Comentários ao Evangelho XXVII Domingo do Tempo Comum – Ano C - 2013 - Lc I 7, 5-10
por Mons João Clá Dias
Naquele tempo, os
Apóstolos disseram ao Senhor: ‘Aumenta a nossa fé!” 6 O Senhor respondeu: “Se
vós tivésseis fé, mesmo pequena como um grão de mostarda, poderíeis dizer a
esta amoreira: Arranca-te daqui e planta-te no mar’, e ela vos obedeceria.
7 Se algum de vós tem um empregado que
trabalha a terra ou cuida dos animais, por acaso vai dizer-lhe, quando ele volta do
campo: Vem depressa para a mesa?’ 8 Pelo contrário, não vai dizer ao empregado:
‘Prepara-me o jantar, cinge-te e serve-me enquanto eu como e bebo; depois disso
tu poderás comer e beber?’ Será que vai agradecer
ao empregado, porque fez o que lhe havia mandado! Assim também vós quando
tiverdes feito tudo o que vos mandaram, dizei: ‘Somos servos inúteis; fizemos o
que devíamos fazer” (Lc I 7, 5-10).
Como enfrentar as desilusões?
Ao longo da existência nos deparamos com situações
imprevistas que podem levar ao desânimo. Só na fé robusta encontraremos força
para enfrentá-las.
O SER HUMANO
QUER RELACIONAR-SE COM OS DEMAIS
Imaginemos um homem punido com o isolamento, preso na
masmorra de uma longínqua torre, convencido de estar inteiramente afastado de
tudo e de todos. Nessa triste situação, sem a mínima possibilidade de
comunicação com qualquer pessoa, vê passarem-se os dias... Certa tarde de
calor, porém, deita-se no chão e ouve, de repente, um rumor de vassoura em
plena atividade. Surpreendido, aproxima-se da parede, coloca ali o ouvido e,
percebendo pelos ruídos tratar-se da presença de alguém do lado oposto, dá
algumas pancadas no muro. A resposta chega de imediato. E outro pobre preso que sofre
de igual problema: isolado, deseja entrar em contato com alguém a quem possa
transmitir suas aflições e que o entenda naquela infeliz situação. Depois de
muitas batidas descobrem que, falando junto ao ralo da cela, conseguem se fazer
ouvir um ao outro e, a partir daí, começa um verdadeiro relacionamento entre
ambos os cativos, causando-lhes imensa consolação. Pois, o isolamento absoluto
que era o maior tormento daquele cativeiro, por ferir o instinto de
sociabilidade, de alguma forma, tinha-se rompido com o estabelecimento desse
rudimentar modo de comunicação. Essa singela história nos ilustra a necessidade
intrínseca ao homem de entrar em contato com seus semelhantes.
Um fenômeno
comum ao gênero humano: a “fímbria da insegurança”
Tal anseio natural, consequência do instinto de sociabilidade
infundido por Deus em nós, é inerente a todos os homens.1 Cada um conserva em
si mesmo um entranhado desejo de obter proteção, de poder apoiar-se em alguém e
de sentir-se seguro, pois Deus não criou o homem autossuficiente. Ele tem
numerosas carências e debilidades que só consegue suprir vivendo em sociedade e
com a entreajuda de seus semelhantes. Por isso, ele tem de ter uma fé humana
nos demais. E é compreensível, pois “sem a fé humana, a vida social seria totalmente
impossível, e boa parte de nossos conhecimentos — os quais cremos serem certos e
seguros — viriam estrepitosamente abaixo”.2 Entretanto, não existe a
possibilidade de aplicar essa fé com total segurança a ninguém sobre a face da
Terra, pois, “pela natureza, nenhuma pessoa adulta está acima ou abaixo de
outra a tal ponto que uma possa elevar-se à frente da outra como autoridade de
valor absoluto”.3 Todos sabemos como a natureza humana é falível em decorrência
do pecado original e, por isso, somos levados a conferir nossos critérios com a
opinião dos demais para diminuir a probabilidade de erro, sobretudo, no que
toca à procura da verdade. Não é sem razão que aconselha Santo Agostinho: “Que
nenhum de vós pretenda colocar sua esperança no homem. O homem só é alguma
coisa enquanto se une Àquele por quem foi feito. Porque, se d’Ele se afastar, nada
mais é o homem, ainda quando se una a outros”.4
E como o gênero humano está sujeito ao erro moral e intelectual,
o homem com frequência trai a confiança dos outros, ao valer-se tão só de sua
própria natureza, pois sem a graça é o egoísmo que prevalece sobre o amor ao
próximo. Desencadeou-se assim para a humanidade uma instabilidade fundamental, denominada
pelo Prof. Plinio Corrêa de Oliveira “fímbria da insegurança”, ou seja, “uma
espécie de fímbria do espírito humano, a qual não elimina a possibilidade de
conhecermos algumas verdades com certa firmeza porém, apenas crepuscular —, misturada
com insegurança”.5 Dessa forma, carregamos dentro de nós mil indecisões, não
havendo, nem em nós nem nos outros, a garantia plena de agir com acerto. A
medida que os anos e as décadas passam o problema se agrava. A experiência da
vida vai contabilizando as desilusões e as decepções. Constatamos um equívoco
aqui, um erro ali, um engano acolá... E concluímos que não se pode depositar a
confiança no homem. Como resolver, então, esse problema da “fimbria da
insegurança” e adquirir certezas firmes?
Ora, se a falibilidade natural do homem torna inconsistente a
confiança no seu semelhante, isso, contudo, não acontecerá se houver a ação
dessa virtude sobrenatural, em relação a Deus, cuja prática tornar-se-á
possível pela graça, e cujo agir não é outro senão o da virtude teologal da
esperança fortalecida por firme convicção, como diz São Tomás,6 e como
sintetiza o grande tomista padre Santiago Ramírez, seguindo a trilha de seu mestre:
“Esperança perfeita e robusta em seu gênero, a qual se chama propriamente
confiança [...1. Não é uma esperança qualquer e vacilante, mas uma esperança firme,
decidida, certa, segura, sem titubeios de nenhuma classe. Uma esperança que não
falha nem defrauda”.7 E a confiança que nos dá a certeza de existir Alguém com
o qual podemos nos relacionar, seguros de nunca produzir em nós equívoco, de nunca
defraudar nossas esperanças legítimas. Esse é Deus!
É tal confiança, sem dúvida, que será capaz de resolver a questão
da “fímbria da insegurança” oculta no interior de todos os homens,
libertando-nos da incerteza que atinge quantos se aferram ao mundo material, segundo
o ensinamento do Bispo de Hipona: ‘Aproxima-te, pois, de Deus; esse jamais
desmerece porque não existe nada de mais formoso. Se as coisas daqui nos aborrecem,
é por causa de sua instabilidade, pois elas não são Deus. Ó alma! Coisa alguma
poderá saciar-te, se não for Aquele que te criou. Lá onde colocares tua mão,
acharás miséria; só poderá saciar-te quem te fez à sua imagem. [...j Só ali, em
Deus, pode haver segurança”.8
A fé viva nos
Evangelhos
Essa fé, todavia, não pode reduzir-se a um simples princípio teórico
e doutrinário. Para ser íntegra, sobretudo em meio a nosso mundo tão
conturbado, é preciso aplicá-la a Alguém: a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade
encamada, Nosso Senhor Jesus Cristo! Os fatos narrados ao longo dos Evangelhos
nos atestam como essa fé viva era um dom comunicado aos que d’Ele se aproximavam
com plena confiança, como, por exemplo, o centurião romano. Tinha ele fé no
poder do Redentor de curar um dos seus servos, inclusive à distância, e dele
afirmaria o Divino Mestre jamais ter encontrado semelhante fé em Israel (cf. Lc
7, 2-10). A fé daquele comandante, que causara admiração no próprio Jesus
enquanto homem, havia-lhe sido infundida por Ele mesmo, enquanto Deus.
Também a persistente cananeia nos deu provas de grande fé ao pedir
com tanta insistência a cura da filha (cf. Mt 15, 22-28). Mais uma vez era um
dom de Deus concedido à estrangeira, em um grau que nem os próprios judeus
possuíam, talvez por não terem querido aceitá-la... Igualmente o pobre leproso,
ao ajoelhar-se e suplicar: “Senhor, se vós quereis, podeis curar-me!” (Lc 5,
12), manifestava uma fé profunda, sendo, por isso, imediatamente atendido. Semelhante
fé ainda revelou-se na sofrida hemorroíssa, que padecia havia longos anos.
Procurava ela, com humildade, um momento oportuno para aproximar-se do Messias,
acreditando ficar curada se ao menos conseguisse tocar na orla de seu manto
sagrado (cf. Lc 8, 43-48).
Tal era a fé que Cristo desejava infundir em seus Apóstolos,
nesta passagem do Evangelho do 27 Domingo do Tempo Comum.
1) Cf.
TAPARELLI, SJ, Luis. Ensayo teórico de Derecho Natural. 2.ed. Madrid: San José,
1884, tI, p.154-155.
2) ROYO
MARIN, OP, Antonio. Lafe de la Iglesia. 4.ed.
Madri& BAC, 1979, p.17.
3) Idem, p.16.
4) SANTO AGOSTINHO.Enarratjo in psalmum
LXXV, n.8. In: Obras. Madrid: BAC, 1965, v.XX, p.992-993.
5) CORREA DE OLIVEIRA, Plinio. Palestra.
São Paulo, 29 maio 1965.
6) Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. II-JI,
q.129, a.6, ad 3.
7) RAMIREZ,
OP, Santiago. La esencia de la esperanza cristiana. Madrid: Punta Europa, 1960, p.120-121.
8) SANTO AGOSTINHO. Sermo CXXV, nil. In:
Obras. 2.ed.
Madrid: BAC, 1965, v.X, p.531-532.
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