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segunda-feira, 8 de agosto de 2016

Evangelho XX Domingo Tempo Comum – Ano C – Lc 12,49-53

Comentários ao Evangelho XX Domingo do Tempo Comum – Ano C – Lc 12,49-53
Naquele tempo, disse Jesus a seus discípulos: 49Eu vim para lançar fogo sobre a terra, e como gostaria que já estivesse aceso! 50Devo receber um batismo, e como estou ansioso até que isto se cumpra! 51Vós pensais que eu vim trazer a paz sobre a terra? Pelo contrário, eu vos digo, vim trazer divisão. 52Pois, daqui em diante, numa família de cinco pessoas, três ficarão divididas contra duas 53e duas contra três; ficarão divididos: o pai contra o filho e o filho contra o pai; a mãe contra a filha e a filha contra a mãe; a sogra contra a nora e a nora contra a sogra”. Lc 12,49-53
O fogo purificador!
Anunciando o momento em que a face da Terra será renovada pelo incêndio do amor divino, Nosso Senhor revela a extraordinária força que nasce de seu sacrifício e manifesta o ardente desejo de consumá-lo.
I - As manifestações de amor do Divino Mestre
         Comoventes e admiráveis são as manifestações de misericórdia de Nosso Senhor Jesus Cristo no decorrer de sua vida pública. Sem jamais recusar benefício algum aos infelizes que d’Ele se aproximavam necessitando de auxílio, realizava curas corpóreas e espirituais nunca antes testemunhadas. Certa vez, enquanto caminhava pela estrada que conduzia à cidade de Naim, deparou-se com o funeral de um jovem que falecera deixando a mãe, uma pobre viúva, desamparada e sozinha. Compadecido da triste sorte que a aguardava, Jesus fez o jovem voltar à vida e o restituiu à sua progenitora em excelentes condições físicas, certamente melhores que as anteriores. Noutra ocasião, dez leprosos levantaram a voz a distância, implorando a Ele o fim de seus males. Receberam um olhar benigno do Mestre, seguido da almejada cura, mediante a qual regressaram à vida social, cheios de júbilo. Ainda maiores que estes, porém, eram os benefícios feitos às almas, pelo perdão dos pecados a todos os faltosos compungidos. Incessantes eram os milagres e incomensurável o alcance de seus favores. Por isso, o Apóstolo Pedro sintetizou tais obras afirmando que Ele "pertransivit benefaciendo passou fazendo o bem” (At 10, 38).
         Como ouvimos com frequência palavras cheias de comiseração saídas dos próprios lábios divinos, o ensinamento do Evangelho deste 20º Domingo do Tempo Comum pode causar-nos certa perplexidade por não se coadunar, à primeira vista, com o modo de proceder de Nosso Senhor consignado em outras passagens. Haveria, portanto, uma contradição no ministério de Jesus? Ou suas palavras sobre o fogo, a divisão e o rompimento dos laços familiares contêm uma profundidade que exige uma análise mais acurada? O texto proposto pela Liturgia deste domingo oferece uma privilegiada oportunidade de compreendermos a verdadeira amplitude da perfeitíssima pregação de Cristo e os seus desdobramentos para a vida de cada um de nós.
 II - um novo fogo é trazido à Terra
Naquele tempo disse Jesus aos seus discípulos: 49 “Eu vim para lançar fogo sobre a Terra, e como gostaria que já estivesse aceso!”

         Ousada é a afirmação do versículo inicial, no qual Nosso Senhor declara ter assumido a Encarnação com a finalidade de propagar um fogo, sendo tão veemente o seu desejo de vê-lo arder que aguarda com ansiedade a chegada de tal momento. Deveríamos entender tal afirmação num sentido estrito? Teria Ele vindo como uma tocha chamejante, para percorrer todos os quadrantes a fim de produzir um incêndio universal? É evidente que não.
        Por  outro  lado,  sabemos figura do fogo aparece na Escritura com diversos significados, na maioria das vezes com uma conotação punitiva. No episódio em que uma labareda saída de junto do Senhor devorou os duzentos e cinquenta que tinham se revoltado contra Moisés, tão eficaz foi o efeito produzido que não restaram sequer indícios dos difamadores (cf. Eclo 45, 22-24; Num 16, 35). Com um propósito semelhante Elias fez descer fogo do Céu sobre dois capitães, cada qual em companhia de cinquenta soldados, todos imediatamente incinerados (cf. II Re 1, 9-12). O Apocalipse prenuncia o fogo que deve ser lançado à Terra na conflagração final para purificá-la (cf. Ap 20, 9-10). Além disso, as menções às penas infernais sempre são acompanhadas pela imagem de um incêndio peculiar, criado por Deus para este fim, cuja energia é Ele próprio, um fogo inteligente que não se apaga.1
         Ora, o contexto deste Evangelho denota que o Salvador não alude às passagens antigas já conhecidas pelo público ao qual pregava, nem se refere às chamas do inferno. Suas palavras, envoltas em ar de mistério, versam sobre um fogo novo, preconizado apenas pela pregação de São João Batista.
A humanidade necessitava de uma purificação
         À multidão comprimida, ávida por saber se estava ou não diante do Messias, declarou o Precursor em tom solene: “Eu vos batizo na água, mas eis que vem outro mais poderoso do que eu, a quem não sou digno de desatar a correia das sandálias; ele vos batizará no Espírito Santo e no fogo” (Lc 3, 16). Era o anúncio do batismo sacramental, incomparavelmente mais profundo, eficaz e perfeito que o de penitência, e acompanhado por um fogo renovador.
       De fato, antes do advento de Nosso Senhor, a humanidade estava pervadida e maculada pelos efeitos do pecado original, tendo se tornado verdadeira escrava das paixões desordenadas. Ao longo dos séculos, houve um paulatino enraizamento dessas más tendências com todas as lamentáveis consequências registradas pela História, fazendo-se indispensável uma purificação. Como operar a santificação da sociedade em tais circunstâncias? Pelas vias normais do esforço ou pela prática de uma virtude natural não se atinge tão elevado objetivo; fazia-se imprescindível um fator determinante originado por iniciativa divina, uma vez que o homem não tinha meios de vencer sua própria maldade, sendo este o magnífico remédio que o Redentor nos viera trazer.
O fogo do amor divino
         Através da união da natureza humana com a divina em uma só Pessoa, e pelos méritos infinitos da Encarnação, Paixão, Morte e Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo, desceu à Terra um fogo capaz de purificar o pântano no qual os homens estavam atolados: “Jesus veio do Céu à Terra para pôr fogo nas almas a fim de depurá-las, queimar suas escórias e torná-las pura prata e ouro diante de Deus: é o fogo da santidade, da caridade; é todo o sistema de santificação que Jesus trouxe ao mundo”.2 Com a Redenção, fomos elevados a um patamar espiritual inimaginável, pois foi-nos aberta a possibilidade de sermos agradáveis a Deus e partícipes de sua própria divindade. Conclamados a assumir a mesma perfeição do Pai Celeste (cf. Mt 5, 48), recebemos para isso a efusão do amor de Cristo que acrisola nosso próprio amor, torna-o meritório e fecundo, além de nos oferecer a possibilidade de vencermos o pecado, que embora ainda lance seu aguilhão já não impera mais. À medida que os homens se deixam penetrar pelo fogo da caridade, os obstáculos aos ditames da graça vão sendo transpostos, porque nada pode deter a marcha daqueles que amam. Quem se entrega por inteiro ao amor sobrenatural torna-se capaz de realizar prodígios, tal como fizeram os grandes heróis da Fé.
         Santa Joana d’Arc, por exemplo, montou no cavalo, vestiu uma armadura, liderou um exército e conquistou a liberdade de sua nação. Santa Catarina de Sena, grande Doutora da Igreja, conseguiu que o Papa voltasse à Sé de Roma após mais de meio século de exílio em Avignon, e aconselhou com tanta sabedoria os poderosos de seu tempo que ninguém pôde questionar a inspiração divina de suas palavras. Para ambas não houve lei de prudência humana que significasse um impedimento. Movidas por esse fogo abrasador, devotaram-se a uma causa superexcelente, enfrentaram com determinação  sobre-humana  as maiores adversidades e mudaram os rumos da História.
Essas foram almas que possuíram a plenitude da caridade, para cuja representação Nosso Senhor não encontrou melhor símbolo que o fogo, pois a chama é atraente, bela, eleva seu brilho para o céu e ilumina. Ao mesmo tempo, contudo, queima, e diante desse poder de combustão não há quem cometa a temeridade de julgá-lo inócuo.
O batismo do Calvário
         50 “Devo receber um batismo, e como estou ansioso até que isto se cumpra!”
          Evidenciando ainda mais quanto a propagação deste fogo depende de seu próprio impulso, o Mestre revela ter necessidade de passar por um batismo, valendo-Se, para isto, da incisiva formulação “devo receber”. Já recebera Ele, nos primórdios da vida pública, o batismo de São João — do qual não precisava, mas quis ser dele partícipe para santificar as águas do universo, entre outras razões 3 —, o que torna claro não Se referir aqui ao batismo penitencial. Acima deste — e infinitamente mais valioso! — está o doloroso batismo de sangue operado pelos tormentos da Paixão. O autorizado parecer de Maldonado sintetiza a opinião dos exegetas a esse respeito, uma vez que Nosso Senhor deixa a afirmação envolta numa penumbra um tanto misteriosa: “Chama batismo, indubitavelmente, à sua Paixão e morte, como todos os intérpretes admitem […]. De sorte que ser batizado, que é propriamente submergir-se nas águas, interpreta-se aqui por padecer e morrer; e batismo, por tribulação, paixão e morte”.4 Dada a suprema perfeição de Cristo, compreende-se não redundar esse batismo em um benefício para Ele, que é Deus, mas sim para a humanidade.
         Qual seria a razão de estar Ele ansioso para que isto se cumprisse? O resgate do gênero humano a ser operado através dessa entrega, pois seu amor infinito pelas almas O impelia a querer purificá-las quanto antes e fazer com que esse fogo começasse a consumir as misérias humanas, transformando os homens em perfeitos filhos de Deus. Era o “desejo ardente e generoso com que, como Redentor, Jesus queria de alguma maneira antecipar sua Paixão, devido aos frutos de salvação que ela haveria de produzir para a linhagem humana”.5
       Tal como se verifica em todos os pormenores e ditos da vida do Salvador, um sublime ensinamento dimana desta passagem: Jesus nos mostra o quanto devemos anelar por ver logo realizado o bem que nos cabe fazer. A partir do momento em que a vontade divina a nosso respeito se torna clara, devemos ansiar por cumpri-la sem demora, empenhando nisso todos os nossos esforços, dedicação e sacrifícios, a fim de sermos instrumento da graça para a salvação do próximo. O fogo da caridade não comporta delongas, pois estas significam um esmorecimento de fervor; assim, Jesus, movendo-Se apenas por amor ao Pai e a nós, caminha ávido para o tormento, como sublinha Santo Ambrósio: “Tamanha é a condescendência do Senhor, que testemunha ter um grande desejo em seu coração, de infundir-nos a devoção, de consumar em nós a perfeição e de levar a cabo, em nosso favor, sua Paixão”.6
A dadivosidade do Coração de Jesus
         A infinita dadivosidade de tal entrega nos conduz à consideração dos benefícios recebidos de Cristo: Ele quis encarnar-Se, sofrer todas as vicissitudes de uma natureza humana padecente, tais como fome, frio, sede, calor, cansaço, injúrias… e, além de tudo, receber o batismo de sangue. Realizou o holocausto com o intuito de reparar nossas faltas e oferecer-nos a purificação de todas as manchas do pecado de nossos primeiros pais, Adão e Eva, devolvendo-nos o estado de graça e reintroduzindo-nos, assim, na familiaridade com Ele pela participação da natureza divina, concedendo-nos o privilégio de sermos filhos do Pai por adoção: seus irmãos e coerdeiros, para gozarmos a eternidade junto a Ele. Desse modo entrevemos, ainda que de forma muito imperfeita, as dimensões extraordinárias do Sagrado Coração de Jesus, coração humano unido hipostaticamente a Deus, no qual há inteira conformidade entre o amor que parte da humanidade e o que se origina na divindade. São dois amores coexistentes num mesmo Coração, tornando-se, por isso, incompreensíveis, inatingíveis e inabarcáveis por nosso limitado intelecto.
         Depois do ápice de doação desse Coração consumada no Calvário, compreende-se que o desenrolar da História não mais poderia ser como antes.
III - Uma nova era para a humanidade
         Após ter sintetizado em dois extraordinários versículos o transbordamento de amor com o qual trouxe a salvação à humanidade, Nosso Senhor acentua, nos seguintes, as consequências da adesão à sua Pessoa e doutrina. Com efeito, desde o primeiro pecado cometido por Adão e Eva até a Encarnação, existia uma força predominante na face da Terra que podemos designar como sendo o polo do mal. Embora vigorasse a promessa divina, assegurando a Redenção, e a solicitude do Criador se exercesse de modo constante em favor dos judeus, é patente que entre os demais povos da Antiguidade existia um só consenso humano pelo qual o mal reinava em todos os ambientes, não havendo meios de os bons realizarem obras relevantes para destruírem o império do demônio. Com base naquela pseudo-harmonia produzida pelo pecado — uma unidade enganosamente perfeita —, os poderes infernais estabeleceram a coesão do mal. Era, por assim dizer, proibido ser bom, e todos os homens, com raríssimas exceções, adaptavam-se à mentalidade dominante. Até os que praticavam o bem o faziam quase sempre na surdina, sem se tornarem conhecidos, sob pena de suas boas ações serem aniquiladas com ímpeto avassalador, caso elas adquirissem vulto significativo.
         Ora, a vinda de Cristo ateou o fogo do amor divino sobre a Terra e inaugurou o polo do bem, com extraordinária força de expansão. Como observa o padre Manuel de Tuya: “Esse fogo que Ele propaga na Terra exigirá que se tome partido por Ele. Incendiará muitos, e por isso Ele traz a ‘divisão’, não como um objetivo, mas como uma consequência”.7 Uma radical separação torna-se inevitável, pois quem adere ao bem restringe a ação de quem opta pelo mal e impede o seu progresso, abrindo-se, desse modo, um abismo que os distancia.
Jesus Se opõe à tranquilidade da desordem
         51 “Vós pensais que eu vim trazer a paz sobre a Terra? Pelo contrário, eu vos digo, vim trazer divisão”.
Estamos diante de uma das afirmações mais incisivas proferidas pelo Mestre em todo o Evangelho: “não vim trazer a paz”. Como é que, o “príncipe da paz” profetizado por Isaías (9, 5), Ele, que ao invocar a presença do Espírito Santo dirá: “A paz esteja convosco” (Jo 20, 19), prega não ter vindo trazê-la? Eis um versículo que causa perplexidade nos espíritos cartesianos. A explicação, porém, é simples e profunda: sua paz não coincide com a que é entendida a partir de conceitos deturpados: “não vo-la dou como o mundo a dá” (Jo 14, 27). A autêntica paz é a tranquilidade da ordem, nos ensina Santo Agostinho.8 A paz rejeitada por Nosso Senhor é a que se estabelece quando as almas estão unidas no pecado, pela cumplicidade que leva os perversos a se protegerem entre si e a viverem em aparente concórdia, numa falsa harmonia fundamentada no mal. Por vezes pode haver dissensões, originadas sempre em interesses pessoais e egoístas, enquanto no campo dos princípios mantêm-se de pleno acordo.
Um adúltero, por exemplo, protege o cúmplice para fruir de seu relacionamento ilícito; os membros de uma quadrilha de salteadores apoiam-se no momento de roubar, para se apropriarem mais facilmente do bem alheio. A aparente paz reinante entre eles é na verdade a conivência no mal, porque o princípio de união que os congrega é o pecado; estão mancomunados numa acomodação de desordem na qual não há a verdadeira paz, por não haver conformidade com a ordem. Poderíamos comparar tal situação ao paradeiro de um infecto pântano onde se encontra todo tipo de germe de doença. Embora as águas sejam calmas, não estão em ordem, porque reina a podridão, proliferam os micróbios maléficos. A origem desse mútuo apoio está no fato de ser o homem dotado de vigoroso instinto de sociabilidade e, por isso, encontrar dificuldade em praticar o mal sozinho, contrariando sua própria consciência. A fim de romper a Lei de Deus, procura sempre uma companhia que o ajude a amortecer suas resistências internas: o bandido deseja que outros o sigam na rapina; o impuro procura a sociedade de outros impuros.
         A divisão inaugurada por Jesus se cifra numa intransigente censura a essa postura de cumplicidade no mal, feita, sobretudo, pela reta conduta das almas virtuosas e pela corrente de bons por elas suscitada. Ao fundar a Igreja imortal, Nosso Senhor deu ao bem uma força divina capaz de desmascarar o erro dos que abraçam o pecado, de mostrar quão hediondo ele é e opor resistência ao seu domínio. A virtude e o bem, até a vinda de Cristo, eram de limitado alcance. Ele veio dar-lhes onipotência e transformá-los no fator decisivo da História. A separação entre bons e maus tornou-se uma realidade muito mais vincada do que era antes, com uma peculiar característica: os bons, quando são íntegros, sempre saem vitoriosos. Como sublinha o padre Raniero Cantalamessa, “Ele veio trazer a paz e a unidade no bem, que conduz à vida eterna, e veio eliminar a falsa paz e unidade, que apenas servem para adormecer as consciências e levá-las à ruína”.9 A paz d’Ele é a paz da virtude, da boa ordenação das coisas e da prática de todos os mandamentos da Lei de Deus.
Quem abraça a virtude semeia divisão
         52 “Pois, daqui em diante, numa família de cinco pessoas, três ficarão divididas contra duas e duas contra três; 53 ficarão divididos: o pai contra o filho e o filho contra o pai; a mãe contra a filha e a filha contra a mãe; a sogra contra a nora e a nora contra a sogra”.
Ao mostrar como a divisão que trouxera possui uma aplicação concreta, o Divino Mestre anuncia a cisão no cerne da família, a instituição mais cara e arraigada ao coração humano. Nesta passagem Jesus não alude às desavenças comuns existentes com frequência entre os membros de um mesmo lar, mas sim à rejeição daqueles que O amam pelos parentes mais próximos, quando estes se fecham ao convite da graça.
         Não se trata, é claro, de uma regra absoluta, pois, caso todos estejam no caminho da santidade, a família experimenta a verdadeira paz. Não obstante, se a chama do amor divino não penetra o conjunto, deixa de existir o principal fator de coesão, conforme ressalta o ensinamento de Santo Ambrósio: “Se é preciso dar a honra correspondente aos pais, quanto mais ao Criador dos pais, a quem tu deves dar graças por teus próprios pais! E se eles não O reconhecem de modo absoluto como a seu Pai, como podes tu reconhecê-los? Na realidade, Ele não diz que se deva renunciar a tudo o que nos é caro, porém, que se deve dar a Deus o primeiro lugar. […] Não te é proibido amar teus pais, mas sim antepô-los a Deus; porque as coisas boas da natureza são dons do Senhor”.10
         Como os que vivem em pecado têm graves problemas de consciência, insatisfação e insegurança, desejam perverter ou destruir quem denuncia sua iniquidade. Esse ímpeto maléfico não respeita nem sequer os laços da natureza, de si tão elevados e abençoados por Deus, como vemos no martírio de Santa Bárbara ou na perseguição sofrida por São Francisco de Assis, além do testemunho de incontáveis outros bem-aventurados. Neles cumpriu-se à risca a predição feita neste versículo, pois foram perseguidos pelos próprios pais.
         É esse fogo da caridade que Nosso Senhor veio trazer à Terra que desperta a inimizade dos adeptos da pseudopaz, produz um combate interno na vida familiar e gera uma situação na qual a virtude da fortaleza deve ser praticada, tornando inaceitável a união propagada pelos que desprezam a Deus. Não cabe dúvida de que, em certas ocasiões, devemos praticar a prudência e lançar mão de todos os meios para obter de Deus a salvação eterna de nossos parentes, mas tudo isso sem abandonar a firmeza de nossas convicções cristãs, as quais valem mais que qualquer vínculo terreno.
IV - Acendei novamente o fogo do vosso amor!
          Passados dois milênios desta arrebatadora pregação do Salvador, a Liturgia de hoje vem repetir a conclamação  feita por Ele, dessa vez voltada a cada um de nós. Com a mesma caridade empregada ao dirigir-Se a seus discípulos, Jesus nos convida a nos deixarmos consumir como uma chama de louvor e adoração a Ele, recebendo o fogo sagrado que viera trazer ao mundo. Abramos nossas almas para essa combustão renovadora que queima os egoísmos, sana os problemas, eleva as mentes ao desejo das coisas celestes e transpõe as barreiras da falta de confiança, de fé e de ânimo. Basta uma leve correspondência de nossa parte a esse amor para que maravilhas se operem, o poder das trevas seja vencido e se consolide o polo do bem. E quando o vento contrário da divisão se abater sobre nós, tenhamos presente que Jesus já o anunciara e não nos negará as forças para a vitória, pois os maus não podem triunfar sobre o fogo da integridade, da inocência, da radicalidade no bem; numa palavra, da santidade.
         Com quanto pesar constatamos que a humanidade de nossos dias está precipitada num insondável abismo de pecado e, mais do que nunca, necessita de uma purificação. A gravidade das ofensas cometidas contra Deus e os riscos de salvação eterna pelos quais passam as almas indicam a indiferença de muitos face à mensagem salvífica do Evangelho. Nessa conjuntura cabe-nos fazer uma pergunta, e com ela um exame de consciência: em que medida temos colaborado na reversão desse quadro? Qual tem sido nossa generosidade à vista de tal situação, cuja única solução se encontra numa total entrega de nossa vida a Cristo, para a qual devemos caminhar com santa sofreguidão?
         Um exemplo extraordinário de amor desapegado e cheio de fervor é-nos oferecido por Nossa Senhora. Ela estava consumida pela caridade, preocupando-Se com a situação do mundo, com o resgate das almas que se perdiam, desejando cooperar na conversão da humanidade. Ao Se considerar nada, ardia de zelo e foi, por esta razão, visitada pelo Arcanjo São Gabriel, que Lhe trouxe o prêmio por seu fogo de amor: a Encarnação da Segunda Pessoa da Santíssima Trindade em seu seio.
         Conforme comenta o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira, “a principal alegria de Nosso Senhor durante a vida terrena estava numa lâmpada acesa na casa de Nazaré: o Coração Sapiencial e Imaculado de Maria, cujo amor excedia o de todos os homens que houve, há e haverá até o fim do mundo”.11 Peçamos à Virgem Santíssima que Se digne transmitir-nos uma centelha da caridade ardente de seu Coração, a fim de que seu Divino Filho Se utilize de nós como fiéis instrumentos na propagação desse fogo purificador por toda a face da Terra.  
1) A esse respeito, diz Garrigou-Lagrange: “São Tomás (C. Gentes, IV, c.90; IIIa; Suppl., q.70, a.3) e seus melhores comentadores admitem que o fogo do inferno recebe de Deus virtude de atormentar os renegados” (GARRIGOU-LAGRANGE, OP,  Réginald. O homem e a eternidade. Lisboa: Aster, 1959, p.153). Ver também SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. Suppl., q.97, a.5, ad 3; a.6, ad 2.

2) GOMÁ Y TOMÁS, Isidro. El Evangelio explicado. Años primero y segundo de la vida pública de Jesús. Barcelona: Acervo, 1967, v.II, p.195.
3) Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO, op. cit., III, q.39, a.1.

4) MALDONADO, SJ, Juan de. Comentarios a los Cuatro Evangelios. Evangelios de San Marcos y San Lucas. Madrid: BAC, 1956, v.II, p.609.

5) FILLION, Louis-Claude. Vida de Nuestro Señor Jesucristo. Vida pública. Madrid: Rialp, 2000, v.II, p.385.

6) SANTO AMBRÓSIO. Tratado sobre el Evangelio de San Lucas. L.VII, n.133. In: Obras. Madrid: BAC, 1966, v.I, p.413.

7) TUYA, OP, Manuel de. Biblia Comentada. Evangelios. Madrid: BAC, 1964, v.V, p.855.

8) Cf. SANTO AGOSTINHO. De Civitate Dei. L.XIX, c.13, n.1. In: Obras. Madrid: BAC, 1958, v.XVI-XVII, p.1398.

9) CANTALAMESSA, OFMCap, Raniero. Echad las redes. Reflexiones sobre los Evangelios. Ciclo C. Valencia: Edicep, 2003, p.279.

10) SANTO AMBRÓSIO, op. cit., L.VII, n.136, p.415.

11) CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Conferência. São Paulo, 7 abr. 1984.
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