Comentário ao Evangelho – Solenidade da Ascensão do Senhor – Lc 24, 46-53 – Ano C - 2013
Os frutos da Ascensão nos beneficiam a
cada instante, tal como a última bênção de Jesus aos Apóstolos, no Monte das
Oliveiras, se prolonga através da História até cada um de nós.
46 E disse-lhes: “Assim está escrito que o
Cristo devia padecer e ressuscitar dos mortos ao terceiro dia, 47 e que em seu nome
havia de ser pregado o arrependimento e a remissão dos pecados a todas as nações,
começando por Jerusalém. 48 Vós sois as testemunhas destas coisas. 49 Eu vou mandar
sobre vós o Prometido por meu Pai. Entretanto, permanecei na cidade até que
sejais revestidos da força do Alto”.
50 Depois, levou-os até junto de Betânia
e, levantando as suas mãos, abençoou-os. 51 E enquanto os abençoava, separou-Se
deles e era levado para o Céu. 52 Eles, depois de O adorarem, voltaram para
Jerusalém com grande alegria, 53 e estavam continuamente no Templo louvando a
Deus (Lc 24, 46-53).
Suprema glorificação de Cristo
Às
vezes, a perfuração produzida por uma agulha é mais danosa do que o golpe de um
martelo, sobretudo quando ela atinge pontos vitais. Essa comparação talvez
ainda ganhe em substância e expressividade se revertida para o campo da
polêmica doutrinária, como se verificou na refutação de São Bernardo ao judeu
que, no alto do Calvário, desafiou a Cristo em sua agonia: “Se és o Filho de
Deus, desce da Cruz” (cf. Mt 27, 42; Mc 15, 32). Segundo o Fundador de Claraval,
é mal concebida essa proposta para comprovar a origem divina de Jesus, pois a
realeza, e mais ainda a divindade de um ser, não se torna patente pelo ato de descer,
mas muito ao contrário, pelo de subir. E foi exatamente o que sucedeu com
Jesus, quarenta dias após sua triunfante Ressurreição. Por isso, debaixo de
certo ângulo, a Ascensão do Senhor ao Céu constitui a festa de maior
importância ao representar a glorificação suprema de Cristo Jesus. Ele próprio
a havia pedido ao Pai: “Glorifica-Me junto de Ti mesmo, com aquela glória que
tive em Ti, antes que houvesse mundo” (Jo 17, 5); “Pai, chegou a hora,
glorifica o teu Filho, para que teu Filho glorifique a Ti” (ibid. v. 1). Daí
ser compreensível a manifestação de alegria dos Santos Padres ao comentarem
essa glorificação do Cordeiro de Deus. “A glória de Nosso Senhor Jesus Cristo
se completa com sua Ressurreição e Ascensão. (...) Temos, pois, o Senhor, nosso
Salvador, Jesus Cristo, primeiro pendente de um madeiro e agora sentado no Céu.
Pendendo no madeiro, pagava o preço de nosso resgate; sentado no Céu, recolhe o
que comprou” (1).
A morte não sepultou Jesus no esquecimento
De
fato, esse júbilo a propósito da Ascensão, que pervade a alma dos santos e se
manifesta tão patente no texto do Ofício Divino e na própria Liturgia de hoje,
tem sólido fundamento, pois jamais se ouviu dizer de alguém que, ao deixar este
mundo, se elevasse aos olhos de centenas de testemunhas e, por seu próprio
poder penetrasse nos Céus.
Bem
ao contrário, após a morte, nossos corpos gélidos e inertes descem ao seio da
terra e, na maioria dos casos, até a nossa lembrança se apaga na mente dos que
aqui permanecem. A propósito de Cristo, deu-se exatamente o inverso, pois não
só a recordação de seus ensinamentos, de seus atos e até de sua história se prolongou
através dos séculos, como também suas testemunhas, dotadas de um poder
sobre-humano, fizeram ecoar seus relatos em meio aos povos e através das gerações.
Para tal, contribuíram os quarenta dias de permanência de Jesus ressurrecto
entre os discípulos. A debilidade destes certamente exigia esse poderoso
remédio, pois os episódios em torno da Paixão do Senhor abalaram a
sensibilidade psicológica e até a própria virtude da fé de todos eles.
As perspectivas humanas dos Apóstolos
dificultavam sua visão sobrenatural do Messias
As
primeiras notícias sobre a Ressurreição encontraram um vácuo de incredulidade
em cada um deles, a ponto de Tomé só ter-se convencido ao tocar-Lhe as chagas.
Compreende-se a lógica dessas reações, pois, humanos como eram, formados na perspectiva
de um Messias com fortes traços políticos, acostumados ao longo de três anos a
um convívio todo feito de paternal e penetrante afeto, só poderiam assim se
sentir protegidos, assumidos e transformados. E por isso desejavam perpetuar
aquele relacionamento a partir de onde se havia interrompido com aquela morte
tão ignominiosa.
Contudo,
os véus da carne mortal lhes obumbravam a real visão da divindade do Salvador.
Era indispensável substituírem a experiência um tanto humana por outra mais
elevada na qual apalpassem, por assim dizer, os reflexos da Alma gloriosa de
Jesus sobre seu sagrado Corpo. Para poder cumprir sua missão redentora, Ele
havia feito um milagre em detrimento de suas próprias qualidades, rompendo leis
por Ele criadas. Desde o primeiro instante de sua Concepção, no seio da Virgem
Mãe, sua santíssima Alma gozava da visão beatífica e, em conseqüência, seu
adorável Corpo deveria ter sido glorioso. Se assim fosse, porém, não poderia
Ele padecer. Ora, por essa razão, os discípulos acabaram por se habituar a uma
interpretação a respeito do Filho de Deus muito distante daquela que se terá no
Céu. Essa situação chegou ao extremo de terem sido os Apóstolos os únicos a
comungar o Corpo padecente de Jesus na Eucaristia, distribuída na Santa Ceia.
Por que Jesus conviveu quarenta dias com
os Apóstolos, em Corpo glorioso
Por
aí se pode compreender o quanto, após a Paixão de Jesus, as saudades dos
Apóstolos e discípulos giravam em torno de um relacionamento de certa forma
equivocado. Entende-se melhor também a necessidade do Redentor conviver com eles
quarenta dias em Corpo glorioso, pois Jesus “não quis que permanecessem sempre
carnais nem amando-O com amor terreno. Queriam que estivesse sempre com eles,
carnalmente, movidos pelo mesmo afeto pelo qual
Pedro temia vê-Lo padecer. Consideravam-No seu mestre, consolador e protetor,
homem, afinal, como eles próprios; e se não vissem algo diferente julgá-Lo-iam
ausente, sendo que Ele estava presente em todos os lugares com sua majestade”.
Por
outro lado, em face da lembrança traumatizante dos dias da Paixão, “convinha
agora levantar-lhes o ânimo para começarem a pensar n’Ele espiritualmente, como
o Verbo do Pai, Deus de Deus, pelo qual todas as coisas foram feitas; esse
pensamento lhes era vedado pela carne que viam. Convinha, sim, confirmá-los na
fé, vivendo com eles quarenta dias, mas era ainda mais conveniente separar-Se
de suas vistas para que Quem na terra os estava acompanhando como irmão os
socorresse desde o Céu como Senhor, e eles aprendessem a pensar n’Ele como em
Deus” (2).
“Não vos deixarei órfãos”
O
próprio Jesus havia afirmado: “É melhor para vós que Eu vá, pois, se Eu não
for, o Paráclito não virá a vós; mas, se Eu for, Eu vo-Lo enviarei. (...) Eu
vou para o Pai, e já não Me vereis” (Jo 16, 7.10). E, de fato, os Apóstolos
nunca mais O encontraram, pois, ao penetrar no Céu, deixou de estar presente na
terra de modo natural.
Em
contrapartida, Ele mesmo prometera: “Eis que estou convosco todos os dias, até
o fim do mundo” (Mt 28, 20). E realmente Ele está entre nós, na Eucaristia,
debaixo dos véus das Sagradas Espécies. Ademais, nunca deixa de nos acompanhar:
“Subindo aos Céus, Ele não abandona de modo algum aqueles que adotou” (3).
Estas belas palavras de São Leão Magno fazem eco às de Nosso Senhor: “Não vos
deixarei órfãos” (Jo 14, 18).
Consola-nos
constatar o quanto se tem cumprido essa promessa ao longo destes vinte e um
séculos, dia após dia, das mais variadas maneiras. Não poderia ser que sua
Ascensão constituísse um abandono daqueles por quem Ele se Encarnou e morreu no
Calvário. Seu retorno ao Pai só pode ter-se dado na seqüência desse amor
incomensurável d’Ele a cada um de nós. A Ascensão deu-se por uma conveniência
sua, mas também para benefício nosso. São Tomás nos ensina: “O lugar deve ter
proporção com quem nele está. Ora, Cristo, após a Ressurreição, deu início a
uma vida imortal e incorruptível, e o lugar no qual habitamos é lugar de
geração e de corrupção, ao passo que o lugar celeste é um lugar de incorrupção.
Logo, não era conveniente que Cristo, após a Ressurreição, permanecesse na
terra e, sim, que subisse ao Céu” (4). E ao ocupar um lugar no Céu,
proporcionado à sua Ressurreição, “algo se Lhe acrescentou no que diz respeito
ao decoro do lugar, o que redunda em bem da glória”. E citando o Salmo 15, 11:
“À tua destra delícias eternas até o fim”, São Tomás aplica a este versículo o
comentário da glosa: “Terei prazer e alegria quando estiver sentado a teu lado,
após ter sido tirado da vista humana” (5).
Benefícios da Ascensão
Também nós fomos beneficiados por
incontáveis dons com a Ascensão. Segundo São Leão Magno, passamos a conhecer
melhor Jesus a partir do momento em que Ele retornou às glórias do Pai. Nossa
fé, “mais esclarecida, aprendeu a elevar-se pelo pensamento, sem necessidade do
contato com a substância corporal de Cristo, na qual Ele é menor que o Pai,
dado que, embora permanecendo a mesma substância do corpo glorificado, a fé dos
fiéis é convidada a tocar, não com a mão terrena, mas com o entendimento
espiritual, o Unigênito, igual Àquele que O engendrou. É este o motivo pelo
qual o Senhor, após a Ressurreição, disse a Madalena — que representava a
pessoa da Igreja —, ao aproximarse para tocá-Lo: ‘Não me toques, pois ainda não
subi ao meu Pai’ (Jo 20, 17). Quer dizer, não quero que procures minha presença
corporal nem que me reconheças com os sentidos carnais; chamo-te para coisas
mais elevadas, destino-te a bens superiores. Quando subir a meu Pai, Me tocarás de forma mais real
e verdadeira, tocando no que não apalpas e crendo no que não vês” (6).
Fortalecimento da fé
Demonstra-nos São Tomás de Aquino que,
privando-nos de sua presença corporal, ao penetrar na glória eterna, Jesus
Cristo tornou-se ainda mais útil para nossa vida espiritual.
Primeiro, “para aumento da fé, que é
sobre o que não se vê. Por isso, o próprio Senhor diz no Evangelho de João que
o Espírito Santo, ao vir, ‘argüirá o mundo a respeito da justiça’, ou seja, da
justiça ‘dos que crêem’, como diz Santo Agostinho: ‘A própria comparação dos
fiéis com os infiéis é uma censura’. Por isso, acrescenta: ‘Porque Eu vou para
o Pai e não Me vereis mais, pois são bem-aventurados os que não vêem e crêem.
Será nossa a justiça, de que o mundo será argüido, porque credes em Mim, a Quem
não vedes’” (7).
A esse propósito, São Gregório Magno
externa sua convicção: “Com sua facilidade em crer, Maria Madalena nos
aproveita menos do que Tomé duvidando por muito tempo, porque este, em meio a
suas dúvidas, exigiu tocar as cicatrizes dessas chagas, e com isso nos tirou
todo pretexto para vacilação” (8).
Aumento da esperança
Em segundo lugar, “para reerguer a
esperança”, pois, “pelo fato de Cristo ter elevado ao Céu sua natureza humana assumida,
deu-nos a esperança de lá chegarmos, porque ‘onde quer que esteja o corpo, ali
se reunirão as águias’, como diz Mateus. Por isso, diz também o livro de
Miquéias: ‘Já subiu, diante deles, Aquele que abre o caminho’” (9).
Abrasamento da caridade
Uma terceira razão, ainda segundo São
Tomás, torna a Ascensão mais benéfica a nós do que a própria presença física de
Nosso Senhor, e esta se refere à caridade. Na seqüência dessa mesma questão da
Suma, o Doutor Angélico, a fim de nos mostrar as vantagens para essa virtude,
cita São Paulo: “Por isso, diz o Apóstolo: ‘Procurai o que está no alto, lá
onde Se encontra Cristo, sentado à direita de Deus; aspirai às coisas de cima,
não às da terra’, pois, como foi dito, ‘onde estiver o teu tesouro, ali também
estará o teu coração’” (10). E, após discorrer sobre o amor enquanto
propriedade do Espírito Santo e a respeito da grande necessidade que dele
tinham os Apóstolos, termina com esta citação de Santo Agostinho: “Não podeis
receber o Espírito enquanto persistirdes em conhecer a Cristo segundo a carne.
Pois quando Cristo Se afastou corporalmente, não só o Espírito Santo, mas
também o Pai e o Filho estavam espiritualmente em presença deles” (11).
A narração de São lucas
Ser-nos-á mais fácil, depois das
antecedentes considerações, analisarmos o próprio texto do Evangelho de hoje.
Continua no próximo no post.
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