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sábado, 7 de setembro de 2013

Evangelho XXIV Domingo do Tempo Comum - Ano C - 2013

Comentário ao Evangelho 24º Domingo do Tempo Comum - Ano C - 2013 - Lc 15, 1-32 - Continuação
A ovelha desgarrada
3 “Então Jesus contou-lhes esta parábola: 4 ‘Se um de vós tem cem ovelhas e perde uma, não deixa as noventa e nove no deserto, e vai atrás daquela que se perdeu, até encontrá-la?’”.
O pastor e o rebanho, realidades tão comuns na sociedade judaica daquela época, adquirem nesta parábola seu mais elevado simbolismo. Embora tal imagem já houvesse sido utilizada no Antigo Testamento para representar o zelo de Deus por seu povo (cf. Ez 34), sua força de expressividade é sublimada pelos detalhes acrescentados pelo Divino Mestre, a fim de fazê-la significar o mistério da Redenção.
Em primeiro lugar, ao mencionar a quantidade exata de ovelhas, Nosso Senhor “refere-se a toda a multidão de criaturas racionais que Lhe estão subordinadas, porque o número cem, composto de dez dezenas, é perfeito. Mas destas, perdeu-se uma, que é o gênero humano”,3 explica São Cirilo. Na vida cotidiana o pastor toma-se de aflição ao notar a falta de uma ovelha e, deixando de lado o rebanho, não mede esforços para recuperar a desgarrada, nela concentrando toda a sua atenção. Análoga é a atitude de Deus na Redenção: ao Se encarnar, o Filho deixou no Céu “inumeráveis rebanhos de Anjos, Arcanjos, Dominações, Potestades, Tronos”,4 para, na Terra, resgatar a humanidade, perdida pelo pecado.
A alegria do pastor ao encontrar a ovelha
5 “Quando a encontra, coloca-a nos ombros com alegria, 6 e, chegando a casa, reúne os amigos e vizinhos, e diz: ‘Alegrai-vos comigo! Encontrei a minha ovelha que estava perdida!’”.
Além de não castigar a tresmalhada quando a encontra, o pastor a trata com extremo carinho e a carrega aos ombros, com um cuidado que ele não teve com nenhuma das ovelhas obedientes. Tal desvelo representa os afagos do perdão restaurador de Deus destinado aos pecadores arrependidos: ao invés de puni-los pelas ofensas recebidas e assim satisfazer os clamores da justiça, Ele prefere manifestar sua onipotência atendendo aos apelos da misericórdia. É o infinito desejo de salvar, que suplanta inclusive a maldade humana, como aponta São Gregório Magno: “Separamo-nos d’Ele, mas Ele não Se separa de nós. […] Demos as costas ao nosso Criador, e Ele ainda nos tolera; afastamo-nos d’Ele com soberba, mas Ele nos chama com suma benignidade e, podendo nos castigar, ainda promete prêmios para que voltemos”.5
Contudo, nossa primeira atenção, ao considerar esta parábola, deve se centrar na efusiva alegria do pastor ao recuperar a ovelha, convidando outros a regozijarem-se com ele. É este o principal pormenor da narração, com o qual Nosso Senhor quer significar o agrado de Deus ao encontrar uma alma dócil à ação da graça e, apesar de se ter desviado das sendas da virtude, abandona-se aos cuidados do Bom Pastor e se deixa reconduzir por Ele. Tal flexibilidade é a única exigência para perdoar e restaurar o pecador. Com isso a alma é tomada pela felicidade de se ver novamente em ordem com Deus e em paz com sua consciência, dando-Lhe a alegria de poder manifestar sua misericórdia. E, por conseguinte, participarão desse contentamento todos aqueles que O amam de verdade.
7 “Eu vos digo: Assim haverá no céu mais alegria por um só pecador que se converte, do que por noventa e nove justos que não precisam de conversão”.
O pecador e os noventa e nove justos simbolizam, segundo alguns, a humanidade e os Anjos, pois apenas estes últimos são “justos que não precisam de conversão”. Ao ressaltar a desproporção entre uns e outros, o Mestre nos dá um precioso ensinamento acerca da superioridade numérica do mundo angélico, o qual “excede o restrito campo de nossos números físicos”.6
Por outro lado, vê-se a força do perdão: seus efeitos repercutem entre os Anjos, causando-lhes maior júbilo do que sua própria perseverança. É um incentivo para nunca nos desesperarmos quando percebermos, arrependidos, que nos afastamos do rebanho, seguindo nossas más inclinações. No Sacramento da Penitência, o próprio Jesus nos aguarda, disposto a nos levar aos ombros com todas as nossas misérias.
Um exemplo para o público feminino
8 “E se uma mulher tem dez moedas de prata e perde uma, não acende uma lâmpada, varre a casa e a procura cuidadosamente, até encontrá-la?. 9 Quando a encontra, reúne as amigas e vizinhas, e diz: ‘Alegrai-vos comigo! Encontrei a moeda que tinha perdido!’. 10 Por isso, eu vos digo, haverá alegria entre os Anjos de Deus por um só pecador que se converte”.
Sem dúvida, considerável era o contingente feminino no público presente à pregação de Nosso Senhor. Por isso, Ele compõe uma segunda parábola, adaptando o enredo anterior a uma situação na qual a protagonista é uma dona de casa, responsável pela administração das economias domésticas, segundo os costumes judaicos. Empregando tais energias para reaver a moeda perdida, esta mulher é apresentada por Jesus como imagem do incansável empenho de Deus em fazer com que “todos os homens se salvem e cheguem ao pleno conhecimento da verdade” (I Tim 2, 4). Tendo sofrido a Paixão e Morte na Cruz para redimir a humanidade, Cristo ama a cada um de nós individualmente. Uma alma, mesmo que pareça insignificante ao lado dos inesgotáveis tesouros de sua onipotência, é uma “moedinha” de valor infinito, porque vale o preço de seu Preciosíssimo Sangue. Mais uma vez, o Salvador salienta o júbilo causado entre os Anjos pela conversão de “um só pecador”.

Narradas pelo Divino Mestre, tais cenas corriqueiras da vida pastoril e doméstica tornam mais acessível à nossa compreensão o sublime mistério do amor de um Deus que, fazendo-Se homem, “veio procurar e salvar o que estava perdido” (Lc 19, 10).

Continua no próximo post.

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

XXIV Domingo do Tempo Comum - Ano C - 2013

Evangelho 24º Domingo do Tempo Comum - Ano C - 2013 - Lc 15, 1-32

“Naquele tempo, 1 os publicanos e pecadores aproximavam-se de Jesus para O escutar. 2 Os fariseus, porém, e os mestres da Lei criticavam Jesus. ‘Este homem acolhe os pecadores e faz refeição com eles’.
3 Então Jesus contou-lhes esta parábola: 4 ‘Se um de vós tem cem ovelhas e perde uma, não deixa as noventa e nove no deserto, e vai atrás daquela que se perdeu, até encontrá-la? 5 Quando a encontra, coloca-a nos ombros com alegria, 6 e, chegando a casa, reúne os amigos e vizinhos, e diz: ‘Alegrai-vos comigo! Encontrei a minha ovelha que estava perdida!’. 7 Eu vos digo: Assim haverá no céu mais alegria por um só pecador que se converte, do que por noventa e nove justos que não precisam de conversão. 8 E se uma mulher tem dez moedas de prata e perde uma, não acende uma lâmpada, varrea casa e a procura cuidadosamente, até encontrá-la? 9 Quando a encontra, reúne as amigas e vizinhas, e diz: ‘Alegrai-vos comigo! Encontrei a moeda que tinha perdido!’. 10 Por isso, eu vos digo, haverá alegria entre os Anjos de Deus por um só pecador que se converte’.
11 E Jesus continuou: ‘Um homem tinha dois filhos. 12 O filho mais novo disse ao pai: ‘Pai, dá-me a parte da herança que me cabe’. E o pai dividiu os bens entre eles. 13 Poucos dias depois, o filho mais novo juntou o que era seu e partiu para um lugar distante. E ali esbanjou tudo numa vida desenfreada.
14 Quando tinha gasto tudo o que possuía, houve uma grande fome naquela região, e ele começou a passar necessidade. 15 Então foi pedir trabalho a um homem do lugar, que o mandou para seu campo cuidar dos porcos. 16 O rapaz queria matar a fome com a comida que os porcos comiam, mas nem isto lhe davam.
17 Então caiu em si e disse: ‘Quantos empregados do meu pai têm pão com fartura, e eu aqui, morrendo de fome. 18 Vou-me embora, vou voltar para meu pai e dizer-lhe: Pai, pequei contra Deus e contra ti; 19 já não mereço ser chamado teu filho. Trata-me como a um dos teus empregados’.
20 Então ele partiu e voltou para seu pai. Quando ainda estava longe, seu pai o avistou e sentiu compaixão. Correu-lhe ao encontro, abraçou-o e cobriu-o de beijos. 21 O filho, então, lhe disse: ‘Pai, pequei contra Deus e contra ti. Já não mereço ser chamado teu filho’.
22 Mas o pai disse aos empregados: ‘Trazei depressa a melhor túnica para vestir meu filho. E colocai um anel no seu dedo e sandálias nos pés. 23 Trazei um novilho gordo e matai-o. Vamos fazer um banquete. 24 Porque este meu filho estava morto e tornou a viver; estava perdido e foi encontrado’. E começaram a festa.
25 O filho mais velho estava no campo. Ao voltar, já perto de casa, ouviu música e barulho de dança. 26 Então chamou um dos criados e perguntou o que estava acontecendo. 27 O criado respondeu: ‘É teu irmão que voltou. Teu pai matou um novilho gordo, porque o recuperou com saúde’.
28 Mas ele ficou com raiva e não queria entrar. O pai, saindo, insistia com ele. 29 Ele, porém, respondeu ao pai: ‘Eu trabalho para ti há tantos anos, jamais desobedeci a qualquer ordem tua. E tu nunca me deste um cabrito para eu festejar com meus amigos. 30 Quando chegou esse teu filho, que esbanjou teus bens com prostitutas, matas para ele o novilho cevado’.
31 Então o pai lhe disse: ‘Filho, tu estás sempre comigo, e tudo o que é meu é teu. 32 Mas era preciso festejar e alegrar-nos, porque este teu irmão estava morto e tornou a viver; estava perdido, e foi encontrado’” (Lc 15, 1-32).
UMA CONCEPÇÃO ERRADA DA JUSTIÇA E DA MISERICÓRDIA
Os homens costumam julgar as atitudes alheias, em geral, com o seguinte critério: Agiu bem? Merece prêmio e estima. Agiu mal? Merece castigo e repulsa. Tal mentalidade, além de conspurcar a pureza de intenção das boas obras, levando a pessoa a fazer o bem pelo simples interesse de receber uma recompensa, cria na alma condições favoráveis ao desenvolvimento de toda sorte de vícios, semeados pelo amor-próprio ferido, tais como a vingança, o ressentimento e o rancor. No relacionamento com Deus, em consequência, muitos se baseiam na mesma concepção e O imaginam como um intransigente legislador, a quem a menor infração encoleriza e faz desfechar sobre o faltoso, de imediato, o merecido castigo. Ainda de acordo com esse critério, a benevolência divina apenas incide, em forma de bênçãos, consolações e demais favores sobrenaturais, sobre aqueles que, tendo cumprido de modo exímio os Mandamentos, merecem ser recompensados.
Ora, essa visão da perfeição infinita de Deus é muito deformada, pois Lhe atribui uma justiça conforme os limitados critérios humanos e ignora sua misericórdia. E tal atributo é n’Ele tão vigoroso que chega a vencer a própria justiça. Uma prova da insuperável força de sua compaixão são as palavras dirigidas aos nossos primeiros pais, logo após o pecado original: antes de sentenciar os sofrimentos aos quais a natureza humana estaria sujeita na terra de exílio, Ele lhes prometeu a vinda de um Salvador, nascido da descendência de Adão (cf. Gn 3, 15). Mal o homem havia pecado, o Senhor garantiu-lhe o perdão. Por isso, poderíamos parafrasear a afirmação de São João e dizer que, no “fiat!” de Maria Santíssima, o perdão de Deus se fez carne e habitou entre nós (cf. Jo 1, 14).
Durante sua vida mortal, Jesus manifestou com largueza o desejo de salvar, acolhendo com indulgência os pecadores arrependidos que a Ele acorriam, confiantes de ali encontrar o perdão. Entretanto, a mesma misericórdia que tanto atraía uns, despertava acirrada indignação em outros...
A MISERICÓRDIA POSTA EM PARÁBOLAS
“Naquele tempo, 1 os publicanos e pecadores aproximavam-se de Jesus para O escutar. 2 Os fariseus, porém, e os mestres da Lei criticavam Jesus. ‘Este homem acolhe os pecadores e faz refeição com eles’”.
Para entendermos a fundo o motivo de tal objeção, basta considerar que os fariseus e mestres da Lei exemplificam de modo cabal a mentalidade deformada à qual nos referimos. Para eles “Deus é, sobretudo, Lei; julgam-se em relação jurídica com Deus e, sob este aspecto, quites com Ele”,1 comenta o Papa Bento XVI. Era também segundo o mesmo critério que avaliavam os outros, discriminando como pecadores — e, enquanto tais, objeto da ira divina e do desprezo dos homens — todos os judeus negligentes no cumprimento das prescrições legais relativas à pureza ritual ou alimentar. Na mesma categoria incluíam os publicanos, pois, além de colaborarem com o domínio pagão exercido por Roma, muitas vezes eram desonestos ao arrecadar os impostos, cometendo extorsões em benefício próprio. Todavia, o principal alvo de repulsa eram os pagãos, devido à errônea ideia, muito difundida entre os judeus, de que a eleição divina do povo hebreu era sinônimo da condenação eterna de todas as outras nações. Desta forma, se para os israelitas não observantes da Lei e para os cobradores de impostos havia ainda uma longínqua possibilidade de salvação, caso se arrependessem e se reconciliassem com Deus, tal hipótese não se aplicava a um estrangeiro, pelo simples fato de não ser beneficiário das promessas feitas aos patriarcas.
Nada poderia contundir de modo tão veemente essa mentalidade quanto o modo de Nosso Senhor proceder. A cura do servo do centurião romano (cf. Lc 7, 1-10; Mt 8, 5-13), a pecadora perdoada na casa de Simão, o fariseu (cf. Lc 7, 36-50), e a incorporação de um coletor de impostos ao Colégio Apostólico, com o chamamento de Levi (cf. Mt 9, 9-17; Mc 2, 13-22; Lc 5, 27-39), são alguns exemplos de atitudes escandalizantes para os fariseus, a cujos ouvidos soavam como blasfêmias as palavras: “Não vim chamar os justos, mas sim os pecadores” (Lc 5, 32).
Por esta razão, a todo momento procuravam mostrar sua ferrenha oposição a Ele, conforme nos narra o início do Evangelho deste domingo.2

No entanto, como Jesus desejava salvar a todos — inclusive os fariseus e mestres da Lei —, sua resposta a tais objeções foi uma tríade de parábolas, registradas por São Lucas à maneira de um mesmo argumento apresentado sucessivamente, sob diferentes invólucros. Em cada uma delas, Nosso Senhor visava não só incentivar os pecadores que O ouviam a confiarem no perdão, como também convencer os opositores acerca da necessidade da misericórdia, sem a qual ninguém pode se salvar.

terça-feira, 3 de setembro de 2013

XXIII Domingo do Tempo Comum - Ano C - 2013 - Lc 14, 25-33

Continuação dos comentários ao Evangelho 23º Domingo do Tempo Comum - Ano C - 2013 - Lc 14, 25-33
Lucidez e prudência
Ensinar por meio de parábolas é uma constante da divina didática. Assim, vai Nosso Senhor recorrer agora a duas, para tornar vivo aos olhos daquela multidão quanto o segui-Lo não exige apenas esforço e abnegação, mas também planejamento lúcido e cuidadosa execução, isto é, “prudência e resolução em calcular o esforço que isso nos custará”.14
Como não poderia deixar de ser, as duas imagens foram escolhidas com divina sabedoria, de forma a ilustrar com perfeição o ensinamento dos versículos anteriores. A este propósito, comenta Maldonado: “Cristo propôs as parábolas da torre e da guerra, de preferência a outros temas, por tratar-se de empresas bem difíceis e caras levantar torres e empreender guerras, as quais requerem grande e diligente preparação”.15
Os cálculos para construir uma torre ou travar uma guerra
28 “Com efeito: qual de vós, querendo construir uma torre, não se senta primeiro e calcula os gastos, para ver se tem o suficiente para terminar? Caso contrário 29 ele vai lançar o alicerce e não será capaz de acabar. E todos os que virem isso começarão a caçoar, dizendo: 30 ‘Este homem começou a construir e não foi capaz de acabar!’”.
Como bem observou Maldonado, “calcular os gastos” significa aqui preparar-se com cuidado, inclusive detendo-se para ouvir prudentes conselhos. É o que todo homem deve fazer nas importantes encruzilhadas da vida: medir as dificuldades antes de lançar-se por uma ou outra via, sempre de acordo com a razão, nunca guiado apenas pelos sentimentos ou pelos impulsos. Mais importante ainda, precisa decidir e agir tendo em vista, sobretudo, a vida eterna, e não só os interesses terrenos, passageiros por definição.
31 “Ou ainda: Qual o rei que ao sair para guerrear com outro, não se senta primeiro e examina bem se com dez mil homens poderá enfrentar o outro que marcha contra ele com vinte mil?”.
As guerras entre pequenos estados eram comuns na Antiguidade. Portanto, Nosso Senhor apresentava nessa parábola uma realidade bem conhecida de todos os Seus ouvintes.
Ora, na batalha para alcançar o Reino dos Céus, entra o homem em condições muito desfavoráveis. Dada a natureza decaída em consequência do pecado original, cada um tem no seu interior terríveis inimigos: “o açoite da carne, a lei do pecado que impera em nossos membros, e varias paixões”.16 A eles se acrescentam “os principados, as potestades, os dominadores deste mundo tenebroso, os espíritos malignos espalhados pelos ares” (Ef 6, 12).
Visando tornar notória essa desproporção de forças, Santo Agostinho assim interpreta o sentido da parábola: “Os dez mil homens com os quais ele deve combater o rei que dispõe de vinte mil representam a simplicidade do cristão, que precisa lutar contra a falsidade do demônio, isto é, com seus dolos e falácias”.17
Tratado de paz com o Supremo Soberano
32 “Se ele vê que não pode, enquanto o outro rei ainda está longe, envia mensageiros para negociar as condições de paz”.
Por seu lado, São Gregório Magno dá desta parábola uma interpretação de caráter escatológico, segundo a qual o rei que se aproxima seria Aquele que virá no fim dos tempos para julgar os vivos e os mortos.18
Assim, na perspectiva da chegada do Supremo Soberano, em comparação ao qual nada somos nem podemos, caber-nos-ia apenas enviar mensageiros para Lhe solicitar a paz. São estes os nossos Anjos da Guarda, os nossos intercessores celestes e, sobretudo, Nossa Senhora. Pois, como pergunta o padre Duquesne, “quem somos nós para nos apresentarmos diante de Deus e ter a ousadia de com Ele negociar a paz? Que temos para oferecer-Lhe?”.19
Quanto às condições da paz, já foram elas enunciadas nos primeiros versículos deste Evangelho: trata-se de renunciar a tudo e abraçar a Cruz para seguir o Divino Redentor.
O único cálculo permitido ao verdadeiro discípulo
33 “Do mesmo modo, portanto, qualquer um de vós, se não renunciar a tudo o que tem, não pode ser Meu discípulo!”.
Nessas duas parábolas, Nosso Senhor torna evidente quão necessário é fazer bem os cálculos antes de encetar algum empreendimento, assumir uma responsabilidade ou travar uma batalha terrena.
Ora, neste versículo, segundo a interpretação de Santo Agostinho, estaria declarado o sentido de ambas, pois, afirma ele, “o dinheiro para edificar a torre e a força de dez mil homens para enfrentar os vinte mil combatentes do outro rei, não têm outro significado senão o de cada um renunciar a tudo quanto possui”.20 E acrescenta o santo Bispo de Hipona: “O anteriormente dito concorda com o que se diz agora, porque na renúncia de cada qual a tudo quanto possui está contido também o ódio a seu pai, sua mãe, sua mulher, seus filhos, seus irmãos, suas irmãs e até à sua própria vida. Todas essas coisas são próprias de cada um, e constituem obstáculo e impedimento para obter, não o temporal e transitório, mas aquilo que é comum a todos e subsistirá sempre”.21
Há, em suma, apenas um caminho para nos tornarmos verdadeiros discípulos de Jesus: renunciar totalmente aos afetos desordenados e ao apego aos bens terrenos, evitando que eles atuem como amarras para nossa vida espiritual ou de pesados lastros para nossa alma. Sem nos desprendermos de forma plena e completa de quanto nos separa de Cristo, jamais alcançaremos o Reino dos Céus.
Importante é notar, ademais, como faz o Cardeal Gomá, que não apenas os clérigos e religiosos devem ser discípulos de Jesus, mas sim todos os batizados: “Com os exemplos da torre e do rei, não quer o Senhor significar que cada um de nós seja livre de tornar-se ou não Seu discípulo, como o homem da torre era livre de lançar ou não os alicerces. Tenciona Ele ensinar-nos a impossibilidade de agradar a Deus em meio às coisas que distraem a alma e nas quais ela corre o risco de sucumbir, pela astúcia do demônio”.22
São Beda faz uma distinção entre o dever das almas chamadas ao estado de vida consagrada e a obrigação de todos os fiéis: “Há uma diferença entre renunciar a todas as coisas e abandoná-las: compete a um pequeno número de perfeitos abandoná-las, ou seja, pôr de lado os cuidados do mundo; e cabe a todos os fiéis renunciar a elas, isto é, possuir as coisas terrenas de maneira tal que elas não os prendam ao mundo”.23
Os apegos desordenados roubam-nos a paz de alma
O Evangelho ora comentado torna patente o quanto esse desapego radical e completo é a pedra fundamental de nossa vida interior, quer constituamos família, quer façamos parte do Clero, quer estejamos consagrados a Deus em algum instituto religioso.
Nesse sentido, podemos afirmar que a liturgia do 23º Domingo do Tempo Comum é um convite ao desprendimento: “Quem não carrega sua cruz e não Me segue, não pode ser Meu discípulo”. Não significa isso que precisamos ser flagelados, coroados de espinhos ou pregados na cruz, como foi Nosso Senhor Jesus Cristo. A cruz que Ele pede de nós consiste principalmente em vivermos desprendidos de tudo quanto é terreno, tal qual uma águia que voa sem amarras para, nas alturas, melhor contemplar o sol.

Como tantas vezes comprovamos na vida, o apego desordenado gera aflições, inseguranças e receios que nos roubam a paz de alma. Portanto, mesmo o homem não chamado à vida religiosa deve fazer tudo com o coração posto nas coisas de Deus, inclusive ao cuidar dos negócios e da administração dos seus bens. Esse desprendimento é condição para seguir de perto a Nosso Senhor Jesus Cristo. Assim agindo, a alma experimentará a verdadeira felicidade, prenunciativa da alegria que terá no Céu.
1 CONSTITUIÇÕES, art.26: “Nós, clérigos, devemos viver do Altar e do Evangelho, e de quanto nos oferecerem espontaneamente os fiéis, sem pedir esmola alguma aos seculares, nem diretamente nem por intermédio de outrem. Toda a nossa esperança deve estar posta na palavra de Cristo Senhor, que diz: ‘Buscai em primeiro lugar o Reino de Deus e a Sua justiça e todas estas coisas vos serão dadas em acréscimo’”.
2 GOMÁ Y TOMÁS, Isidro. El Evangelio explicado. Barcelona: Casulleras, 1930, v.III, p.283.
3 As duas traduções são corretas, pois o verbo grego μισεω, como o seu equivalente hebreu śānā’, abarca uma gama de significados que vai desde amar menos, detestar, até odiar (cf. BALZ, Horst; SCHEIDER, Gerhard (Eds.). Diccionario exegético del Nuevo Testamento. 2.ed. Salamanca: Sígueme, 2002, col.295).
4S ÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, II-II, q.101, a.4, resp.
5 BALZ e SCHEIDER, op. cit., col.295.
6 GUARDINI, Romano. O Senhor. Rio de Janeiro: Agir, s/d, p.293.
7 Idem, ibidem.
8 SÃO TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, II-II, q.101, a.4, ad.1.
9 Idem, II-II, q.26, a.7, ad.1.
10 Idem, II-II, q.34, a.3, ad.1.
11 DUQUESNE. L’Évangile médité. Lyon-Paris: Perisse Frères, 1849, v.III, p.104.
12 Idem, p.106.
13 Idem, ibidem.
14 GOMÁ Y TOMÁS, op. cit., p.282.
15 MALDONADO, SJ, Juan de. Comentarios a los cuatro Evangelios. Evangelios de San Marcos y San Lucas. Madrid: BAC, 1951, v.II, p.642.
16 SÃO CIRILO DE ALEXANDRIA. Commentaria in Lucam, sermo 105: PG 72, 796.
17 SANTO AGOSTINHO. Quæstiones Evangeliorum, l.2, c.31: PL 35, 1343.
18 Cf. SÃO GREGÓRIO MAGNO. Homiliarum in Evangelia, hom. 37, c. 6: PL 76, 1277-1278.
19 DUQUESNE, op. cit., p.119.
20 SAN AGUSTÍN, apud SANTO TOMÁS DE AQUINO, Catena Aurea.
21 Idem.
22 GOMÁ Y TOMÁS, op. cit., p.285.
23 SAN BEDA, apud SANTO TOMÁS DE AQUINO, Catena Aurea

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

XXIII Domingo do Tempo Comum - Ano C - 2013 - Lc 14, 25-33

Continuação dos comentários ao Evangelho 23º Domingo do Tempo Comum - Ano C - 2013 - Lc 14, 25-33
Verdadeiro sentido do verbo odiar
Ora, logo a seguir, Guardini acrescenta, com muita acuidade, que a exigência de odiar os parentes quando eles nos afastam de Deus “é antinatural, e provoca a tentação de guardar os parentes naturais e de abandonar Jesus”.7
É visando tornar clara a necessidade que o homem tem de fazer violência contra si mesmo para ser verdadeiro discípulo de Cristo, que a Vulgata, São Tomás, São Gregório Magno e muitos outros comentaristas recorrem a um termo tão radical quanto o verbo odiar: “Gregório interpreta esta palavra do Senhor no sentido de que ‘devemos odiar nossos pais e deles fugir, ignorando-os, quando os temos como adversários no caminho de Deus’. Se, de fato, nossos pais nos induzirem ao pecado e nos afastarem do culto divino, no que concerne a este ponto específico devemos odiá-los e abandoná-los”.8
Portanto, é natural, legítimo e até um dever o amor a irmãs e irmãos, filhas e filhos, pai ou mãe; mas devemos repudiá-lo com toda energia, se ele nos impede de seguir a Cristo. Mais uma vez, é São Tomás quem esclarece: “Não nos é ordenado odiar nossos próximos porque eles são nossos próximos, mas somente os que nos impedem de nos unirmos a Deus. Nisso eles não são nossos próximos, mas inimigos, conforme o livro de Miqueias: ‘Os inimigos do homem, os seus próprios familiares’ (Mq 7, 6)”.9
E, mais adiante, acrescenta: “Portanto, deve-se dizer que, segundo o mandamento de Deus, os pais devem ser honrados enquanto estão unidos a nós pela natureza e por afinidade, como mostra o livro do Êxodo. Mas devemos odiá-los se forem um obstáculo em nossa ascensão à perfeição da justiça divina”.10
Fica, assim, posta a questão no seu verdadeiro equilíbrio. E pode a Santa Igreja ensinar com toda autoridade essa doutrina, pois foi ela quem evangelizou os povos pagãos e consolidou no mundo os princípios basilares da família monogâmica e indissolúvel, por sua pregação e pela administração do Sacramento do Matrimônio, instituído por Nosso Senhor Jesus Cristo. Com isso, estabeleceu em situação digna na sociedade a mulher e os filhos, fazendo cessar abusos vigentes no mundo antigo, como o “direito” do pai matar os filhos ou o marido repudiar a esposa. Entretanto, ao mesmo tempo, enfatiza ela que tudo, até mesmo a família, está subordinado ao serviço e à glória de Deus.
Ainda a propósito do verbo odiar, aduz o padre Duquesne um importante esclarecimento: “O termo odiar não significa que devemos fazer ou desejar-lhes o mal; mas ele assinala o ardor, a coragem, a força com a qual devemos lhes resistir, caso se oponham à nossa salvação, nos arrastem para o mal, nos demovam de assumir o estado ao qual Deus nos chama, ou queiram engajar-nos naquele ao qual Deus não nos chama; caso nos impeçam de abraçar a verdadeira Fé, e se esforcem por nos reter ou nos lançar no erro”.11
Em sentido contrário, podemos considerar numerosos exemplos que nos mostram como são inestimáveis, e a certo título insuperáveis, o estímulo e o apoio da família para os seus membros se santificarem: Santa Mônica, cujas lágrimas e orações obtiveram a conversão do filho; São Basílio, o Velho, e Santa Emília, pais de São Basílio, São Gregório de Nissa, Santa Macrina e São Pedro de Sebaste; ou os Beatos Luís e Zélia Martin, pais de Santa Teresinha do Menino Jesus.
O prêmio virá na glória eterna
27 “Quem não carrega sua cruz e não caminha atrás de Mim, não pode ser Meu discípulo”.
Estas palavras de Jesus descartam de vez todas as esperanças triunfalistas que a maior parte dos judeus tinha a propósito do reino messiânico. Com efeito, em toda a Sua pregação, jamais oferecera Nosso Senhor a plenitude da felicidade nesta vida, mas sim a glória eterna, cuja via passa pela abnegação e pelo sacrifício. Per crucem ad lucem (é pela cruz que se chega à luz), reza a conhecida divisa latina.
Bem ilustra o Apóstolo essa necessidade de sacrifício e mortificação, recorrendo a um exemplo especialmente vivo para os seus seguidores em Corinto: “Todo atleta se impõe todo tipo de disciplina. Eles assim procedem para conseguir uma coroa corruptível. Quanto a nós, buscamos uma coroa incorruptível! Por isso eu corro, não como às tontas. Eu luto, não como quem golpeia o ar. Trato duramente meu corpo e o subjugo, para não acontecer que, depois de ter proclamado a mensagem aos outros, eu mesmo seja reprovado” (I Cor 9, 25-27).

Ainda sobre este versículo do Evangelho, interessante é recordar uma piedosa consideração do padre Duquesne: “Comparemos nossa cruz com a de Jesus Cristo e as dos mártires, e envergonhemo-nos de nossa covardia!”.12 Não cabe, portanto, levá-la a contragosto, reclamando do seu peso ou manifestando amargura pelos sofrimentos que ela nos traz. Quem assim procede, arrasta a cruz, não a carrega; em consequência, não pode ser considerado discípulo do Mestre. Seguir Nosso Senhor não significa apenas andar fisicamente atrás d’Ele, como faziam muitos naquela multidão, mas sim “imitar Seus exemplos, praticar Suas virtudes”, acentua o mesmo padre Duquesne.13
Continua no próximo post