Final dos comentários ao Evangelho Mc 10, 17-30
O cêntuplo já neste mundo
O cêntuplo já neste mundo
“Pedro começou a dizer-Lhe: ‘Eis que deixamos tudo e Te seguimos’. 29 Respondeu-lhe Jesus: ‘Em verdade vos digo: ninguém há que tenha deixado casa ou irmãos, ou irmãs, ou pai, ou mãe, ou filhos, ou terras por causa de Mim e por causa do Evangelho 30 que não receba, já neste século, cem vezes mais casas, irmãos, irmãs, mães, filhos e terras, com perseguições e no século vindouro a vida eterna’”.
Talvez pelo fato de se sentirem apanhados, São Pedro, impulsivo porta-voz de todas as perplexidades dos Apóstolos, formula uma frase que, no dizer de Lagrange, “resume todo o episódio precedente, do ponto de vista dos discípulos”.17
Segundo Maldonado — o qual segue a opinião de Orígenes, São Jerônimo e São João Crisóstomo — quis Pedro, com sua afirmação, lembrar a Cristo o fato de terem os Apóstolos já cumprido anteriormente aquilo que era agora pedido ao jovem rico.18 No mesmo sentido se pronuncia Lagrange, observando que a afirmação do Príncipe dos Apóstolos foi feita “com uma certa satisfação que parece solicitar uma aprovação”.19 Mas caberia perguntar, com Maldonado: “Por que, então, duvidava? Por que não creu firmemente que também para eles havia um tesouro no Céu?”. Ao que ele próprio responde: “Talvez porque pensassem que Cristo prometia tão grande recompensa àquele jovem por causa das muitas riquezas que este devia abandonar; ora, como os Apóstolos possuíam apenas coisas de pouco valor, esperavam receber algo, sim, mas não se atreviam a esperar tanto; por isso perguntam como e quanto será”.20
No fundo da afirmação de Pedro havia uma desconfiança e uma objeção. Jesus, entretanto, não os repreende. Sendo a Bondade em essência, Ele os trata com carinho e acrescenta, ao prêmio da vida eterna no Céu, uma recompensa ainda aqui na terra.
Comentam certos autores que o Senhor, fazendo essa promessa, quis afirmar que quem por causa dEle deixar os bens desta terra, receberá em troca bens de valor infinito. Ou seja: quem por Ele abandonar aquilo que é “carnal”, receberá em troca o prêmio do bem “espiritual”.
Parece-nos, entretanto, que as palavras do versículo 30 — “já neste século” — tornam claro o caráter terreno dessa recompensa, cuja efetivação concreta na era apostólica é assim assinalada por Fillion: “Nos primórdios da Igreja, quando tão amiúde os neófitos precisavam romper os mais estreitos laços de família para se alistarem no serviço de Cristo, encontravam eles na grande comunidade cristã irmãos e irmãs, pais e mães que lhes suavizavam os padecimentos causados por uma violenta separação e enchiam de consolo seus doloridos corações”.21
Sob uma perspectiva mais atemporal, assinala o padre Didon que o Espírito divino “não só traz a todos aqueles que invisivelmente O recebem o antegozo dos bens celestiais, eternos, infinitos, mas, além disso, exalta ainda a vida deste mundo, aumenta seus recursos, harmoniza as suas energias, transfigura todos os seus atos. Entre os seres eleitos que este Espírito aproxima, formam-se laços mais íntimos, mais profundos, mais doces que entre aqueles que são parentes do mesmo sangue”.22
E o padre Fernández Truyols, referindo-se especificamente às pessoas que correspondem à vocação religiosa e fazem a entrega completa de si mesmas, comenta: “O sacrifício dos bens terrenos terá sua recompensa já nesta vida. E não só em vantagens exclusivamente espirituais, mas também em bens temporais, embora num plano superior ao puramente material. Quem se despoja de tudo para seguir Cristo Jesus receberá da Divina Providência, quiçá com acréscimo e superabundantemente, o quanto necessitar para sua subsistência. Deixa seu pai e sua mãe, e Deus dá-lhe pais e mães que o adotam como um filho muito querido. Donzelas na flor da juventude renunciam à maternidade, e Deus as faz mães não de alguns, mas de inumeráveis filhos, nos quais derramam todas as ternuras de um coração verdadeiramente maternal”.23
Uma pergunta decisiva para nossa vida espiritual
Somos todos “participantes da vocação celestial” (Hb 3, 1). Contudo, enquanto Jesus nos chama a segui-Lo a caminho do Reino de Deus, as nossas tendências desordenadas em consequência do pecado original nos arrastam para aquilo que é inferior.
Exemplo paradigmático dessa dicotomia é o episódio do Evangelho que acabamos de comentar. O jovem rico era bom. Praticava os Mandamentos a ponto de Nosso Senhor o fitar com amor. Quando, porém, o Mestre o convidou a ser um dos Seus discípulos, afastou-se triste e abatido, pois sempre que alguém recusa um convite da graça, é pervadido pela tristeza e pelo remorso. O padre Duquesne descreve com notável clareza essa lamentável situação de alma: “Ninguém renuncia à sua vocação sem uma dor de coração, sem uma secreta tristeza que increpa sua covardia, tristeza que difunde amargura ao longo de todo o curso da vida e aumenta na hora da morte”.24
A liturgia deste domingo nos coloca, assim, diante de uma pergunta decisiva para nossa vida espiritual: a que distância se encontra nossa alma da atitude do moço rico? Se Cristo nos convidasse hoje a segui-Lo, como Lhe responderíamos? Bradaríamos com alegria, como Samuel: “Præsto sum” (I Sm 3, 16) – “Eis-me aqui”? Ou, tomados pela tristeza, recusaríamos o convite de nosso Salvador?
Quando chegar esse chamado — e ele pode vir em hora inesperada —, seremos muito mais capazes de dar resposta afirmativa se nos tivermos preparado previamente. Para isso, é necessário que, em todas as circunstâncias da vida, nosso coração esteja à procura do Divino Mestre, combatendo o apego aos bens terrenos, aumentando sem cessar o fogo do amor a Deus e fazendo a pergunta de São Paulo no caminho de Damasco: “Senhor, que quereis que eu faça?” (At 9, 6).
A isto nos incita o Príncipe dos Apóstolos: “Irmãos, cuidai cada vez mais em assegurar a vossa vocação e eleição. Procedendo deste modo, não tropeçareis jamais. Assim vos será aberta largamente a entrada no Reino eterno de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo” (II Pd 1, 10-11).
1AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica. III q. 24, a. 1, resp. “A predestinação propriamente dita é a eterna pré-ordenação divina com relação às coisas que, pela graça de Deus, devem realizar-se no tempo. Ora, pela graça da união, Deus fez com que, no tempo, o homem fosse Deus e Deus fosse homem. E não se pode afirmar que Deus não tenha pré-ordenado desde a eternidade que Ele faria isso no tempo, porque daí se seguiria que algo de novo poderia acontecer para o entendimento divino. Por isso é preciso afirmar que a união das naturezas na pessoa de Cristo entra na predestinação eterna de Deus”.
2JOÃO PAULO II. Encíclica Redemptoris Mater, n. 8. “No mistério de Cristo, Maria está presente já ‘antes da criação do mundo’, como aquela a quem o Pai ‘escolheu’ para Mãe do seu Filho na Encarnação — e, conjuntamente ao Pai, escolheu-a também o Filho, confiando-a eternamente ao Espírito de santidade. Maria está unida a Cristo, de um modo absolutamente especial e excepcional; e é amada neste ‘Filho muito amado’ desde toda a eternidade, neste Filho consubstancial ao Pai, no qual se concentra toda ‘a magnificência da graça’”.
3DIDON, OP, Pe. Henri. Jesus Christo. Porto: Chardron, 1895, p. 381.
4LAGRANGE, OP, Pe. M.J. Évangile selon Saint Marc. Paris: Lecoffre, 1929, p. 264.
5FILLION, Louis-Claude. Vida de Nuestro Señor Jesucristo. Madrid: Rialp, v. 2, p. 429.
6DUQUESNE. L’Évangile médité. Paris-Lyon: Perisse Frères, 1849, p. 266.
7SAN EFRÉN DE NISIBE, Comentario al Diatessaron, 15, 210 apud ODEN, Thomas C. e HALL, Cristopher A. La Biblia comentada por los Padres de la Iglesia – Nuevo Testamento 2 San Marcos. Madrid: Ciudad Nueva, 2000, p. 199.
8DUQUESNE. Op. cit., p. 267.
9FILLION. Op. cit., p. 431.
10MALDONADO, SJ, Pe. Juan de. Comentarios a los cuatro evangelios – I Evangelio d
11LAGRANGE, OP. Op. cit., p. 266.
12DUQUESNE. Op. cit., p. 273.
13FILLION. Op. cit., p. 431.
14CLEMENTE DE ALEJANDRÍA. Quis dives salvetur? c. XXVII.e San Mateo. Madrid: BAC, 1950, p. 692.
15CESÁREO DE ARLES, Sermo 153, 156 apud ODEN e HALL. Op. cit., p. 202.
16MALDONADO, SJ. Op. cit., p. 695.
17LAGRANGE, OP. Op. cit., p. 271.
18Cf. MALDONADO, SJ. Op. cit., p. 695.
19LAGRANGE, OP. Op. cit., p. 271.
20MALDONADO, SJ. Op. cit., p. 695.
21FILLION. Op. cit., p. 433.
22DIDON, OP. Op. cit., p. 385.
23FERNÁNDEZ TRUYOLS, SJ, Andrés. Vida de Nuestro Señor Jesucristo. Madrid: BAC, 1954, p. 482.
24DUQUESNE. Op. cit., p. 270-271.