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quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Evangelho Solenidade de Todos os Santos Mt 5, 1-12a

Final dos comentários ao Evangelho Mt 5, 1-12a Bem aventuranças

O privilégio de ver a Deus nesta vida
8 “Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus”.
Ao ouvir falar em “puros de coração”, pensa-se logo na virtude angélica. Porém, como explica Fillion, essas palavras “não designam exclusivamente a castidade, mas o afastamento do pecado, a isenção de toda mácula moral. O coração é aqui considerado, à maneira hebraica, como o centro da vida moral”.11
O alcance desta expressão é, portanto, bem mais amplo e profundo. O puro de coração tem todas as intenções e aspirações voltadas para o Altíssimo e para o benefício do próximo. Admirando tudo quanto é santo, nobre e elevado, transborda do desejo de fazer bem aos demais, por amor a Deus.
No esforço de descrever a íntima união dessas almas com seu Criador, recorre Bossuet a sugestivas comparações: “Um cristal perfeitamente límpido, um ouro perfeitamente refinado, uma fonte perfeitamente clara não igualam a beleza e a limpidez de um coração puro. [...] Deus Se compraz em mirar-Se nele como num belo espelho: imprime-Se nele em toda a sua beleza”.12
Seria, entretanto, um equívoco julgar que o prêmio prometido nesta bem-aventurança refere-se exclusivamente à eternidade, exigindo toda uma vida de abnegação e aridez a fim de alcançar a Visão Beatífica. Pelo contrário, como ensina São Tomás, nas bem-aventuranças Nosso Senhor promete também para este mundo a recompensa.13 E Fillion afirma que a pureza de coração confere “já nesta Terra, um começo de visão, um conhecimento mais perfeito do Deus que Se revela às almas puras”.14
Como se dará isto? Sem dúvida, por meio da graça. Pois, enquanto a impureza cega as almas para tudo quanto é elevado, quem tem um coração limpo vê Deus nesta vida através da fé, admirando os reflexos divinos nas criaturas; sobretudo, contemplando a ação da graça nas almas. É esta, aliás, uma das mais belas e altas manifestações de Deus nesta Terra.
Como se tornar um verdadeiro filho de Deus
9“Bem-aventurados os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus”.
Todos os promotores da verdadeira paz –– que é a tranquilidade da ordem, segundo a célebre definição de Santo Agostinho15 –– serão chamados filhos de Deus.
Ora, para irradiar a paz é preciso começar por desfrutar dela no próprio interior. Isso significa não ter suscetibilidades nem ressentimentos, sabendo ceder oportunamente às exigências do próximo, ainda quando forem ou parecerem injustas, desde que não nos façam incorrer em pecado. À pratica desse princípio do modo mais radical possível nos convidam as palavras pronunciadas mais adiante pelo Senhor, no mesmo Sermão da Montanha: “Ao que te ferir numa face, oferece-lhe também a outra. E ao que te tirar a capa, não impeças de levar também a túnica” (Lc 6, 29).
Agir assim exige verdadeiro heroísmo. Mas Cristo nos ensina que não devemos poupar meios — mesmo dolorosos — quando se trata de alcançar a harmonia entre os corações e elevá-los até o Criador.
Se quisermos, portanto, ser “filhos de Deus”, aprendamos a ser pacíficos, atendendo à bela exortação de Bossuet: “Tenhamos sempre palavras de reconciliação e de paz, para dulcificar a amargura de nossos irmãos contra nós ou contra os outros; procuremos sempre amenizar as más referências, evitar as inimizades, as friezas, as indiferenças, enfim, reconciliar os que estão em desacordo. Isso é fazer a obra de Deus e mostrar-se filhos seus, imitando sua bondade”.16
A alegria na perseguição
10 “Bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino dos Céus. 11 Bem-aventurados sois vós quando vos injuriarem e perseguirem, e mentindo disserem todo tipo de mal contra vós, por causa de Mim. 12a Alegrai-vos e exultai porque será grande a vossa recompensa nos Céus”.
Por amor à justiça, isto é, à santidade, passaremos sem dúvida nesta vida por momentos em que seremos incompreendidos e mesmo perseguidos.
Nessas circunstâncias, não devemos nos deixar abater. Lembremos, pelo contrário, que Deus é o Senhor da História e nada acontece sem sua permissão, por mínimo que seja: “Não se vendem dois pardais por uma moedinha? No entanto, nenhum deles cai no chão sem o consentimento do vosso Pai” (Mt 10, 29). O Criador tem tudo contado, pesado e medido. E age sobre os acontecimentos visando sempre, junto com sua própria glória, a salvação dos que são seus. Por isso, afirma São Paulo: “Tudo quanto acontece, concorre para benefício dos justos” (Rm 8, 28).
Em quantas ocasiões não foram os santos objeto das mais injustas perseguições, por amor à verdade? Porém, não perderam a confiança na Providência Divina, nem externaram ressentimento contra os seus perseguidores, aos quais tratavam com caridade e sem ódio pessoal, mas também com a inegável superioridade do homem que pratica a virtude, em relação a quem se deixa arrastar pelo vício.
Por isso, o próprio Deus Se encarregará de recompensá-los muito além do merecido: possuirão o Reino dos Céus, um prêmio eterno, infinitamente superior a todo sofrimento padecido nesta vida.
Convite à radicalidade do bem
A doutrina das bem-aventuranças revelou para todo sempre, como vimos, o vácuo da felicidade fundada na satisfação das paixões desregradas e na posse dos bens materiais. Pois, como ensina magistralmente o Santo Padre, “os critérios mundanos são subvertidos quando a realidade é examinada na perspectiva correta, isto é, sob o ponto de vista da escala de valores de Deus, a qual difere da escala de valores do mundo”.17
Com essas oito sentenças, porém, Cristo indicou a via para alcançar o Céu, onde veremos a Deus face a face e participaremos da própria vida divina, possuindo a mesma felicidade da qual Ele goza. E quem rege sua conduta de acordo com elas começa por antegozar espiritualmente, já nesta Terra, a felicidade eterna.
As bem-aventuranças não são, portanto, frases para serem estudadas apenas com a inteligência, de modo frio, mas sim princípios de vida a serem lidos e meditados com o coração, com o calor de alma de quem quer se pôr a caminho, seguindo os passos de Nosso Senhor.
Com uma suavidade toda divina, elas nos convidam à radicalidade na prática do bem, pois o padrão de virtude que nelas Cristo nos propõe não é outro senão Ele mesmo, o próprio Deus!
1 FILLION, Louis-Claude. Vida de Nuestro Señor Jesucristo. Vida pública. Madrid: Rialp, 2000, v.II, p.94.
2Idem, ibidem.
3GOMÁ Y TOMÁS, Isidro. El Evangelio Explicado. Barcelona: Casulleras, 1930, v.II, p.158.
4Idem, ibidem.
5BOSSUET. Meditations sur l’Évangile. Versailles: Lebel, 1821, p.4.
6Alguns autores opinam que a Montanha das bem-aventuranças é o monte hoje conhecido também pelo nome de Cornos de Hattin, situado a meio caminho entre Caná e Cafarnaum (cf. GOMÁ Y TOMÁS, op. cit., p.155-156).
7FILLION, op. cit., p.92.
8 BENEDETTO XVI. Gesù di Nazaret. Milano: Rizzoli, 2007, p.100-101.
9 SAN JUAN CRISÓSTOMO. Obras. Homilías sobre el Evangelio de San Mateo. Madrid: BAC, 2007, p.275.
10 SAN AGUSTÍN. Obras ­ Homilías. Madrid: BAC, 1955, v.X, p.53.
11 FILLION, Louis-Claude. La Sainte Bible commentée. Paris: Letouzey et Ané, 1912, v.VII, p.43.
12 BOSSUET, op. cit., p.16. “Assim, pois, tudo o que nas bem-aventuranças se [...] afirma como prêmio pode ser ou a própria bem-aventurança perfeita, e nesse sentido pertence à vida futura, ou algum início da bem-aventurança, como ocorre entre os santos, e nesse sentido os prêmios pertencem à vida presente. Com efeito, quando alguém começa a progredir no exercício das virtudes e dos dons, pode-se esperar dele que chegará à perfeição de sua caminhada aqui e na pátria” (SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, I-II, q.69, a.2, resp.).
14 FILLION, La Sainte Bible commentée, op. cit., p.43.
15 “A paz da Cidade Celestial é a ordenadíssima e concordíssima união para gozar de Deus e, ao mesmo tempo, em Deus. A paz de todas as coisas, a tranquilidade da ordem” (De civitate Dei, lib. XIX, c.XIII).
16 BOSSUET, op. cit., p.18-19.
17 BENEDETTO XVI, op. cit., p.95.

terça-feira, 30 de outubro de 2012

Evangelho Solenidade de Todos os Santos Mt 5, 1-12a

Continuação dos comentários ao Evangelho Mt 5, 1-12a  Bem aventuranças

O valor do sofrimento diante de Deus
4 “Bem-aventurados os aflitos, porque serão consolados”.
À natureza humana decaída repugnam a dor, o sacrifício e mesmo qualquer esforço. Entretanto, na segunda das bem-aventuranças enaltece Nosso Senhor o pranto daqueles que suportam o sofrimento físico e a dor moral por razões sobrenaturais, como em expiação pelos próprios pecados, ou — o que é mais nobre — em reparação pelas culpas alheias. Bem-aventuradas são as santas lágrimas desses aflitos, que tanta consolação lhes podem trazer ao ajudá-los a ver o vazio dos bens passageiros e a merecer os eternos.
Bem-aventurados serão eles também porque Deus nunca deixa de confortar, já nesta Terra, quem aceita a dor e, à imitação de Jesus Cristo, se ajoelha diante da cruz e a oscula antes de tomá-la aos ombros. Seu gozo não será pequeno, pois, como afirma São João Crisóstomo, “quando é Deus quem nos consola, embora caiam sobre nós as dores como os flocos de neve, superamos todas. Ele sempre nos dá uma recompensa superior aos nossos trabalhos”.9
A verdadeira mansidão
5 “Bem-aventurados os mansos, porque possuirão a terra”.
A mansidão elogiada por Cristo neste versículo consiste, sobretudo, em ser o homem constantemente senhor de si mesmo, controlando as próprias emoções e impulsos. Ela lhe impede de murmurar contra as adversidades permitidas por Deus, e o leva a não se irritar com os defeitos dos irmãos, procurando, pelo contrário, desfazer os desentendimentos e desculpar com generosidade as ofensas recebidas.
Os mansos de coração não só evitam a discórdia com o próximo, mas empregam todos os meios para que ela não se estabeleça entre os irmãos. Suportam o peso da vida, conformando-se sempre com a vontade de Deus. Santo Agostinho faz-lhes este elogio: “Quando estão bem, louvam a Deus; quando mal, não blasfemam; nas boas obras que fazem, glorificam a Deus, e nos pecados, acusam-se a si mesmos”.10 E mais uma vez o santo Jó, com sua admirável fidelidade durante a terrível provação, ser-nos-á exemplo dessa virtude.
E qual é a terra que os mansos possuirão? A terra dos vivos: o Céu. Porém, já neste mundo, mesmo em meio a dores e tristezas, desfrutam de uma constante alegria no fundo da alma, antegozo do Reino Eterno.
As leis do espírito diferem das do corpo
6 “Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados”.
Ter fome e sede de justiça equivale a desejar a santidade. Jesus louva aqui a árdua batalha daqueles que, visando atingir a perfeição moral, lutam para progredir na vida espiritual, examinam com rigor sua consciência e combatem com energia os próprios defeitos.
Ora, as leis do espírito são distintas das do corpo. Quanto mais alimento espiritual recebe a alma, mais aumenta nela a apetência pelos bens eternos, porque Deus infundiu na natureza humana uma aspiração por uma felicidade sem limites. Como, então, poderão ser saciados os que “têm fome e sede de justiça”?
Nosso apetite pelos bens eternos só será perfeitamente satisfeito no Céu, onde o próprio Deus será nossa recompensa. Mas, já nesta terra, bem-aventurados são aqueles que se alimentam com fervor do Pão dos Anjos e bebem com delícias a água do Espírito oferecida por Jesus à samaritana (cf. Jo 4, 14).
Com a medida com que medirdes...
7 “Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia”.
Por vezes, sentimos verdadeiro horror em perdoar, pois consideramos ser conforme à justiça tratar cada um estritamente segundo os seus atos e méritos.
Entretanto, o Bom Pastor nos convida aqui a desculpar as fraquezas de nossos irmãos e nos compadecer de suas misérias. Mais adiante, no próprio Sermão da Montanha, levará Ele essa doutrina até um extremo inimaginável: “Amai os vossos inimigos, e fazei o bem aos que vos odeiam. Falai bem dos que falam mal de vós e orai por aqueles que vos caluniam. [...] Fazei o bem e prestai ajuda sem esperar coisa alguma em troca. Então a vossa recompensa será grande. Sereis filhos do Altíssimo, porque Ele é bondoso também para com os ingratos e maus. Sede misericordiosos como o vosso Pai é misericordioso” (Lc 6, 27-28.35-36).
No dia do Juízo, o Redentor nos tratará da mesma forma como tivermos tratado o nosso próximo: “Com a medida com que medirdes sereis medidos” (Lc 6, 38). Quem tem misericórdia, perdoa as debilidades dos outros com facilidade, e é por sua vez perdoado, segundo o pedido feito no Pai-Nosso: “Perdoai-nos as nossas ofensas assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido” (Mt 6, 12). Porque, acrescenta Jesus, “se vós perdoardes aos outros as suas faltas, vosso Pai que está nos Céus também vos perdoará. Mas, se vós não perdoardes aos outros, vosso pai também não perdoará as vossas faltas” (Mt 6, 14-15).

Final dos comentários no próximo post

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Evangelho Solenidade de Todos os Santos Mt 5, 1-12a

Vista desde o Monte das Bem aventuranças
Acompanhe os comentários ao Evangelho Mt 5, 1-12a neste blog

No Sermão da Montanha, Nosso Senhor ensinou uma nova forma de relacionamento diametralmente oposta aos princípios e costumes vigentes no mundo antigo. À crueldade e à dureza de trato, veio contrapor a lei do amor, da bondade e do perdão, belamente sintetizada nas oito bem-aventuranças.
“Naquele tempo: 1 Vendo Jesus as multidões, subiu ao monte e sentou-Se. Os discípulos aproximaram-se, 2 e Jesus começou a ensiná-los: 3 ‘Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos Céus. 4 Bem-aventurados os aflitos, porque serão consolados. 5 Bem-aventurados os mansos, porque possuirão a terra. 6 Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados. 7 Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia. 8 Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus. 9 Bem-aventurados os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus. 10 Bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino dos Céus. 11 Bem-aventurados sois vós quando vos injuriarem e perseguirem, e mentindo disserem todo tipo de mal contra vós, por causa de Mim. 12a Alegrai-vos e exultai porque será grande a vossa recompensa nos Céus’” (Mt 5, 1-12a).

Radical mudança de padrões no relacionamento divino e humano
Jesus proclama uma doutrina inovadora
A figura majestosa do Messias e sua surpreendente doutrina ao mesmo tempo intrigavam, impunham respeito e atraíam. Do seu olhar profundo e sereno dimanava ilimitada bondade. Atendia todos os pedidos, curava todos os doentes. Até aqueles que tocavam na orla do seu manto ou eram apenas acariciados por sua sombra, viam-se favorecidos por sua benfazeja onipotência. D’Ele os aflitos recebiam inefável consolo.
Os milagres tornavam-se mais numerosos e uma multidão cada vez maior O seguia com crescente admiração: “O povo todo ficava fascinado quando ouvia Jesus falar” (Lc 19, 48). Jamais se vira em Israel profeta semelhante.
Cativados estavam também os Apóstolos que havia algum tempo acompanhavam esse Taumaturgo dotado de tão extraordinário poder: por sua ação, cegos passaram a ver, coxos a andar, surdos a ouvir, leprosos ficavam limpos e possessos viram-se libertos. Mas julgavam erroneamente os discípulos, em consonância com o geral do povo, que Ele viera para estabelecer o predomínio de Israel sobre as demais nações da Terra. Era-lhes ainda desconhecida a verdadeira fisionomia do Reino pregado pelo Divino Mestre e as regras que deveriam regê-lo, pois, como afirma Fillion, “até então Jesus anunciara a seus compatriotas a vinda do Reino de Deus, instando-os a nele entrar, mas ainda não havia descrito em pormenores as qualidades morais que deviam adquirir para serem dignos de pertencer a ele”.1
Momento oportuno para explicitar a nova doutrina
A passagem do Evangelho aqui comentada corresponde ao momento em que Cristo começa a explicitar sua inovadora doutrina. Vários meses haviam transcorrido desde o início da sua vida pública. Encontrava-se Ele agora nas redondezas de Cafarnaum, junto ao Mar de Tiberíades, aonde tinham ido para ouvi-Lo e serem curadas “pessoas de toda a Judeia, e de Jerusalém, e do litoral de Tiro e Sidônia” (Lc 6, 17).
Acabava Jesus de escolher doze dentre seus discípulos, aos quais dera o nome de Apóstolos (cf. Lc 6, 13-16), preparando assim a fundação da sua Igreja. Era essa a ocasião propícia para apresentar de público uma suma dos ensinamentos que a Esposa de Cristo, ao longo dos séculos, haverá de guardar, defender e anunciar a todos os povos. É o que Nosso Senhor vai fazer no Sermão da Montanha, verdadeira síntese do Evangelho e píncaro da perfeição da Nova Lei. Servem-lhe de exórdio as oito bem-aventuranças, como portal magnífico de um palácio incomparável.
Neste sermão o Messias, “a título de fundador e legislador da Nova Aliança, declara a seus súditos o que lhes pede e o que deles espera, se querem servi-Lo com fidelidade”.2
Violenta ruptura com antigos costumes e preconceitos
Difícil nos é hoje, após dois milênios, compreender a novidade radical contida nessas palavras do Divino Mestre. Trouxeram elas para o mundo uma suavidade nas relações dos homens entre si, e destes com Deus, desconhecida no Antigo Testamento e, a fortiori, pelas religiões dos povos pagãos.
Afirma, a esse propósito, o Cardeal Gomá: “Não estamos hoje em condições de apreciar a transcendência desse discurso de Jesus, pois respiramos na atmosfera cristã produzida no mundo por aqueles divinos ensinamentos. [...] Precisamos remontar aos tempos dos grosseiros erros do paganismo, que os ouvintes de Jesus respiravam naquela ocasião [...] para podermos avaliar o profundo contraste entre os ensinamentos do Mestre e a cultura e sensibilidade de seus ouvintes”.3
Com efeito, as palavras de Nosso Senhor vão provocar uma completa transformação dos costumes da época, marcados pelo egoísmo, pela dureza de trato e até mesmo pela crueldade.
Elas são próprias a determinar também uma violenta ruptura com “os preconceitos dos contemporâneos de Jesus sobre o reino messiânico e o próprio Messias — já que esperavam um Messias forte e poderoso na ordem temporal, formidável guerreiro que deveria subjugar as nações e colocá-las sob a férula de Judá, tendo Jerusalém como capital gloriosa”.4
A felicidade não está no pecado
Afirma o eloquente Bossuet: “Se o Sermão da Montanha é o resumo de toda a doutrina cristã, as oito bem-aventuranças são o resumo do Sermão da Montanha”.5 Elas sintetizam, de fato, todos os ensinamentos morais dados pelo Redentor ao mundo e estabelecem os princípios de relacionamento prevalentes em seu Reino.
Ao praticá-las, o homem encontra a verdadeira felicidade que busca sem cessar nesta vida e jamais poderá encontrar no pecado. Pois, quem viola a lei de Deus no afã de satisfazer suas paixões desordenadas afunda cada vez mais no vício até se tornar insaciável. “Todo aquele que comete o pecado é escravo do pecado” (Jo 8, 34), adverte Jesus.
As almas puras e inocentes, ao contrário, desfrutam já nesta Terra de uma extraordinária alegria de alma, mesmo no meio de sofrimentos ou provações.
Passemos agora a analisar cada uma das oito bem-aventuranças, vibrantes verdades cujo enunciado se sucede em majestosa cadência, com um ritmo elevado, digno, imponente, próprio da Pessoa Divina que as proclamava: “Bem-aventurados, Bem-aventurados, Bem-aventurados...”.
Os princípios morais da nova lei
“Naquele tempo: 1 Vendo Jesus as multidões, subiu ao monte e sentou-Se. Os discípulos aproximaram-se, 2 e Jesus começou a ensiná-los...”
Para fazer a solene proclamação de sua doutrina, não escolheu Jesus uma sinagoga, nem sequer o Templo. Proferiu essas oito magistrais sentenças ao ar livre, numa pequena meseta situada na margem noroeste do Mar de Tiberíades, perto de Cafarnaum.6
Como sublinha Fillion, “grandiosa era a cátedra da qual ia falar, em consonância com o assunto do próprio sermão”7: por teto tinha o céu; por palco, uma montanha e não existiam paredes... Diante de Si, o vasto panorama dominado pelo Mar da Galileia sugeria a imensidade do globo terrestre como auditório para aquelas palavras que, passando de região em região ao longo dos séculos, levadas pelos lábios dos Apóstolos e seus sucessores, chegaram até nós — dois mil anos depois — tão vivas como se tivessem sido pronunciadas hoje.
Pobreza material e pobreza de espírito
“Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos Céus”.
A mentalidade própria aos espíritos mundanos em todos os tempos repete: “Bem-aventurados os ricos e os poderosos, porque eles conseguem satisfazer todos os seus caprichos e apetências”. Era essa a máxima de vida dos povos pagãos da Antiguidade, e continua a ser hoje, nos ambientes em que Nosso Senhor Jesus Cristo deixou de ser o centro.
O Divino Mestre, pelo contrário, vai proclamar: “Quem quiser vir após Mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-Me” (Mt 16, 24). Ou: “É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no Reino dos Céus” (Lc 18, 25).
Portanto, a contraposição entre a doutrina do Homem Deus e o espírito do mundo não poderia ser mais completa! Assim, bem podemos imaginar o estupor dos que O seguiam, ouvindo-O exaltar o oposto da felicidade, segundo era entendida pela mentalidade daquela época: “Bem-aventurados os pobres em espírito”!
Tanto mais que Jesus era exemplo vivo e modelo insuperável dessa inovadora doutrina. Criador do Céu e da Terra, escolhera como berço uma manjedoura posta numa gruta fria, aquecida apenas pela presença de um boi e um burro. E após trinta anos de existência humilde e oculta, pôde dizer durante sua vida pública: “As aves têm seu ninho, as raposas têm suas tocas, mas o Filho do Homem não tem onde repousar a cabeça” (Lc 9, 58).
Cabe ressaltar, entretanto, não estar Nosso Senhor tratando aqui principalmente da pobreza material, como aponta com acuidade o Papa Bento XVI, em seu livro Jesus de Nazaré: “A pobreza da qual aqui se fala nunca é um fenômeno puramente material. A pobreza puramente material não salva, embora os desfavorecidos deste mundo possam seguramente contar de modo muito particular com a bondade divina. Mas o coração das pessoas que nada possuem pode estar endurecido, intoxicado, corrompido — interiormente cheio de cobiça, esquecido de Deus e ávido apenas de bens materiais”.8
Os “pobres de espírito” mencionados pelo Divino Mestre neste versículo não são os carentes de dinheiro, mas os homens desapegados dos bens deste mundo, sejam estes muitos ou poucos, para seguirem a Jesus Cristo.
Em meio à abundância e prosperidade, pode um rico ser pobre de espírito, pela prática da caridade e pela submissão à vontade de Deus, em função da qual administra sua riqueza. O santo homem Jó é disto um dos mais belos exemplos. Por outro lado, um pobre, revoltado com a sua condição, dominado pela inveja, pela ambição ou pelo orgulho, será um “rico de espírito” ao qual o Reino dos Céus jamais poderá pertencer.

Consiste, portanto, a pobreza de espírito na aceitação da própria contingência, na compenetração da nossa total dependência de Deus, a quem tudo devemos, e na certeza de ser a nossa existência um mero caminho para chegar até o Céu. Quem assim procede, é feliz já nesta vida, pois, estando livre de todo apego desordenado e voltado para os bens espirituais, possui de alguma maneira, pela graça, a bem-aventurança eterna.

Continua no próximo post.