Continuação dos comentários ao Evangelho 31º Domingo do Tempo Comum - Ano C - 2013 - Lc 19, 1-10
Nosso Senhor fixa seu olhar no
publicano
5a “Quando Jesus chegou ao
lugar, olhou para cima e disse: ‘Zaqueu, desce depressa!’”.
Paremos por um instante para imaginar a cena. Como
fizera ao curar o cego à entrada da cidade, Jesus se detém diante
da árvore onde se encontra Zaqueu e lhe dirige um olhar pervadido de
bondade. O povo se aglomera, curioso de ver o que ia suceder, talvez
na expectativa de que o Mestre tomasse uma atitude de censura em
relação ao cobrador de impostos. Entretanto, em lugar de
repreendê-lo, Jesus chama-o afetuosamente pelo nome, e o manda
descer.
Por sua ciência humana, Nosso Senhor não conhecia
ainda esse publicano. Entretanto aqui revela não ignorar quem ele
era, nem as virtudes que começavam a despontar em sua alma. Muito a
propósito, comenta São Cirilo: “Cristo já contemplara aquela
cena com seus olhos de Deus, e ao levantar as vistas, fitou essa
pessoa com os olhos da carne. E como seu objetivo é que todos os
homens se salvem, estendeu a esse homem sua bondade”.11
“Qual não teria sido a surpresa do publicano quando
ouviu pronunciar seu próprio nome! E quão grande sua alegria!” —
observa o padre Truyols.12 E Jesus ainda lhe infundiu maior ânimo e
confiança ao dizer-lhe “desce depressa”, pois, no acertado juízo
do padre Tuya, “há nessas palavras um anseio espiritual por
conquistá-lo”.13
É curioso notar que Zaqueu nada diz a Jesus. A julgar
pelo relato evangélico, limita-se a olhá-Lo com enlevo e veneração,
enquanto escuta, jubiloso, suas palavras.
“Hoje vou hospedar-Me na tua
alma”
5b“‘Hoje Eu devo ficar
na tua casa’”.
Como se isso não bastasse, o Divino Mestre toma a
iniciativa de convidar-Se à residência de Zaqueu, contrariando os
costumes. Mas, observa Santo Ambrósio, Jesus “sabe que quem O
acolhe como hóspede receberá uma abundante recompensa, e acontece
que, embora não tivesse ouvido ainda seu convite, havia já lido em
seu coração”.14 Enfrentando todas as murmurações que poderia
suscitar sua presença na casa de um publicano, Nosso Senhor anuncia
sua visita “de um modo ao mesmo tempo régio e familiar”.15
O episódio confirma que nada atrai mais as graças de
Deus do que um espírito tomado pela admiração. Com certeza, afirma
Maldonado, “Cristo chamou Zaqueu porque notava a disposição de
sua alma e a diligência posta por ele para conseguir vê-Lo
passar”.16 E Santo Agostinho comenta: “Quem considerava grande e
inefável felicidade o fato de vê-Lo passar, mereceu imediatamente
tê-Lo em casa. Infunde-se a graça, atua a fé por meio do amor,
recebe-se em casa Cristo, que habitava já no coração”.17
Importa determo-nos nas palavras “na tua casa”. Sem
dúvida, referia-Se Nosso Senhor à residência de Zaqueu, a qual
precisava ser posta em ordem para acolhê-Lo. Para o chefe dos
cobradores de impostos, isso não era difícil, pois, pela sua
posição social, deveria receber com frequência visitas
importantes. Não lhe faltariam criados nem recursos para isso.
Mas, do ponto de vista sobrenatural, é como se Jesus Se
comunicasse com Zaqueu de olhar a olhar, de coração a coração,
dizendo-lhe: “Hoje vou hospedar-Me na tua alma”. Portanto, a
“casa” significa aqui também a alma que deve estar preparada
para acolher o Senhor.
A admiração traz alegria
6 “Ele desceu depressa, e
recebeu Jesus com alegria”.
Diante da misericordiosa iniciativa do Redentor, Zaqueu
manifesta-se disposto a em tudo obedecer. Tomado de entusiasmo, “fez
o que lhe mandava Cristo, e do modo como este lhe ordenara. Acabava
de dizer-lhe que descesse depressa, e depressa desceu. Isso é
corresponder à graça: seguir prontamente Aquele que chama, sem
demora nem pretextos”.18
Mais ainda, aquele homem recebe Jesus “com alegria”,
pois ao sentir-se inteiramente interpretado e compreendido por quem
lhe é superior, sua alma se enche de júbilo e se abre para a fé.
Vemos, assim, como a admiração é excelente antídoto para a má
tristeza que leva ao desânimo. Quando, à semelhança de Zaqueu, nos
sentimos atraídos por Jesus e procuramos ocasiões para encontrá-Lo
— seja no Sacramento da Eucaristia, seja através dos seres criados
— Ele nos recompensa vindo à nossa casa, isto é, entrando em
nosso convívio e enchendo-nos de graças, muitas vezes sensíveis.
Surpresa e incompreensão da
opinião pública
7 “Ao ver isso, todos
começaram a murmurar, dizendo: ‘Ele foi hospedar-Se na casa de um
pecador!’”.
Tomados de ódio contra aquele publicano, os presentes
“não puderam vencer seus preconceitos, apesar de pouco antes terem
dado glória a Deus pela cura do cego, operada por Jesus”,19 e
começaram a murmurar contra Ele.
É importante notar que São Lucas afirma serem “todos”,
e não apenas alguns, os que recriminavam Jesus por ir hospedar-Se na
casa de um “pecador”. Esta palavra, sublinha o padre Tuya, “tinha
para eles o sentido de um homem imerso em toda impureza ‘legal’,
que neste caso podia ser também moral, devido às suas extorsões no
exercício do cargo”.20 Entrar na residência de um cobrador de
impostos significava, para os judeus de então, macular-se e atrair
sobre si a maldição de Deus.
Essa rejeição à atitude de Jesus carecia, entretanto,
de qualquer fundamento. Não havia ensinado já o Divino Mestre, em
disputa contra os fariseus, que não viera “chamar à conversão os
justos, mas sim os pecadores” (Lc 5, 32)? Bem conclui Santo
Agostinho: querer impedir Jesus de visitar o lar do publicano
equivalia “a censurar o médico por entrar na casa do enfermo”.21
Jesus, como observa o padre Truyols, não fez caso
dessas murmurações. “Ele era o Bom Pastor, que viera ao mundo em
busca da ovelha perdida. Para encontrá-la e reconduzi-la ao redil
aceitara o convite do publicano Levi, deixara-Se tocar pela pecadora
e não ignorava que a aparente delicadeza de consciência daqueles
que reprovavam seu proceder não era senão um disfarce de refinado
orgulho e de cruel egoísmo”.22
Submissão e generosidade de
Zaqueu
8a “Zaqueu ficou de pé, e
disse ao Senhor: ‘Senhor, eu dou a metade dos meus bens aos
pobres...’”.
Este versículo mostra o quanto o publicano havia
preparado a “casa” de sua alma para bem receber o Messias.
Chegado àquela residência, Jesus deve ter Se recostado à moda
oriental em um divã, e seria inusual que o anfitrião não fizesse o
mesmo. Ora, Zaqueu permaneceu de pé, em sinal de submissão,
veneração e reconhecimento da superioridade do seu Hóspede, no
qual talvez vislumbrasse rasgos de divindade.
Nessas alturas, ele já deseja mudar de vida,
converter-se, abandonando seus erros e pecados. De fato, inúteis
teriam sido todas as graças recebidas, se não conduzissem a esse
desfecho. “Jesus, o doce e misericordioso Salvador dos pecadores,
era inexorável na luta contra o pecado. Exigia daqueles que queriam
segui-Lo, e daqueles aos quais dispensava favores ou perdoava crimes,
o propósito de romper definitivamente com todo e qualquer pecado”.23
O fato de Zaqueu dispor-se a dar aos pobres a metade dos
seus bens prova sua sinceridade e boa-fé. Entretanto, Fillion vai
mais longe, ao tomar esse gesto “como uma recordação da honra que
lhe fizera Jesus, e como manifestação de que, com fé
inquebrantável, O considerava o Messias prometido”.24
8b “‘...e, se defraudei
alguém, vou devolver quatro vezes mais’”.
Contudo, a conversão do publicano não teria sido
completa sem o desejo de reparar os males que fizera. Pois o pecado
de roubo exige, além de pedir perdão a Deus, a restituição dos
bens indevidamente adquiridos.
Enlevado pela contemplação da Justiça em substância,
que ante ele Se encontrava, Zaqueu manifesta a disposição de
cumprir essa obrigação com largueza: “Se defraudei alguém, vou
devolver quatro vezes mais”. Sua generosa atitude revela verdadeira
dor pelo pecado e uma retidão de alma fruto da conversão obtida
pela graça.
Esta passagem do Evangelho nos proporciona um valioso
princípio para o apostolado: as autênticas conversões se
conquistam sempre despertando nas almas a admiração por Nosso
Senhor Jesus Cristo.
Apesar da falta de méritos, é
justificado por Nosso Senhor
9 “Jesus lhe disse: ‘Hoje
a salvação entrou nesta casa, porque também este homem é um filho
de Abraão. 10 Com efeito, o Filho do Homem veio procurar e salvar o
que estava perdido’”.
Nosso Senhor usa aqui a palavra “casa” também num
sentido mais profundo, referindo-se, como vimos, à alma do
anfitrião. Pois “foi nesse momento que a fé de Zaqueu, sua
obediência, seu desinteresse e sua caridade fizeram dele um
verdadeiro filho de Abraão”.25 Assim, ao afirmar “hoje a
salvação entrou nesta casa”, Jesus declara solenemente que esse
homem está perdoado.
Antes de se encontrar com o Divino Mestre, Zaqueu era um
pecador que corria atrás do lucro, por vezes ilícito. Entretanto a
graça introduziu em sua alma o desejo de ver aquele que “veio
procurar e salvar o que estava perdido”, e o publicano
correspondeu.
Buscar Nosso Senhor, subir na árvore, descer depressa
ao ser chamado, receber com alegria e atender com generosidade: eram
sintomas da aceitação das graças recebidas. Para consumar a
conversão, faltava apenas Zaqueu reconhecer seus pecados, pedir
perdão e manifestar-se disposto a reparar o mal. Foi isso o que ele
fez na presença de Jesus.
A admiração transforma
Em certo sentido, todos somos Zaqueus. Estando nesta
vida em estado de prova, a qualquer momento pode Nosso Senhor passar
diante nós e nos chamar, servindo-Se de uma leitura, uma conversa,
uma pregação, ou quiçá por meio de uma moção interior da graça.
Como responderemos nós se, como ao publicano, Ele nos
disser: “desce depressa, porque hoje vou hospedar-Me em tua casa”?
“Saberemos imitar a generosidade de Zaqueu e, antecipando-nos à
admoestação do Senhor, responder-Lhe com espontânea prontidão:
‘doravante, quero firmemente não pecar mais’?”.26
Tudo dependerá da admiração que tivermos.
O caminho da conversão do publicano, narrado nesta
passagem do Evangelho, começou com um mero sentimento de curiosidade
para com aquele Homem do qual ele tanto ouvira falar. Mas, pela ação
da graça, logo se transformou em desejo de conhecê-Lo, falar-Lhe e
estar com Ele, dando início ao processo que haveria de torná-lo um
verdadeiro “filho de Abraão”.
Como Zaqueu, assim devemos reagir também nós, fugindo
das multidões e subindo na “árvore da admiração” para melhor
contemplar o Divino Mestre. Porque quem está tomado de verdadeiro
enlevo, escuta a palavra do Senhor, observa seus preceitos e enfrenta
todas as dificuldades para segui-Lo, até o fim.
Árduo seria avaliar até que ponto são profundas as
consequências desse voltar-se enlevado para o que é superior, se
não fosse São Tomás de Aquino nos ensinar: “A primeira coisa que
então [ao atingir o uso da razão] ocorre ao homem pensar é
deliberar sobre si mesmo. E se se ordenar ao fim devido, conseguirá
pela graça a remissão do pecado original”.27 Ou seja, derramam-se
sobre ele os mesmos efeitos do Batismo sacramental!28
Essa ousada afirmação do Doutor Angélico é analisada
em profundidade por Garrigou-Lagrange, segundo o qual, se um menino
não batizado e educado entre os infiéis, ao chegar ao pleno uso da
razão amar eficazmente “o bem honesto por si mesmo e mais do que a
si mesmo”, estará justificado. “Por quê? Porque desse modo ama
eficazmente a Deus, autor da natureza e soberano bem, confusamente
conhecido; amor eficaz que no estado de queda não é possível senão
pela graça, que eleva e cura”.29
Com efeito, na admiração pelo bem o homem se torna
semelhante ao objeto de seu enlevo. Pelo contrário, ao fechar-se em
si mesmo, julgando encontrar nisso a felicidade, enche a alma de
amargura, tristeza e frustração, pois a desvia de sua finalidade
suprema que é Deus. “Fizeste-nos, Senhor, para ti, e nosso coração
estará inquieto enquanto não repousar em ti”,30 ensina o grande
Santo Agostinho.
Através do enlevo pelos reflexos do Criador, a exemplo
de Maria, Mãe de todas as admirações, melhor nos identificaremos
com Jesus, modelo perfeitíssimo de todos os homens. Terá entrado,
assim, a salvação em nossa casa, pela porta da admiração!
1
Cf. KELLER, Helen Adams. A história de minha vida. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1940, p.248-249.
2
SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, I-II, q.3, a.8, resp. Ver
também q.32, a.8, resp.: “A admiração é um certo desejo de
saber, que surge no homem porque vê o efeito e ignora a causa; ou
porque a causa de certo efeito excede o conhecimento ou a potência
de conhecer”.
3
TUYA, OP, Manuel de. Biblia comentada. Evangelios. Madrid: BAC, 1964,
v.II, p.889.
4
SAN CIRILO DE ALEJANDRÍA. Comentario al Evangelio de Lucas, 19, 2,
apud ODEN, Thomas C. e JUST Jr., Arthur A. La Biblia comentada por
los Padres de la Iglesia – Nuevo Testamento, San Lucas. Madrid:
Ciudad Nueva, 2000, v.III, p.392.
5
DUQUESNE. L ’Évangile medité. Lyon-Paris: Perisse Frères, 1849,
p.309.
6
Respeitamos aqui a ordem cronológica da exposição de São Lucas,
sem entrar na discussão exegética sobre se a cura do cego aconteceu
realmente à entrada ou à saída da cidade.
7
Cf. DUQUESNE, op. cit., p.309.
8
WILLAM, Franz Michel. A vida de Jesus no país e no povo de Israel.
Petrópolis: Vozes, s/d, p.338.
9
DUQUESNE, op. cit., p.311.
10
MALDONADO, SJ, Juan de. Comentarios a los cuatro Evangelios.
Evangelios de San Marcos y San Lucas. Madrid: BAC, 1951, v.II, p.752.
11
SAN CIRILO DE ALEJANDRÍA, op. cit., p.392.
12
FERNÁNDEZ TRUYOLS, SJ, Andrés. Vida de Nuestro Señor Jesucristo.
2.ed. Madrid: BAC, 1954, p.490.
13
TUYA, OP, op. cit., p.889.
14
SANCTUS AMBROSIUS. Expositio Evangelii secundum Lucam. l.8, 82: PL:
15, 1791.
15
FILLION, Louis-Claude. Vida de Nuestro Señor Jesucristo. Vida
pública. Madrid: Rialp, s/d, v.II, p.457.
16
MALDONADO, SJ, op. cit., p.753.
17
SANCTUS AUGUSTINUS HIPPONENSIS. Sermo 174, c.IV: PL 38, 942.
18
MALDONADO, SJ, op. cit., p.753.
19
GOMÁ Y TOMÁS, Isidro. El Evangelio explicado. Barcelona:
Casulleras, 1930, v.III, p.398.
20
TUYA, OP, op. cit., p.889.
21
SANCTUS AUGUSTINUS HIPPONENSIS. Sermo 174, c.V: PL 38, 943.
22
FERNÁNDEZ TRUYOLS, SJ, op. cit., p.490.
23
KOCH, SJ, Anton; SANCHO, Antonio. Docete. Formación básica del
predicador y del conferenciante. La gracia. Barcelona: Herder, 1953,
t.IV, p.303.
24
FILLION, op. cit., p.457.
25
DUQUESNE, op. cit., p.314.
26
KOCH, SJ; e SANCHO, op. cit., p.304.
27
SÃO TOMÁS DE AQUINO, op. cit., I-II, q. 89, a.6. Cf. Idem, III,
q.66, a.11, ad.2 e q.68, a.2.
28
GARRIGOU-LAGRANGE, Réginald. El Sentido Común, la Filosofía del
ser y las fórmulas dogmáticas. Buenos Aires: Desclée de Brouwer,
1944, p.338-339.
30
SANTO AGOSTINHO. Confissões, L.I, c.1.
"Maria, Mãe de Deus" - Mosteiro do Monte da
Tentação, Jericó (Israel)