COMENTÁRIO
AO EVANGELHO 2º DOMINGO DO TEMPO COMUM – ANO A - 2014
Mons. João
Scognamiglio Clá Dias
EVANGELHO - Jo 1, 29-34
29No dia seguinte João viu Jesus, que vinha ter com ele, e disse: “Eis o
Cordeiro de Deus, eis O que tira o pecado do mundo. 30 Este é Aquele de quem eu disse: Depois de mim vem um Homem que é
superior a mim, porque era antes de mim, 31 e eu
não O conhecia, mas vim batizar em água, para Ele ser reconhecido em Israel”. 32 João deu este testemunho: “Vi o Espírito descer do Céu em forma de pomba
e repousou sobre Ele. 33 Eu não O conhecia, mas O que me mandou
batizar em água, disse-me: Aquele sobre quem vires descer e repousar o
Espírito, esse é O que batiza no Espírito Santo. 34 Eu O vi, e dei testemunho de que Ele é o Filho de Deus” (Jo 1, 29-34).
O PRECURSOR E A RESTITUIÇÃO
Ao ver
Jesus vir a ele no Jordão, João era já pregador de grande prestígio, profeta
como nunca houvera em Israel. Entretanto, longe de sentir inveja, o Batista
reagiu com heróica humildade e ilimitada servidão, testemunhando ser aquele
homem o Filho de Deus.
UM DOS MAIS BELOS ENCONTROS DA
HISTÓRIA
“O
semelhante se alegra com seu semelhante”, diz um antigo provérbio latino, e de
fato é esse um princípio intrínseco a todos os seres com vida, na medida em que
sejam passíveis de felicidade. Deus assim nos criou e fez uns dependerem dos
outros, aperfeiçoando-nos com o mais entranhado dos instintos, o de sociabilidade.
Se para um pássaro constitui motivo de gáudio o encontrar-se com outro da mesma
espécie, para nós, esse fenômeno é mais intenso. Ora, se grande é o júbilo de
duas crianças afins ao se encontrarem pela primeira vez no colégio, qual não
terá sido a reação dos dois maiores homens de todos os tempos, ao se
contemplarem face a face?
Assim
se realizou um dos mais belos encontros da História, João Batista diante de
Jesus; para melhor compreendê-lo, analisemos as analogias entre um e outro.
Traços de semelhança entre Jesus
e João
Apesar
de serem duas pessoas infinitamente distantes entre si pela natureza — João é
mero homem, Jesus é a Segunda Pessoa da Trindade Santíssima — numerosos traços
de semelhança os unem. Jesus é o alfa e o ômega da História. João é o começo do
Evangelho e o fim da antiga Lei (1). Assim o afirma o próprio Nosso Senhor:
“Com efeito, todos os profetas e a Lei profetizaram até João” (Mt 11, 13-14).
Segundo
Tertuliano, João Batista é uma “figura única na História, adornada em vida de
um prestígio sobre-humano, que se levanta misteriosa e solene nos confins de
ambos os Testamentos” (2). Dele afirma Jesus: “Na verdade vos digo que entre os
nascidos de mulher, não veio ao mundo outro maior que João Batista” (Mt 11,
11).
Além do
mais, a concepção de ambos, de Jesus e de João, é precedida pelo anúncio do
mesmo embaixador São Gabriel Arcanjo (Lc 1, 11-19 e 2634). As mensagens não
diferem muito, em seus termos, uma da outra. Os nomes de Jesus e de João foram
designados por Deus (Lc 1,13 e 31).
No
próprio ato de anunciar o nascimento, o Mensageiro celeste profetiza também o
futuro tanto do Precursor (Lc 1,13-17) quanto do Messias (Lc 1,31-33).
O perfil do Precursor
Sobre
Jesus, se fôssemos analisar as grandezas de suas qualidades e de suas obras,
“nem todo o mundo poderia conter os livros que seria preciso escrever” (Jo 21,
25).
No
Batista, tudo é sui generis, a começar pela profecia de sua vinda, proferida
por Isaías e Malaquias: “Uma voz exclama: Abri no deserto um caminho para o
Senhor, traçai na estepe uma pista para nosso Deus” (Is 40, 3); “Vou mandar meu
mensageiro para preparar o meu caminho” (Mal 3, 1).
Mais
impressionante ainda é a sua santificação no seio materno operada pela
Santíssima Virgem: “Porque, logo que a voz de tua saudação chegou aos meus
ouvidos, o menino saltou de alegria no meu ventre” (Lc 1, 44).
A
grandeza de sua missão é profetizada pelo próprio pai: “E tu, menino, serás
chamado o profeta do Altíssimo, porque irás à frente do Senhor, a preparar os
seus caminhos; para dar ao seu povo o conhecimento da salvação” (Lc 1, 76-77).
A
rudeza da forma de vida escolhida pelo Batista lhe confere uma aura de
austeridade ímpar: “Ora o menino crescia e se fortificava no espírito. E
habitou nos desertos até o dia da sua manifestação a Israel” (Lc 1, 80).
“Andava João vestido de pêlo de camelo, (...) e alimentava-se de gafanhotos e
mel silvestre” (Mc 1, 6).
Ao iniciar
suas pregações, foi acolhido pela opinião pública da época com enorme
prestígio, pois, já ao seu nascimento, “o temor se apoderou de todos os seus
vizinhos, e divulgaramse todas essas maravilhas por todas as montanhas da
Judéia. Todos os que as ouviram as ponderavam no seu coração dizendo: ‘Que virá
a ser este menino?’ Porque a mão do Senhor estava com ele” (Lc 1, 65-66). Logo
de início, João atraiu multidões: “E iam ter com ele toda a região da Judéia e
todos os habitantes de Jerusalém” (Mc 1, 5), “porque todos tinham a João como
verdadeiro profeta” (Mc 11, 32).
Os
soldados, os publicanos e as multidões lhe perguntavam “Mestre, que devemos
fazer?” (Lc 3, 10-14). O próprio Herodes, querendo matá-lo “teve medo do povo,
porque este o considerava como um profeta” (Mt 14, 5). Essa grande fama se
estendeu até após sua morte: “porque todos tinham João como um profeta” (Mt 21,
26).
As
repercussões sobre sua figura, palavras e obras ecoaram entre os vales e os
montes da Terra Prometida, a ponto de o povo chegar a pensar “que talvez João
fosse o Cristo” (Lc 3, 15).
Pois
bem, fixemos em nossa lembrança essa gloriosa projeção alcançada em vida por
São João Batista e abramos um parênteses para considerar a principal de suas
virtudes: a da restituição, a qual consiste essencialmente em atribuir a Deus
os dons d’Ele recebidos.
INVEJA E AMBIÇÃO, VÍCIOS
UNIVERSAIS
A
ambição é uma paixão tão universal quanto o é a vida humana. Quase se poderia
dizer que ela se instala na alma antes mesmo do uso da razão, sendo facilmente
discernível no modo de a criança agarrar seu brinquedo ou na ânsia de ser
protegida. Ao tomar consciência de si e das coisas, os impulsos primeiros de
seu ser convidá-la-ão a chamar a atenção sobre sua pessoa e, se ela cede,
ter-se-á iniciado o processo da ambição. O desejo de ser conhecida e estimada é
a primeira paixão que macula a inocência batismal. Quantos de nós não nos
lançamos nos abismos da ambição, da inveja e da cobiça já nos primeiros anos de
nossa infância? Essas provavelmente foram as raízes dos ressentimentos que
tenhamos tido a propósito da glória dos outros. Sim, pelo fato de desejarmos a
estima de todos, por nos crermos no direito à glória e ao louvor dos nossos circunstantes,
constitui para nós uma ofensa o sucesso dos outros. Por isso São Tomás define a
inveja como sendo “a tristeza do bem alheio enquanto se considera como mal
próprio, porque diminui a própria glória ou excelência” (3).
Há paixões
que se mantêm letárgicas até a adolescência, assim não o é a inveja; ela se
manifesta já na infância e acompanha o homem até a hora de sua morte. Não será
difícil aos pais observar os sinais desse vício, em seus pequenos. Irmãos ou
irmãs, entre si, não poucas vezes terão problemas por se imaginarem eclipsados
pelas qualidades ou privilégios de seus mais próximos. Quantas vezes não
acontece de ser necessário separar-se irmãos, ou irmãs, na tentativa de
corrigir essas rivalidades que podem chegar a extremos inimagináveis, tal qual se
deu entre os primeiros filhos de Eva, Caim e Abel?
A
ambição e a inveja são mais universais do que parece à primeira vista; poucos
se vêem livres de suas garras. Elas se levantam e tomam corpo em relação aos
que nos são mais próximos, como afirma São Tomás: “A inveja é do bem alheio
enquanto diminui o nosso. Portanto, somente se suscita a respeito daqueles que
se quer igualar ou superar. Isto não sucede em pessoas que diferem muito de nós
em tempo, espaço e lugar, senão nas que nos estão próximas” (4).
Assim,
ao sábio será mais difícil invejar o general, e vice-versa, ou, uma médica a uma
costureira; mas dentro da mesma profissão, quanto mais relacionadas forem as
pessoas entre si, mais intensa se manifestará essa paixão.
Em
conseqüência, poder-se-ia dizer que jamais se excitaria esse mau pendor nas
almas dos contemporâneos de Jesus face a suas qualidades, pois a diferença
entre Ele e qualquer pessoa deste mundo é simplesmente infinita. De fato, esse
seria
o normal relacionamento dos outros com o Redentor, se seu nascimento e vida
fossem refulgentes de poder e de glória. Mas Ele veio ao mundo numa gruta em
Belém, foi envolto em panos e depositado na manjedoura sobre sobre palha, viveu
em Nazaré exercendo a profissão de carpinteiro para auxiliar seu pai. Assim, só
mesmo um forte olhar de fé poderia discernir nesse Menino uma Pessoa de Deus. E
essas aparências contrárias à sua divindade chegaram a ser tão extremas que
Jesus conferiu o título de bem-aventurado a quem não se envergonhasse de
seguilO (Mt 11, 6). Se Ele tivesse manifestado todo o fulgor da infinita
distância existente entre a natureza divina de sua Pessoa e a nossa humana, não
haveria quase mérito na restituição dos bens que d’Ele recebemos.
É justamente
em função das primeiras palavras pronunciadas por Maria em seu cântico de ação
de graças, ouvidas com alegria por João Batista no seio materno, que toma
brilho a mais alta virtude do Precursor: “A minha alma glorifica o Senhor; e o
meu espírito exulta de alegria em Deus meu Salvador porque olhou para a
humildade de sua serva” (Lc 1, 46-48). Essa foi a formação recebida pelo
menino-profeta ao longo dos meses durante os quais Maria viveu em casa de
Isabel: humildade e servidão. Como teria sido de um valor inestimável se os
pontífices e fariseus do Sinédrio houvessem sido educados na mesma escola de
João! Certamente não se teriam reunido depois da ressurreição de Lázaro, para
decretar a morte de Jesus (Jo 11, 47-53).
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