Comentários ao Evangelho da Missa da Noite do Natal do Senhor - 2013 - Ano A
Mons João Clá Dias
Aconteceu que, naqueles dias, César Augusto
publicou um decreto, ordenando o recenseamento de toda a terra. Este primeiro
recenseamento foi feito quando Quirino era governador da Síria. Todos iam
registrar-se cada um na sua cidade natal. Por ser da família e descendência de
Davi, José subiu da cidade de Nazaré, na Galiléia, até a cidade de Davi,
chamada Belém, na Judéia, para registrar-se com Maria, sua esposa, que estava
grávida. Enquanto estavam em Belém, completaram-se os dias para o parto e Maria
deu à luz o seu filho primogênito. Ela o enfaixou e o colocou na manjedoura,
pois não havia lugar para eles na hospedaria.
Naquela região havia pastores que passavam
a noite nos campos, tomando conta do seu rebanho. Um anjo do Senhor apareceu
aos pastores, a glória do Senhor os envolveu em luz e eles ficaram com muito
medo. O anjo, porém, disse aos pastores: Não tenhais medo! Eu vos anuncio uma
grande alegria, que o será para todo o povo: Hoje, na cidade de Davi, nasceu
para vós um Salvador, que é o Cristo Senhor. Isto vos servirá de sinal:
Encontrareis um recém-nascido envolvido em faixas e deitado numa manjedoura. E,
de repente, juntou-se ao anjo uma multidão da corte celeste. Cantavam louvores
a Deus, dizendo: Glória a Deus no mais alto dos céus, e paz na terra aos homens
por ele amados.
O Evangelho do nascimento do
Menino Jesus
Ao nos aproximarmos do Presépio, meditemos
sobre aqueles acontecimentos que marcaram para sempre a História e que uma palavra
hebraica sintetiza com justeza: Emanuel. Quer dizer “Deus conosco”, o próprio
Senhor de todas as coisas assumiu a natureza humana e veio para estar no meio
de nós.
A linguagem da Escritura
1Aconteceu que naqueles dias, César Augusto
publicou um decreto, ordenando o recenseamento de toda a terra.
São
Lucas, ao introduzir o tema, não se exprime com exageros didáticos, mas sim,
com encantadora singeleza. Encontramos esta mesma simplicidade ao longo de toda
a Sagrada Escritura. Não se trata apenas de um princípio de sabedoria, mas de
arte literária: ao se descrever algo substancialmente grandioso, torna-se desnecessário
utilizar uma linguagem enfática. A ênfase é indispensável quando queremos chamar
a atenção para algo que, de si, não tem ou parece não ter importância.
O que
São Lucas descreverá é o nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo, fato insuperável
na História. Deus se fez Homem! O que mais dizer?
A vida orgânica de antigamente
Como o
mundo era orgânico! O homem ainda não conhecia a agitação de hoje. Nada de
comunicações instantâneas. Nada de viagens em velocidade ultrassônica. Não! Se
a vida, sob muitos ângulos, era difícil, de outro lado, quanta serenidade!
Quanto
tempo livre para se estar numa conversa distendida com os amigos, para conviver
longamente com a familia, para refletir, para rezar! Tudo era feito com calma e
serenidade.
Naqueles
dias, os romanos já haviam conquistado tantas terras que costumavam chamar o
Mediterrâneo de Mare Nostrum. Devido
a essa rápida expansão, tornava-se urgente saber qual o número real da
população do império.
Para o
recenseamento, diz o Evangelho que “todos iam registrar-se cada um na sua cidade
natal”. Quer dizer, iam aonde se encontravam as próprias raízes, mantinham
vínculos com suas origens, que não raro atravessavam os séculos, e lhes marcavam
a existência.
Espírito de respeito às regras
4Por ser da familia e descendência de Davi,
José subiu da cidade de Nazaré, na Gallleia, até a cidade de Davi, chamada
Belém, na Judeia, para registrar-se com Maria, sua esposa, que estava grávida.
Sendo
de estirpe real, José deveria apresentar-se com sua esposa na cidade de seus
ancestrais. Era necessário caminhar uns 150 km, distância que separava Nazaré
de Belém por aquelas estradas.
Não
haviam ainda os romanos posto em prática toda a sua capacidade organizadora no
tocante à rede de comunicação de seu império. É verdade que já estavam
construindo, na região de Roma, ótimas estradas, levantavam pontes e viadutos
sólidos, mas os caminhos da Palestina não haviam sido endireitados, e pavimentados
até então.
Eram
vias ricas de aspectos pitorescos, mas quão tortuosas, esburacadas e
arriscadas! Foi por este cenário agreste que se aventuraram José e Maria
durante alguns dias. Felizmente, por estarem num período de recenseamento, por
todo o percurso encontravam uma multidão de pessoas, diminuindo de certo modo
os perigos. Apesar disso não deixava de ser um deslocamento penoso.
Não
consta que José e Maria hajam se queixado de algo. Submeteram-se com docilidade
às determinações, por serem fiéis ao princípio da autoridade, criado por Deus e
posto em prática na legislação. Não se tratava de uma ordem criminosa nem
injusta, logo, devia ser obedecida.
O encontro mais sublime da história
6 Enquanto estavam em Belém, completaram-se
os dias para o parto, 7a e Maria deu à luz o seu Filho primogênito. Ela O
enfaixou e O colocou na manjedoura...
Este
belo trecho deixa transparecer a profissão do Evangelista. Com efeito, ele era
médico. Sabia que uma mãe, ao dar à luz, não tem forças para preocupar-se
diretamente com o recém-nascido, e que o normal é deixá-lo aos cuidados de
outras pessoas. São Lucas, portanto, ao afirmar ter sido Nossa Senhora quem
tratou o menino — “0 enfaixou e O colocou na manjedoura” — deseja ressaltar que
o parto foi indolor, não trazendo consigo os estigmas do pecado original. Esta
ideia é sublinhada também pelo fato de Maria não ter se preocupado em banhar seu
Filho. Nasceu Ele com tanta luz, que a Mãe O enfaixou imediatamente.
Podemos
imaginar a cena: a Santíssima Virgem, que vê pela primeira vez Deus Menino, Segunda
Pessoa da Santíssima Trindade, mas Carne da carne e Sangue do sangue d’Ela! Em atitude
de adoração a Ele — é a única Mãe que pode adorar seu Filho — enfaixa-O, porque
os ossos d’Ele são tenros, as cartilagens ainda são delicadas, e é necessário
protegê-Lo. Enquanto é enfaixado, o Menino olha para Ela, sorri, encanta-Se com
essa criatura virginal que Ele mesmo planejara desde toda a eternidade. Foi
este o encontro mais sublime, elevado e pleno de unção que ocorreu em toda a
História da humanidade: o do Menino Deus com sua Mãe; o da Mãe com seu Filho
Divino.
Sob o signo da castidade
7b …pois no havia lugar para eles na
hospedaria.
Por que
São Lucas utiliza estes termos: “para eles”? Ele poderia ter escrito: “Não havia
lugar para mais ninguém”. Por que não o fez?
Naquela
época não existiam hotéis como hoje. Muitas hospedarias nem sequer possuíam quartos,
o teto era às vezes de palha ou mesmo constituído por um simples caramanchão.
Os animais — cavalos, burros, camelos, etc. — eram deixados pelos viajantes num
pátio defronte às portas da hospedaria. E não se pense em conveniências de
higiene comuns em nossos dias. Naquele mundo se misturavam povos que estavam saindo
da barbárie com outros mais primitivos. Mais de um milênio haveria de passar
para que tal situação sofresse uma mudança profunda e duradoura.
O
convívio humano numa hospedaria tornava-se, por esse motivo, um tanto prosaico.
E o ambiente era em geral de festa: cantava-se à noite, confraternizava-se, até
que o cansaço obrigasse os viajantes a se deitarem. Mas era um dormir meio coletivo.
Situação que não convinha para José e Maria, que haviam sido chamados à prática
do sumo do pudor, da castidade, da virgindade. Por isso, “não havia lugar para
eles”.
Desse
modo, já no nascimento do Menino Jesus depara-mo-nos com uma riqueza de significados
a propósito da virgindade e da castidade que são realçados pelas
circunstâncias. Sem lugar na hospedaria, o Santo Casal escolhe uma Gruta, e é
ali que nasce Deus Encarnado. Ele prefere uma estrebaria a um local onde o
pudor não é praticado de modo excelente. Sua Mãe, Virgem Imaculada, seu pai adotivo,
virgem também. Castidade e pudor, eis o signo sob o qual Ele nasce.
Desapego aos bens deste mundo
A 9 km
da Gruta ficava o palácio de Herodes: inundado de fausto, de riquezas, de
opulência, de luxo, de segurança. Mas o Rei dos reis preferiu nascer na Gruta.
Por quê? Para nos dar outra lição: seja na pobreza, seja na riqueza, não nos
esquecermos de que o importante é voltarmos os olhos para Deus.
Mas
algumas pessoas estavam bem mais próximas do Presépio que Herodes...
8 Naquela região, havia pastores que
passavam a noite nos campos, tomando conta do seu rebanho.
Eram
homens pobres e muito simples de trato, e detestados pelos fariseus por não
seguirem os costumes por eles indicados. Jesus teve preferência por eles.
Contudo, não julguemos que esta predileção vinha sobretudo de sua situação
econômica. Antes deles, já os Reis Magos haviam começado sua viagem do Oriente,
trazendo presentes. Por sonhos, ou revelações quiçá, também tiveram notícia de
que um Salvador nasceria e, atravessando extensas regiões e expondo-se a
grandes riscos, acorreram em busca d’Ele.
Chamando
uns e outros, Deus quis mostrar que veio para os pobres e para os ricos, e que
o importante é não nos apegarmos aos bens materiais, mas, como diz o Papa João
Paulo II, aspirarmos à “bem-aventurança dos pobres, dos ‘pobres em espírito’, como
esclarece São Mateus (Mt 5, 3), ou seja, dos humildes”.1
Desde
que tenhamos humildade, que só se obtém com profundo amor a Deus, estaremos
preparados para encontrar o Menino Jesus recém-nascido.
9Um Anjo do Senhor apareceu aos pastores, a
glória do Senhor os envolveu em luz, e eles ficaram com muito medo.
Havia
entre os judeus a crença de que se alguém visse um Anjo morreria em seguida.
Temeram, portanto, não só pela majestade daquele ser celestial, mas também pelo
presságio que sua aparição poderia representar.
10b “Eu vos anuncio uma grande alegria, que
o será para todo o povo”.
É
possível que a voz do Anjo não fosse suficiente para tranquilizar os pastores.
Certamente receberem uma graça que os sustentou e que os fez sentir o que
ouviam. E sentiram que haveria alegria para eles também.
11 “Hoje, na cidade de Davi, nasceu para
vós um Salvador, que é o Cristo Senhor. 12 Isto vos servirá de sinal:
Encontrareis um recém-nascido envolvido em faixas e deitado numa manjedoura”.
13 E, de repente, juntou-se ao Anjo uma
multidão da coorte celeste. Cantavam louvores a Deus, dizendo: ‘ “Glória a Deus
no mais alto dos Céus, e paz na Terra aos homens por Ele amados”.
Percebe-se
que os pastores foram crescendo na compreensão da grandeza do ocorrido, e que a
visão das miríades de Anjos cantando e louvando a Deus foi para eles um
espetáculo prefigurativo da visão beatífica. Com o coração transbordante de
graça — talvez tenham sido santificados naquele momento — puseram-se logo de
pé, apressando-se em visitar o Menino Jesus.
Evangelho segundo Maria
Ao
terminar esta parte do Evangelho, São Lucas escreve: “Maria conservava todas
estas palavras, meditando-as no seu coração” (2, 19).
É bem
possível que tenha sido Nossa Senhora quem narrou esses fatos aos Apóstolos,
pedindo que seu nome não fosse mencionado. Tal é a sua humildade! Mas São
Lucas, escrevendo deste modo, está indicando ter sido Ela a fonte do relato,
razão pela qual bem poderíamos anunciar a narração do nascimento de Jesus com
estas palavras: “Proclamação do Evangelho segundo Maria!”.
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