. Ah! se tivéssemos sempre claro aos nossos olhos que, com nossos pecados, preparamos o dia da cólera divina, seríamos santos. Quanto mais pecamos, mais ira acumulamos sobre nossa cabeça e mais implacável será nosso Juízo. O versículo 26 do Evangelho de hoje nos traz uma advertência no sentido de jamais cometermos pecado, e, se por desgraça cairmos, de procurarmos sem tardança a reconciliação com Deus. Hodie si vocem eius audieritis, nolite obdurare corda vestra — “Se hoje ouvirdes a sua voz, não endureçais os vossos corações” (Hb 3, 15).
O Juízo Final
Sob o prisma da repercussão social do pecado, é indispensável até mesmo para a plenitude do triunfo de Cristo a realização de um juízo universal.
Jesus fez-se Homem com uma doçura insuperável; é impossível haver maior manifestação de humildade, pobreza e misericórdia do que a d’Ele. Seu desejo de derramar todo o seu sangue para salvar a humanidade, elevá-la a um plano divino e, assim, abrir-lhe um caminho seguro, feliz e santo para a eternidade, realizou-se com perfeição.
Indo em sentido oposto, a maior parte da humanidade pisou sobre esse sangue, preferindo as vias do pecado e dos prazeres ilícitos. Por isso, o valor infinito dos méritos do sacrifício do Calvário impõe a realização de um juízo universal, a fim de “recapitular todas as coisas em Cristo” (Ef 1, 10). Se Cristo foi publicamente ofendido, é indispensável que também de maneira pública sejam proclamados seu poder, honra e glória. Antes de se iniciar uma nova “era histórica” — a da eternidade, na qual todos viverão ressurrectos, em corpo e alma, alguns na glória, outros condenados ao inferno — será necessário ficar claro para todos o quanto o livre arbítrio não significa a liberdade de praticar o mal, de pensar e abraçar o erro e de cultuar o feio. Todos devem ver também com toda a evidência que o prêmio dos bons vem do fato de submeterem sua vontade a Cristo, motivo pelo qual são chamados a reinar com Ele nos Céus.
O Juízo Final tem, ademais, um importante papel no tocante à vida social, pois facilmente nos equivocamos julgando que a morte encerra de maneira cabal a presença e a ação do homem sobre a terra. Tanto uma como a outra continuam de um modo indireto.
Assim, não é raro acontecer que a boa ou má fama de um falecido contrária à verdade, permaneça na lembrança de eras históricas inteiras. Às vezes, filhos maus de pais bons tornam equívoca a interpretação dos atos de seus progenitores, e vice-versa. Por mais que haja um violento corte entre a vida no tempo e a passagem para a eternidade, não poucas vezes os efeitos das obras boas ou más realizadas aqui, continuam a repercutir por longos anos.

Continua no próximo post com um exemplo

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Ódio dos fariseus contra o Divino Mestre

O demônio, ente de natureza angélica, foi criado por Deus na verdade. Nesta ele se conduzia em seu estado de prova, que consistia em restituir ao Criador o ser, os dons e as qualidades d’Ele recebidos, prestando- Lhe um justo culto de latria. Foi exactamente o caminho que, a certa altura, esse anjo de luz resolveu abandonar por livre vontade, penetrando nas trevas da morte, do pecado e da mentira. Foi ele o primeiro a abrir o passo na ruptura com a ordem do universo e, sobretudo, com o próprio Deus, liderando a oposição contra o Supremo Legislador. Revoltou-se e rejeitou o convite a ser luz em Deus, para ser mentira em si mesmo; por pura presunção, quis ser deus por si próprio, deixando de sê-lo por participação; preferiu a adoração de sua natureza tirada do nada, para assim obter o eterno desprezo de Deus.
Esse é o diabo! E os fariseus são seus filhos, segundo a voz infalível do Divino Mestre.
Antagonismo entre Jesus e os fariseus
Os Evangelhos se encontram embebidos de ponta a ponta de uma radical oposição entre Jesus e os fariseus. Esse antagonismo tem seu início já com o Precursor, tão procurado pelos judeus por sua fama de santidade e de profetismo. Assim tratou João Batista os fariseus (como também os saduceus), antes mesmo do aparecimento do Messias: “Raça de víboras, quem vos ensinou a fugir à ira que vos ameaça? Não vos justifiqueis interiormente, dizendo: Temos Abraão por pai!” (Mt 3, 7.9).
De sua parte, o próprio Jesus — ao declarar os parâmetros, doutrinas e metas apostólicas da ação a ser por Ele desenvolvida — tornou patente a impossibilidade de uma aproximação ou harmonia com os fariseus. O sermão das bem-aventuranças coloca em equilíbrio claro e definido os princípios ético-morais adotados por Jesus, em sua maioria em contraposição aos dos fariseus. Seria ingenuidade imaginarmos ter sido a inveja a causa do ódio deicida dos fariseus contra nosso Redentor. Bem poderá ter concorrido, como um dos componentes da sanha demolidora, esse vício capital, mas a dissensão teve como base duas concepções diferentes, e até excludentes, de caráter religioso-político.
Ególatras e aproveitadores, os fariseus rejeitam a Deus
Os fariseus haviam reduzido a religião a uma escrupulosa observância de micro-preceitos, em detrimento da prática da verdadeira Lei: “Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, que pagais o dízimo da hortelã, do endro e do cominho, e desprezais os preceitos mais importantes da Lei: a justiça, a misericórdia, a fidelidade! (...) Guias cegos, que filtrais um mosquito e engolis um camelo!” (Mt 23, 23-24). E isso se dava, entre outras razões, devido à grande presunção na qual estavam submersos, como é fácil de notar na parábola do fariseu e do publicano, elaborada pelo Divino Mestre a respeito de “uns que confiavam em si mesmos por se considerarem justos, e desprezavam os outros” (cf. Lc 18, 9-14). A eles não era alheia tampouco a avareza. Para fazermos uma ideia aproximada desse fundo de maldade, basta relembrarmos a parábola do administrador infiel, ao fim da qual relata-nos o Evangelista: “Ora, os fariseus, que eram amigos do dinheiro, ouviam todas estas coisas e troçavam d’Ele. Jesus disse-lhes: ‘Vós sois aqueles que pretendeis passar por justos diante dos homens, mas Deus conhece os vossos corações; o que é excelente segundo os homens é abominação diante de Deus’” (Lc 16, 14-15). Por terem se constituído como centro de suas próprias preocupações, por serem ególatras e, portanto, por terem dado as costas a Deus, abusavam dos poderes espirituais, deles se aproveitando para entesourar bens materiais.
Essa rejeição a Deus, que é tão recriminada por Jesus, constitui um dos grandes pecados dos fariseus: “Sei que não tendes em vós o amor de Deus. Vim em nome de meu Pai, e vós não Me recebeis. Se vier outro em seu próprio nome, recebê-lo-eis” (Jo 5, 42-43). E por não praticarem o amor a Deus, também não o praticam em relação ao próximo: “Se vós soubésseis o que quer dizer: ‘Quero misericórdia e não sacrifício’, jamais condenaríeis inocentes” (Mt 12, 7). Mais ainda transparece essa carência de bondade dos fariseus na parábola do bom samaritano, na qual o levita e o sacerdote são condenados pela falta de misericórdia com seu irmão, enquanto o samaritano foi apontado como modelo a seguir: “Vai e faze o mesmo” (Lc 10, 30-37).
Invectivas de Jesus
As discussões de Jesus com os fariseus foram se tornando cada vez mais tensas e increpantes. Ao longo delas, Ele os desqualificava de forma violenta, chamando-os de filhos do diabo e imitadores de seu pai, homicidas e ladrões, víboras, e várias vezes de hipócritas. Sobre este último qualificativo, e mais especificamente a respeito das recriminações transcritas no capítulo 23 de Mateus, alguns exegetas chegam a classificá-lo como o sermão das oito maldições, em contraposição ao das oito bem-aventuranças. Segundo esses exegetas, com um sermão Mateus abre, no seu Evangelho, a narração da vida pública de Jesus, e com o outro o encerra.
A cada passo, Jesus os vai colocando em contradição com eles mesmos a propósito de suas atitudes e doutrinas. Aliás, sempre que Deus deixa de constituir o centro das preocupações, pensamentos e ações de alguém, ou de um grupo social, pouco tardará para surgirem as contradições, pois quando falha a premissa maior, comprometida está a substância do silogismo. Seria por demais extenso recordar os triunfos de Jesus sobre os fariseus, um a um. É suficiente trazer à tona o caso da cura de um hidrópico em dia de sábado, na residência de um fariseu. Nosso Senhor os invectiva: “Qual de vós, se o seu filho ou seu boi cair num poço, não o tirará imediatamente ainda que seja em dia de sábado?” (Lc 14, 5).
Essas atitudes tão categóricas e peremptórias de Jesus contra os fariseus têm inteiro fundamento, pois eram eles verdadeiros lobos revestidos de pastores. Não se cansavam de caluniar o Divino Mestre, devotando-Lhe uma forte antipatia. Acusavam-nO de estar possuído pelo demônio, de se deixar envolver por pessoas de má vida, de quebrar a lei do sábado, etc. Ademais, não poupavam esforços para deturpar os fatos e as palavras proferidas pelo Divino Mestre, como, por exemplo, no caso da expulsão do demónio que tornava surdo e mudo um pobre homem. Caluniavam-nO, afirmando que o exorcizara e o curara em virtude do poder de Belzebu.
Fúria dos fariseus
Essa oposição, sorrateira a princípio, foi paulatinamente se tornando cada vez mais patente, categórica e pública, a ponto de produzir uma cisão na opinião geral do povo judeu. Por um lado, a maioria se perguntava se de fato não era Jesus o Messias, julgando impossível alguém ser capaz de realizar mais milagres do que Ele. Por outra parte, esse crescente murmúrio levou os fariseus a apoiarem os príncipes dos sacerdotes quando estes decretaram a prisão do Salvador. Entretanto, os próprios guardas afirmavam: “Nunca homem algum falou como este homem “, e não quiseram prendê-lO (Jo 7,46).
Se o ódio dos fariseus contra Jesus se manifesta tão radical no fim do capítulo sétimo do Evangelho de São João, o término do oitavo é ainda mais carregado: “Então pegaram em pedras para Lhe atirarem; mas Jesus ocultou-Se e saiu do templo” (Jo 8, 59). No capítulo seguinte, depois da cura de um cego, os fariseus enfurecidos lançam este último fora da sinagoga, aos insultos, acusando-o de ser discípulo de Jesus. O capítulo 10 nos relata uma nova tentativa frustrada de prender o Divino Mestre. O auge dessa cólera se verifica após a ressurreição de Lázaro: “Desde aquele dia tomaram a resolução de O matar” (Jo 11, 53)
Dir-se-ia que, ao crucificarem Jesus, estariam satisfeitos. Esse não foi o resultado. Príncipes dos sacerdotes e fariseus exigiram de Pilatos uma vigilância cerrada junto ao túmulo, a fim de que fosse evitado o roubo do corpo de Jesus, e em seguida selaram a pedra do sepulcro, deixando ali dois guardas.
Em seus traços gerais, esta é a realidade do ódio dos fariseus contra o Divino Mestre.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

O pobre e o rico IV

Invertendo os papéis na Parábola
Pode-se perguntar: vai-se para o inferno pelo simples fato de ser rico? No Céu, só entram os mendigos? Toda riqueza é um mal e toda miséria, um bem?
Neste trecho de Lucas, encontramos a descrição de uma condenação e de uma salvação. As penas eternas aplicadas ao avarento são devidas ao mau uso das riquezas, pois estas, de si, são neutras, nem boas, nem más. Depende do uso que delas se faça. O mesmo se deve dizer da pobreza, não é ela boa, nem má. Para qualificá-la é necessário saber com que disposição interior foi aceita.
Assim, para maior clareza de análise, invertamos os papéis das duas figuras principais da Parábola. Imaginemos o rico cheio de compaixão por Lázaro, a ponto de contratar um médico para curar-lhe as chagas, comprar-lhe os remédios, conseguir-lhe um bom abrigo e proporcionar-lhe deliciosos alimentos. Ademais, procurando cercá-lo de afectuosas atenções, chegando a rezar várias vezes ao dia por sua saúde, como também por sua eterna salvação.
Por outro lado, suponhamos um Lázaro que teria a alma mais ulcerada do que seu corpo, pois se consumiria de inveja dos bens do rico e, revoltado contra tudo, contra todos e contra o próprio Deus, cobriria de injúrias o seu benfeitor, desejando-lhe a desgraça e até a morte. A cada ato de comiseração e estima da parte do rico, corresponderia uma reação mal-educada e ressentida de Lázaro. Este só se acalmaria quando obtivesse toda a fortuna daquele, e, para isto, estaria disposto a instigar seu ódio em muitos outros.
Se, nesse estado de alma, morressem ambos, qual seria o destino eterno de cada um?
Não há a menor dúvida: Lázaro iria para os “tormentos do inferno” e o rico seria “levado pelos Anjos ao seio de Abraão”.
Confirmando esta suposição, ouçamos o comentário feito por São João Crisóstomo: “Os Anjos serviram e levaram o pobre e o colocaram no seio de Abraão, porque ele, apesar de ter vivido desprezado, não havia se desesperado, nem blasfemou dizendo: ‘Este rico goza vivendo na opulência e não padece tribulação, e eu não posso alcançar o alimento necessário’”6.
Quanto precisamos ter sempre presente diante dos nossos olhos esta Parábola, a fim de bem sabermos nos servir, sem apego, das riquezas e aceitarmos com paciente resignação as dores, provações e contingências da vida!
Essa é a fundamental lição para todos os tempos: o bom relacionamento entre ricos e pobres, e de ambos com Deus, no uso dos bens ou na aceitação das situações constrangedoras pelas quais passem.
Como andará o mundo de hoje nessa matéria? Haverá ainda Lázaros de alma? Existirão ainda os ricos de espírito? E qual será o destino eterno de uns e de outros?
“PREGAI TODA A VERDADE SOBRE O INFERNO”
O texto evangélico narra-nos a seguir um tal tormento do rico entre as chamas eternas, que uma simples gota de água seria suficiente para lhe refrescar a língua. Um abismo separa os dois mundos, o Céu do inferno. Será real essa tragédia?
A Revelação é abundante nessa matéria: “Qual de nós poderá habitar no fogo devorador, nas chamas eternas?” (Is 33, 14). O Evangelho nos fala quatorze vezes sobre o inferno com expressões categóricas como estas: “fogo inextinguível” (Mc 9, 43), “... o seu verme não morre e o fogo não se apaga...” (idem, 48); “...e lança-los-ão na fornalha de fogo. Ali haverá choro e ranger de dentes” (Mt 13, 42). E o Apocalipse: “Serão lançados vivos no abismo abrasado de fogo e enxofre para ser atormentados noite e dia por todos os séculos dos séculos” (20, 10).
Por isso, o condenado da parábola roga a Abraão mandar Lázaro à sua casa paterna para convencer os cinco irmãos sobre o “lugar de tormentos”, no qual ele se encontra para todo o sempre. Segundo seu critério, o ideal seria que “alguém do mundo dos mortos fosse ter com eles” para adverti-los sobre os horrores do castigo eterno, pois só assim se converteriam.
Abraão é muito incisivo em sua resposta, declarando que também os outros cinco irmãos acabariam por ser lançados no inferno, se não acreditassem em Moisés e nos profetas.
Segundo pode-se deduzir desses versículos, até o precito da Parábola julga indispensável explicar a existência do inferno. E, de fato, esse é o empenho dos Santos e do próprio Magistério infalível da Igreja, como declarou em certa ocasião o Bem-Aventurado Papa Pio IX: “Pregai muito as grandes verdades da salvação, pregai sobretudo o inferno; nada de meias palavras, dizei, clara e altamente, toda a verdade sobre o inferno. Nada é mais capaz de fazer refletir e de conduzir a Deus os pobres pecadores”.
Bem clara é também a linguagem de nosso catecismo atual: “O ensinamento da Igreja afirma a existência e a eternidade do inferno. As almas dos que morrem em estado de pecado mortal descem imediatamente após a morte aos infernos, onde sofrem as penas do inferno, ‘o fogo eterno’. A pena principal do inferno consiste na separação eterna de Deus, o Único em quem o homem pode ter a vida e a felicidade para as quais foi criado e às quais aspira”.
Sobre a eficácia da crença nos fogos eternos, um dos grandes escritores do séc. XIX, o Pe. Frederick W.Faber, afirmava: “A mais fatal preparação do demónio para a vinda do anticristo é o esmorecimento da crença dos homens no castigo eterno. Se fossem estas as derradeiras palavras por mim a vós dirigidas, lembrai-vos de que nada eu quereria imprimir tão profundamente em vossas almas, nenhum pensamento de fé — após o do Preciosíssimo Sangue — vos seria mais útil e proveitoso do que sobre o castigo eterno.”
Lembremo-nos sempre de como nossa morte pode ser súbita e quão necessário é vivermos nas disposições de alma de Lázaro, na maior resignação face aos infortúnios, desapegados dos bens deste mundo, fortes na oração, na prática da Religião e da virtude, ardorosos devotos da Mãe de Deus, para assim gozarmos da felicidade eterna.

domingo, 23 de outubro de 2011

O pobre e o rico III

O inferno, consequência do pecado
Lucas nos fala dos “tormentos do inferno”. Sabemos pela Revelação o quanto são eles terríveis. Acima de todos os sofrimentos está a pena de dano: o fato de ter sido criado para participar da felicidade do próprio Deus e ver-se por Ele rejeitado, é o maior dos tormentos. Daí surgem duas reacções no condenado: a primeira consiste em querer destruir a Deus para pôr fim às suas angústias; a segunda, em desejar sua própria aniquilação. Ora, como ambas são irrealizáveis, a consequência é o desespero eterno.
A esse incomensurável sofrimento se acrescenta o dos sentidos. A Revelação não deixa margem a dúvidas sobre a realidade do fogo do inferno e de sua natureza corpórea. Queimando os corpos sem consumi-los, quem o sustenta sempre aceso é o próprio Deus. Os cinco sentidos são atormentados de maneira especial em relação aos pecados correspondentes.
Na sua santidade de modelo sacerdotal, São João Maria Batista Vianney tece algumas piedosas considerações muito úteis para se compreender o porquê foi o rico parar no inferno: “Meus filhos, se vísseis um homem fazer uma grande fogueira, empilhar pedaços de lenha uns sobre os outros e, perguntando-lhe o que estava fazendo, ele vos respondesse: ‘Estou preparando o fogo que me deverá queimar’, que pensaríeis? E se vísseis esse mesmo homem aproximar-se da fogueira já acesa e atirar-se nela... que diríeis? Cometendo o pecado, é assim que fazemos. Não é Deus que nos lança no inferno, somos nós que nele nos lançamos pelos nossos pecados. O condenado dirá: ‘Perdi a Deus, minha alma e o Céu; foi por minha culpa, por minha máxima culpa!’... Elevar-se-á do braseiro para tornar a cair nele... Sentirá sempre a necessidade de se elevar, porque era criado para Deus, o maior, o mais alto de todos os seres, o Altíssimo... como uma ave num aposento voa até o teto que detém os condenados.
“Adiamos a nossa conversão para a hora da morte; mas quem nos assegura que teremos o tempo e a força nesse momento terrível, receado por todos os Santos, quando o inferno se congrega para desferir-nos o último assalto, vendo que é o instante decisivo?
“Muitos há que perdem a fé, e só crêem no inferno, nele entrando. “Não, sem dúvida, se os pecadores pensassem na eternidade, nesse terrível ‘sempre!’ ... haveriam de se converter imediatamente...”.
Quantas e quantas vezes o rico não deve ter sentido, dentro de si, a voz da consciência recriminando-lhe o apego desregrado pelas roupas, pelos prazeres excessivos da mesa e, sobretudo, pelo dinheiro! Lázaro à sua porta era um dom de Deus, estimulando-o à prática da caridade e, ao mesmo tempo, à compreensão do vazio das criaturas. Mas ele preferiu os bens deste mundo a ponto de dar as costas a Deus. Daí entender-se melhor os versículos 22 a 26:
Morreu também o rico, e foi sepultado. Quando estava nos tormentos do inferno, levantando os olhos, viu ao longe Abraão e Lázaro no seu seio. Então exclamou: Pai Abraão, compadece-te de mim, e manda Lázaro que molhe em água a ponta do seu dedo para refrescar a minha língua, pois sou atormentado nestas chamas”. Abraão disse-lhe: “Filho, lembra-te que recebeste os teus bens em vida, e Lázaro, ao contrário, recebeu males; agora é ele aqui consolado e tu és atormentado. Além disso, há entre nós e vós um grande abismo; de maneira que os que querem passar daqui para vós não podem, nem os daí podem passar para nós”.
Torna-se patente o empenho do Divino Mestre, tão bem transcrito por Lucas, em alertar os cristãos de todos os tempos para os castigos eternos, como consequência de uma vida transcorrida no pecado, e, em extremo oposto, a alegria com que será premiada a virtude após a morte.
Por isso, o Magistério da Igreja sempre fez eco à voz de Jesus, como, por exemplo, nestas palavras de João Paulo II: “Até mesmo no campo do pensamento e da vida eclesial, algumas tendências favorecem inevitavelmente o declínio do senso do pecado. Alguns, por exemplo, tendem a substituir posições exageradas do passado, por outros exageros; assim, da atitude de ver o pecado em toda parte, passa-se a não o vislumbrar em parte alguma; da demasiada acentuação do temor das penas eternas, à pregação dum amor de Deus que excluiria toda e qualquer pena merecida pelo pecado; da severidade no esforço para corrigir as consciências errôneas, a um pretenso respeito pela consciência, até suprimir o dever de dizer a verdade. (...) “Diante do problema do embate de uma vontade rebelde com Deus infinitamente justo, não se pode deixar de nutrir sentimentos de salutar ‘temor e tremor’, como sugere São Paulo” .
Assim sendo, a Parábola de hoje tem grande importância para os dias atuais e por isso vale a pena conhecê-la em toda sua substância e profundidade.