À primeira vista seríamos levados a julgar compreensível que Nosso Senhor Jesus Cristo desejasse acalmar seus discípulos das perturbações que os acometiam desde a prisão no Horto das Oliveiras. E de fato, esse bem poderia ser um de seus intentos, mas o significado mais profundo não reside nessa interpretação. Para melhor o entendermos, perguntemo-nos o que é paz.
“Paz é a tranqüilidade da ordem”, diz Santo Agostinho (4), ou seja, uma ordem permanentemente tranqüila. E São Tomás demonstra ser a paz efeito próprio e específico da caridade, pois todo aquele que está em união com Deus vive na perfeita ordem, ao harmonizar todas as suas potências, sentidos e faculdades à sua causa eficiente e final (5).
Essa união faz brotar na alma que a possui um profundo repouso interior e nem sequer os inimigos externos a perturbam, porque nada lhe interessa a não ser Deus: “Se Deus está conosco, quem será contra nós?” (Rom. 8, 31).
Ora, sabemos pela Teologia que o Espírito Santo é a Terceira Pessoa da Santíssima Trindade e procede do Pai e do Filho por via do Amor. N’Ele está a raiz, ou semente, da qual nasce o fruto da caridade. Ao amarmos a Deus e ao próximo, a alegria e o consolo penetram em nosso interior. Desse amor e gozo, procede a paz (6).
Jesus, desejando-lhes a paz, oferecia-lhes um dos principais frutos desse Amor infinito que é o Espírito Santo.
Dito isto, mostrou-lhes as mãos e o lado. Os discípulos alegraram-se muito ao ver o Senhor.
Por esta atitude do Senhor podemos bem avaliar o quanto o pavor havia penetrado na alma de todos, apesar de ouvirem a voz do Divino Mestre desejando-lhes a paz.
Por isso tornou-se indispensável mostrar-lhes aquelas mãos que tanto haviam curado cegos, surdos, leprosos e inúmeras outras enfermidades, mãos que talvez eles mesmos tivessem, a seu tempo, osculado. Sim aquelas mãos que, havia pouco, tinham sido transpassadas por terríveis cravos. Era preciso comprovarem tratar-se do Redentor, vendo seu lado perfurado pela lança de Longinus.
Naquele momento sentiram a alegria pervadir suas almas, pois constataram não estar diante deles um fantasma, mas sim o próprio Jesus em Corpo, Sangue, Alma e Divindade. Cumpria-se assim sua promessa: “Hei de ver-vos de novo, e o vosso coração se alegrará, e ninguém vos tirará a vossa alegria” (Jo 16, 22).
Transparece nessa atitude seu profundo intuito apologético, ao fazê-los ver suas santas chagas, ao contrário de como procedera com Santa Maria Madalena, ou até mesmo com os discípulos de Emaús.
Ele disse-lhes novamente: “A paz esteja convosco. Assim como o Pai Me enviou, também vos envio a vós”.
Novamente Jesus lhes deseja a paz, e deixa assim entrever quão importante é a tranqüilidade da ordem. Como objetivo imediato, visava Jesus proporcionar-lhes a indispensável serenidade de espírito face às desavenças e mortais perseguições que lhes moveriam os judeus. Por outro lado, Jesus se dirige aos séculos futuros e, portanto, à própria era na qual vivemos. Também a nós Ele nos repete o mesmo desejo de paz formulado aos Apóstolos naquele momento. Sim, especialmente à nossa civilização que tem suas raízes em Cristo — Rei, Profeta e Sacerdote — cuja entrada neste mundo fez-se sob o belo cântico dos Anjos: “Paz na terra” (Lc 2, 14). Não foi outro o dom por Ele oferecido antes de morrer na Cruz, ao despedir-se: “Dou-vos a paz, deixo-vos minha paz” (Jo 14, 27). Entretanto, a humanidade hoje se suicida em guerras, terrorismos e revoluções. E qual a causa? Não queremos aceitar a paz de Cristo.
Tal qual a caridade, a paz começa na própria casa. Antes de tudo, é preciso construí-la dentro de nós mesmos, dando à razão iluminada pela Fé o governo de nossas paixões. Sem essa disciplina, entramos na desordem. Ora, vai se tornando cada vez mais raro encontrar-se um ser humano no qual esse equilíbrio é procurado com base no esforço e na graça. O espontaneísmo domina despoticamente em todos os rincões. Vivemos os axiomas da Sorbonne de 1968: “É proibido proibir” — “A imaginação tomou conta do poder” — “Nada reivindicar, nada pedir, mas tomar, invadir”. Eles pareciam ser para a humanidade uma pedra filosofal de felicidade, sucesso e prazer... Que desilusão!
A paz deve ser a condição normal e corrente para o bom relacionamento social, sobretudo na célula mater da sociedade, a família. Eis um dos grandes males de nossos dias: a autoridade paterna se auto-destruiu, a sujeição amorosa da mãe se evanesceu e a obediência dos filhos foi carcomida pelo capricho, desrespeito e revolta. Essas enfermidades morais, transpostas para a vida da sociedade, redundam em luta civil, de classes e até mesmo entre os povos.
A humanidade sofre essas e muitas outras conseqüências do pecado de ter repudiado a paz de Cristo e abraçado a paz do mundo, ou seja, o consumismo, o igualitarismo, o laicismo, a adoração da máquina, etc.
Sentencia a Escritura: “Não há paz — diz Javé — não há paz para os ímpios” (Is 57, 20). “Curavam as chagas da filha do meu povo com ignomínia, dizendo: Paz, paz; quando não havia paz” (Jer 6,14). Os milênios transcorreram e nos encontramos novamente na mesma perspectiva de outrora, com uma agravante: corruptio optimi pessima (a corrupção do ótimo resulta no péssimo). Sim, a rejeição da paz verdadeira trazida pelo Verbo Encarnado é muito pior do que a impiedade antiga, e de conseqüências ainda mais drásticas.
A ordem fundamental do edifício da paz deriva essencialmente do Evangelho e do Decálogo, ou seja, do amor a Deus sobre todas as coisas e ao próximo por amor a Ele. Daí floresce a paz interior do homem e a harmonia com todos os outros, amados por ele com real caridade. Esse é o melhor remédio para todos os males atuais, desde a “epidemia” das depressões — enfermidade paradigmática de nosso século — até o terrorismo. É indispensável reconhecermos em Deus nosso Legislador e Senhor, pois, se ao longo da vida não existir a moral individual nem a familiar, haverá menos ainda o verdadeiro equilíbrio social e internacional. O caos de nossos dias no-lo demonstra em demasia.
Sendo a paz fruto do Espírito Santo, fora do estado de graça, e da prática da caridade, não nos é dado encontrá-la. Por isso quem se torna empedernido no pecado não pode gozar da paz: “Mas os malvados são um mar proceloso que não pode aquietar-se e cujas ondas revolvem lodo e lama. Não há paz — diz Javé — para os ímpios” (Is 57, 20).
Essa é a razão mais específica do fato de Jesus ter desejado uma segunda vez a paz a seus discípulos. É Ele o autor da graça e, portanto, o autor da paz: “Cristo é a nossa paz” (Ef 2, 14). “A graça e a verdade foram trazidas por Jesus Cristo” (Jo 1, 17).
Após esse segundo voto de paz, Jesus envia seus discípulos à ação, tornando claro o quanto é necessário jamais se deixar tomar pelo afã dos afazeres, perdendo a serenidade. Um dos elementos essenciais para o apostolado bem sucedido é a paz de alma de quem o faz.
Quanto se fala de paz, hoje em dia, e quanto se vive no extremo oposto dela! O interior dos corações se encontra penetrado de tédio, apreensão, medo, desânimo e frustração, quando não de orgulho, sensualidade e falta de pudor. A instituição da família vai se tornando uma peça de antiquário. A ânsia de obter, não importa por que meio, sem levar em conta o direito alheio, vai caracterizando todas as nações dos últimos tempos. Em síntese, não há paz individual, nem familiar, nem no interior das nações.
Eis porque nossos olhos devem voltar-se à Rainha da Paz a fim de rogar sua poderosa intercessão para que seu Divino Filho nos envie uma nova Pentecostes e seja, assim, renovada a face da terra, como melhor solução para o grande caos contemporâneo.