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sábado, 28 de setembro de 2013

Evangelho XXVII Domingo do Tempo Comum – Ano C - 2013

Comentários ao Evangelho XXVII Domingo do Tempo Comum – Ano C - 2013 - Lc I 7, 5-10
por Mons João Clá Dias
Naquele tempo, os Apóstolos disseram ao Senhor: ‘Aumenta a nossa fé!” 6 O Senhor respondeu: “Se vós tivésseis fé, mesmo pequena como um grão de mostarda, poderíeis dizer a esta amoreira: Arranca-te daqui e planta-te no mar’, e ela vos obedeceria.
 7 Se algum de vós tem um empregado que trabalha a terra ou cuida dos animais, por  acaso vai dizer-lhe, quando ele volta do campo: Vem depressa para a mesa?’ 8 Pelo contrário, não vai dizer ao empregado: ‘Prepara-me o jantar, cinge-te e serve-me enquanto eu como e bebo; depois disso tu poderás comer e beber?’  Será que vai agradecer ao empregado, porque fez o que lhe havia mandado! Assim também vós quando tiverdes feito tudo o que vos mandaram, dizei: ‘Somos servos inúteis; fizemos o que devíamos fazer” (Lc I 7, 5-10).
Como enfrentar as desilusões?
Ao longo da existência nos deparamos com situações imprevistas que podem levar ao desânimo. Só na fé robusta encontraremos força para enfrentá-las.
O SER HUMANO QUER RELACIONAR-SE COM OS DEMAIS
Imaginemos um homem punido com o isolamento, preso na masmorra de uma longínqua torre, convencido de estar inteiramente afastado de tudo e de todos. Nessa triste situação, sem a mínima possibilidade de comunicação com qualquer pessoa, vê passarem-se os dias... Certa tarde de calor, porém, deita-se no chão e ouve, de repente, um rumor de vassoura em plena atividade. Surpreendido, aproxima-se da parede, coloca ali o ouvido e, percebendo pelos ruídos tratar-se da presença de alguém do lado oposto, dá algumas pancadas no muro. A resposta chega de imediato. E outro pobre preso que sofre de igual problema: isolado, deseja entrar em contato com alguém a quem possa transmitir suas aflições e que o entenda naquela infeliz situação. Depois de muitas batidas descobrem que, falando junto ao ralo da cela, conseguem se fazer ouvir um ao outro e, a partir daí, começa um verdadeiro relacionamento entre ambos os cativos, causando-lhes imensa consolação. Pois, o isolamento absoluto que era o maior tormento daquele cativeiro, por ferir o instinto de sociabilidade, de alguma forma, tinha-se rompido com o estabelecimento desse rudimentar modo de comunicação. Essa singela história nos ilustra a necessidade intrínseca ao homem de entrar em contato com seus semelhantes.
Um fenômeno comum ao gênero humano: a “fímbria da insegurança”
Tal anseio natural, consequência do instinto de sociabilidade infundido por Deus em nós, é inerente a todos os homens.1 Cada um conserva em si mesmo um entranhado desejo de obter proteção, de poder apoiar-se em alguém e de sentir-se seguro, pois Deus não criou o homem autossuficiente. Ele tem numerosas carências e debilidades que só consegue suprir vivendo em sociedade e com a entreajuda de seus semelhantes. Por isso, ele tem de ter uma fé humana nos demais. E é compreensível, pois “sem a fé humana, a vida social seria totalmente impossível, e boa parte de nossos conhecimentos — os quais cremos serem certos e seguros — viriam estrepitosamente abaixo”.2 Entretanto, não existe a possibilidade de aplicar essa fé com total segurança a ninguém sobre a face da Terra, pois, “pela natureza, nenhuma pessoa adulta está acima ou abaixo de outra a tal ponto que uma possa elevar-se à frente da outra como autoridade de valor absoluto”.3 Todos sabemos como a natureza humana é falível em decorrência do pecado original e, por isso, somos levados a conferir nossos critérios com a opinião dos demais para diminuir a probabilidade de erro, sobretudo, no que toca à procura da verdade. Não é sem razão que aconselha Santo Agostinho: “Que nenhum de vós pretenda colocar sua esperança no homem. O homem só é alguma coisa enquanto se une Àquele por quem foi feito. Porque, se d’Ele se afastar, nada mais é o homem, ainda quando se una a outros”.4
E como o gênero humano está sujeito ao erro moral e intelectual, o homem com frequência trai a confiança dos outros, ao valer-se tão só de sua própria natureza, pois sem a graça é o egoísmo que prevalece sobre o amor ao próximo. Desencadeou-se assim para a humanidade uma instabilidade fundamental, denominada pelo Prof. Plinio Corrêa de Oliveira “fímbria da insegurança”, ou seja, “uma espécie de fímbria do espírito humano, a qual não elimina a possibilidade de conhecermos algumas verdades com certa firmeza porém, apenas crepuscular —, misturada com insegurança”.5 Dessa forma, carregamos dentro de nós mil indecisões, não havendo, nem em nós nem nos outros, a garantia plena de agir com acerto. A medida que os anos e as décadas passam o problema se agrava. A experiência da vida vai contabilizando as desilusões e as decepções. Constatamos um equívoco aqui, um erro ali, um engano acolá... E concluímos que não se pode depositar a confiança no homem. Como resolver, então, esse problema da “fimbria da insegurança” e adquirir certezas firmes?
Ora, se a falibilidade natural do homem torna inconsistente a confiança no seu semelhante, isso, contudo, não acontecerá se houver a ação dessa virtude sobrenatural, em relação a Deus, cuja prática tornar-se-á possível pela graça, e cujo agir não é outro senão o da virtude teologal da esperança fortalecida por firme convicção, como diz São Tomás,6 e como sintetiza o grande tomista padre Santiago Ramírez, seguindo a trilha de seu mestre: “Esperança perfeita e robusta em seu gênero, a qual se chama propriamente confiança [...1. Não é uma esperança qualquer e vacilante, mas uma esperança firme, decidida, certa, segura, sem titubeios de nenhuma classe. Uma esperança que não falha nem defrauda”.7 E a confiança que nos dá a certeza de existir Alguém com o qual podemos nos relacionar, seguros de nunca produzir em nós equívoco, de nunca defraudar nossas esperanças legítimas. Esse é Deus!
É tal confiança, sem dúvida, que será capaz de resolver a questão da “fímbria da insegurança” oculta no interior de todos os homens, libertando-nos da incerteza que atinge quantos se aferram ao mundo material, segundo o ensinamento do Bispo de Hipona: ‘Aproxima-te, pois, de Deus; esse jamais desmerece porque não existe nada de mais formoso. Se as coisas daqui nos aborrecem, é por causa de sua instabilidade, pois elas não são Deus. Ó alma! Coisa alguma poderá saciar-te, se não for Aquele que te criou. Lá onde colocares tua mão, acharás miséria; só poderá saciar-te quem te fez à sua imagem. [...j Só ali, em Deus, pode haver segurança”.8
A fé viva nos Evangelhos
Essa fé, todavia, não pode reduzir-se a um simples princípio teórico e doutrinário. Para ser íntegra, sobretudo em meio a nosso mundo tão conturbado, é preciso aplicá-la a Alguém: a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade encamada, Nosso Senhor Jesus Cristo! Os fatos narrados ao longo dos Evangelhos nos atestam como essa fé viva era um dom comunicado aos que d’Ele se aproximavam com plena confiança, como, por exemplo, o centurião romano. Tinha ele fé no poder do Redentor de curar um dos seus servos, inclusive à distância, e dele afirmaria o Divino Mestre jamais ter encontrado semelhante fé em Israel (cf. Lc 7, 2-10). A fé daquele comandante, que causara admiração no próprio Jesus enquanto homem, havia-lhe sido infundida por Ele mesmo, enquanto Deus.
Também a persistente cananeia nos deu provas de grande fé ao pedir com tanta insistência a cura da filha (cf. Mt 15, 22-28). Mais uma vez era um dom de Deus concedido à estrangeira, em um grau que nem os próprios judeus possuíam, talvez por não terem querido aceitá-la... Igualmente o pobre leproso, ao ajoelhar-se e suplicar: “Senhor, se vós quereis, podeis curar-me!” (Lc 5, 12), manifestava uma fé profunda, sendo, por isso, imediatamente atendido. Semelhante fé ainda revelou-se na sofrida hemorroíssa, que padecia havia longos anos. Procurava ela, com humildade, um momento oportuno para aproximar-se do Messias, acreditando ficar curada se ao menos conseguisse tocar na orla de seu manto sagrado (cf. Lc 8, 43-48).

Tal era a fé que Cristo desejava infundir em seus Apóstolos, nesta passagem do Evangelho do 27 Domingo do Tempo Comum.
1) Cf. TAPARELLI, SJ, Luis. Ensayo teórico de Derecho Natural. 2.ed. Madrid: San José, 1884, tI, p.154-155.
2) ROYO MARIN, OP, Antonio. Lafe de la Iglesia. 4.ed. Madri& BAC, 1979, p.17.
3) Idem, p.16.
4) SANTO AGOSTINHO.Enarratjo in psalmum LXXV, n.8. In: Obras. Madrid: BAC, 1965, v.XX, p.992-993.
5) CORREA DE OLIVEIRA, Plinio. Palestra. São Paulo, 29 maio 1965.
6) Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. II-JI, q.129, a.6, ad 3.
7) RAMIREZ, OP, Santiago. La esencia de la esperanza cristiana. Madrid: Punta Europa, 1960, p.120-121.
8) SANTO AGOSTINHO. Sermo CXXV, nil. In: Obras. 2.ed. Madrid: BAC, 1965, v.X, p.531-532.
Continua no próximo post

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

EVANGELHO XXVI DOMINGO DO TEMPO COMUM - ANO C - 2013 - Lc 16, 19-31

CONTINUAÇÃO DOS COMENTÁRIOS DE MONS JOÃO CLÁ DIAS AO EVANGELHO DO XXVI DOMINGO DO TEMPO COMUM -  ANO C - 2013 - Lc 16, 19-31
Invertendo os papéis na Parábola
Pode-se perguntar: vai-se para o inferno pelo simples fato de ser rico? No Céu, só entram os mendigos? Toda riqueza é um mal e toda miséria, um bem?
Neste trecho de Lucas, encontramos a descrição de uma condenação e de uma salvação. As penas eternas aplicadas ao avarento são devidas ao mau uso das riquezas, pois estas, de si, são neutras, nem boas, nem más. Depende do uso que delas se faça. O mesmo se deve dizer da pobreza, não é ela boa, nem má. Para qualificá-la é necessário saber com que disposição interior foi aceita.
Assim, para maior clareza de análise, invertamos os papéis das duas figuras principais da Parábola. Imaginemos o rico cheio de compaixão por Lázaro, a ponto de contratar um médico para curar-lhe as chagas, comprar-lhe os remédios, conseguir-lhe um bom abrigo e proporcionar-lhe deliciosos alimentos. Ademais, procurando cercá-lo de afetuosas atenções, chegando a rezar várias vezes ao dia por sua saúde, como também por sua eterna salvação.
Por outro lado, suponhamos um Lázaro que teria a alma mais ulcerada do que seu corpo, pois se consumiria de inveja dos bens do rico e, revoltado contra tudo, contra todos e contra o próprio Deus, cobriria de injúrias o seu benfeitor, desejando-lhe a desgraça e até a morte. A cada ato de comiseração e estima da parte do rico, corresponderia uma reação mal-educada e ressentida de Lázaro. Este só se acalmaria quando obtivesse toda a fortuna daquele, e, para isto, estaria disposto a instigar seu ódio em muitos outros.
Se, nesse estado de alma, morressem ambos, qual seria o destino eterno de cada um?
Não há a menor dúvida: Lázaro iria para os “tormentos do inferno” e o rico seria “levado pelos Anjos ao seio de Abraão”.
Confirmando esta suposição, ouçamos o comentário feito por São João Crisóstomo: “Os Anjos serviram e levaram o pobre e o colocaram no seio de Abraão, porque ele, apesar de ter vivido desprezado, não havia se desesperado, nem blasfemou dizendo: ‘Este rico goza vivendo na opulência e não padece tribulação, e eu não posso alcançar o alimento necessário’” 6.
Quanto precisamos ter sempre presente diante dos nossos olhos esta Parábola, a fim de bem sabermos nos servir, sem apego, das riquezas e aceitarmos com paciente resignação as dores, provações e contingências da vida!
Essa é a fundamental lição para todos os tempos: o bom relacionamento entre ricos e pobres, e de ambos com Deus, no uso dos bens ou na aceitação das situações constrangedoras pelas quais passem.
Como andará o mundo de hoje nessa matéria? Haverá ainda Lázaros de alma? Existirão ainda os ricos de espírito? E qual será o destino eterno de uns e de outros?
 “PREGAI TODA A VERDADE SOBRE O INFERNO”
O texto evangélico narra-nos a seguir um tal tormento do rico entre as chamas eternas, que uma simples gota de água seria suficiente para lhe refrescar a língua. Um abismo separa os dois mundos, o Céu do inferno. Será real essa tragédia? A Revelação é abundante nessa matéria: “Qual de nós poderá habitar no fogo devorador, nas chamas eternas?” (Is 33, 14). O Evangelho nos fala quatorze vezes sobre o inferno com expressões categóricas como estas: “fogo inextinguível” (Mc 9, 43), “... o seu verme não morre e o fogo não se apaga...” (idem, 48); “...e lançá-los-ão na fornalha de fogo. Ali haverá choro e ranger de dentes” (Mt 13, 42). E o Apocalipse: “Serão lançados vivos no abismo abrasado de fogo e enxofre para ser atormentados noite e dia por todos os séculos dos séculos” (20, 10).
Por isso, o condenado da parábola roga a Abraão mandar Lázaro à sua casa paterna para convencer os cinco irmãos sobre o “lugar de tormentos”, no qual ele se encontra para todo o sempre. Segundo seu critério, o ideal seria que “alguém do mundo dos mortos fosse ter com eles” para adverti-los sobre os horrores do castigo eterno, pois só assim se converteriam.
Abraão é muito incisivo em sua resposta, declarando que também os outros cinco irmãos acabariam por ser lançados no inferno, se não acreditassem em Moisés e nos profetas.
Segundo pode-se deduzir desses versículos, até o precito da Parábola julga indispensável explicar a existência do inferno. E, de fato, esse é o empenho dos Santos e do próprio Magistério infalível da Igreja, como declarou em certa ocasião o Bem-Aventurado Papa Pio IX: “Pregai muito as grandes verdades da salvação, pregai sobretudo o inferno; nada de meias palavras, dizei, clara e altamente, toda a verdade sobre o inferno. Nada é mais capaz de fazer refletir e de conduzir a Deus os pobres pecadores” 7.
Bem clara é também a linguagem de nosso catecismo atual: “O ensinamento da Igreja afirma a existência e a eternidade do inferno. As almas dos que morrem em estado de pecado mortal descem imediatamente após a morte aos infernos, onde sofrem as penas do inferno, ‘o fogo eterno’. A pena principal do inferno consiste na separação eterna de Deus, o Único em quem o homem pode ter a vida e a felicidade para as quais foi criado e às quais aspira” 8.
Sobre a eficácia da crença nos fogos eternos, um dos grandes escritores do séc. XIX, o Pe. Frederick W. Faber, afirmava: “A mais fatal preparação do demônio para a vinda do anticristo é o esmorecimento da crença dos homens no castigo eterno. Se fossem estas as derradeiras palavras por mim a vós dirigidas, lembrai-vos de que nada eu quereria imprimir tão profundamente em vossas almas, nenhum pensamento de fé — após o do Preciosíssimo Sangue — vos seria mais útil e proveitoso do que sobre o castigo eterno.” 9
Lembremo-nos sempre de como nossa morte pode ser súbita e quão necessário é vivermos nas disposições de alma de Lázaro, na maior resignação face aos infortúnios, desapegados dos bens deste mundo, fortes na oração, na prática da Religião e da virtude, ardorosos devotos da Mãe de Deus, para assim gozarmos da felicidade eterna.
Essas são as reflexões para a liturgia deste XXVI domingo do Tempo Comum.
1) Cf. Suma Teológica, I-II, q 87, a 2-4
2 ) Mt 5, 22; 10, 28; 18, 9; Mc IX, 42, 48; etc.
3 ) Suma Teológica, Supl q 97, a 2, 5 e 6
4 ) Ab. A. Monnin, Espírito do Cura d’Ars, Ed. Vozes, Petrópolis, 1949, 2ª ed., pp. 80-81.
5) Exortação Apostólica post-sinodal de 1984
6) Catena Áurea, in Lucam
7 ) M. de Ségur, L’enfer, Paris, 1875.
 8 ) CIC, nº 1.035
9 ) Pe. Bondeu, Vida e cartas do Pe. Faber, t. 2, c. 7, p. 389.


terça-feira, 24 de setembro de 2013

XXVI DOMINGO DO TEMPO COMUM - ANO C - 2013 - Lc 16, 19-31

CONTINUAÇÃO DOS COMENTÁRIOS AO EVANGELHO DO XXVI DOMINGO DO TEMPO COMUM  Lc 16, 19-31
O JUÍZO ETERNO
No entardecer de nossa vida, seremos julgados segundo o amor”, escreveu São João da Cruz.
A cena descrita em seguida é ainda mais dramática e passa-se logo após a morte de ambos.
Sobre o corpo de Lázaro, nenhuma notícia ou comentário. Certamente atirado numa vala comum, própria aos indigentes, sem qualquer cerimônia. Entretanto, enquanto a preocupação dos responsáveis era de se verem livres daquele desprezível cadáver, os Anjos conduziram sua alma ao Céu, pois, de acordo com a literatura rabínica, no Paraíso não se entrava senão pelo auxílio dos puros espíritos.
O rico também morre, pois nem o muito dinheiro nos livra desse fim. Mas sua alma há muito já deixara a vida espiritual, pois as ações próprias a esta, ele não as praticava. De fato, sua dureza de coração e falta de compaixão para com o mendigo, à porta de seu palácio, somadas à suma fruição dos bens terrenos, haviam destroçado qualquer laivo de amor a Deus. A respeito dele, Lucas afirma ter sido sepultado, mas não diz uma palavra sobre quem acompanhou o seu enterro e quais as pompas que o cercaram. Quantos aduladores devem ter rodeado o rico durante a vida, interessados nos seus bens, ou até mesmo para gozar do prestígio de sua amizade e, ao término de sua existência, nem sequer dele se lembraram... Como foi seu juízo particular? Qual a sentença proferida por Deus? Não se ocupa desses detalhes o Evangelho e simplesmente apresenta o rico entre os tormentos do inferno.
Ofensa infinita, castigo eterno
A Doutrina Católica nos ensina claramente que o pecado mortal constitui uma ofensa a Deus, irreparável e de suma gravidade. Quem morre na impenitência final, resistindo até o último momento, fixa-se no pecado mortal enquanto desordem permanente, merecendo um castigo também eterno1.
A gravidade da ofensa se mede sobretudo pela dignidade da pessoa ofendida. Uma agressiva bofetada desfechada por alguém a seu igual, merece uma penalidade muito menor do que uma outra, da mesma intensidade, desferida contra uma grande e representativa personalidade. O castigo sempre deverá ser aplicado em proporção com a categoria do ofendido. Ora, se a pessoa ultrajada é infinita, o castigo só poderá ser eterno; tanto mais que, para reparar o pecado, quis o Verbo de Deus encarnar-se e sofrer todos os tormentos da Paixão.
Mas, como se pode explicar que um pecado, cometido em apenas alguns minutos, mereça uma pena eterna? Segundo nos ensina São Tomás, a perpetuidade dos castigos infligidos por Deus aos condenados está proporcionada, não à duração do pecado atual, mas à sua gravidade. A Justiça humana também usa o mesmo critério, ao condenar à prisão perpétua alguns réus cujos crimes foram praticados em poucos minutos.
Assim se compreende o porquê de ter ido para o inferno aquele rico: morreu na impenitência final de sua grave avareza.
O inferno, consequência do pecado
Lucas nos fala dos “tormentos do inferno”. Sabemos pela Revelação o quanto são eles terríveis. Acima de todos os sofrimentos está a pena de dano: o fato de ter sido criado para participar da felicidade do próprio Deus e ver-se por Ele rejeitado, é o maior dos tormentos. Daí surgem duas reações no condenado: a primeira consiste em querer destruir a Deus para pôr fim às suas angústias; a segunda, em desejar sua própria aniquilação. Ora, como ambas são irrealizáveis, a conseqüência é o desespero eterno.
A esse incomensurável sofrimento se acrescenta o dos sentidos. A Revelação não deixa margem a dúvidas sobre a realidade do fogo do inferno2 e de sua natureza corpórea3. Queimando os corpos sem consumilos, quem o sustenta sempre aceso é o próprio Deus. Os cinco sentidos são atormentados de maneira especial em relação aos pecados correspondentes.
Na sua santidade de modelo sacerdotal, São João Maria Batista Vianney tece algumas piedosas considerações muito úteis para se compreender o porquê foi o rico parar no inferno: “Meus filhos, se vísseis um homem fazer uma grande fogueira, empilhar pedaços de lenha uns sobre os outros e, perguntando-lhe o que estava fazendo, ele vos respondesse: ‘Estou preparando o fogo que me deverá queimar’, que pensaríeis? E se vísseis esse mesmo homem aproximar-se da fogueira já acesa e atirar-se nela... que diríeis? Cometendo o pecado, é assim que fazemos. Não é Deus que nos lança no inferno, somos nós que nele nos lançamos pelos nossos pecados. O condenado dirá: ‘Perdi a Deus, minha alma e o Céu; foi por minha culpa, por minha máxima culpa!’... Elevar-se-á do braseiro para tornar a cair nele... Sentirá sempre a necessidade de se elevar, porque era criado para Deus, o maior, o mais alto de todos os seres, o Altíssimo ... como uma ave num aposento voa até o teto que detém os condenados.
“Adiamos a nossa conversão para a hora da morte; mas quem nos assegura que teremos o tempo e a força nesse momento terrível, receado por todos os Santos, quando o inferno se congrega para desferir-nos o último assalto, vendo que é o instante decisivo?
“Muitos há que perdem a fé, e só crêem no inferno, nele entrando. “Não, sem dúvida, se os pecadores pensassem na eternidade, nesse terrível ‘sempre!’ ... haveriam de se converter imediatamente...” 4.
Quantas e quantas vezes o rico não deve ter sentido, dentro de si, a voz da consciência recriminando-lhe o apego desregrado pelas roupas, pelos prazeres excessivos da mesa e, sobretudo, pelo dinheiro! Lázaro à sua porta era um dom de Deus, estimulando-o à prática da caridade e, ao mesmo tempo, à compreensão do vazio das criaturas. Mas ele preferiu os bens deste mundo a ponto de dar as costas a Deus. Daí entender-se melhor os versículos 22 a 26:
Morreu também o rico, e foi sepultado. Quando estava nos tormentos do inferno, levantando os olhos, viu ao longe Abraão e Lázaro no seu seio. Então exclamou: “Pai Abraão, compadece-te de mim, e manda Lázaro que molhe em água a ponta do seu dedo para refrescar a minha língua, pois sou atormentado nestas chamas”. Abraão disse-lhe: “Filho, lembra-te que recebeste os teus bens em vida, e Lázaro, ao contrário, recebeu males; agora é ele aqui consolado e tu és atormentado. Além disso, há entre nós e vós um grande abismo; de maneira que os que querem passar daqui para vós não podem, nem os daí podem passar para nós”.
Torna-se patente o empenho do Divino Mestre, tão bem transcrito por Lucas, em alertar os cristãos de todos os tempos para os castigos eternos, como conseqüência de uma vida transcorrida no pecado, e, em extremo oposto, a alegria com que será premiada a virtude após a morte.
 Por isso, o Magistério da Igreja sempre fez eco à voz de Jesus, como, por exemplo, nestas palavras de João Paulo II:
“Até mesmo no campo do pensamento e da vida eclesial, algumas tendências favorecem inevitavelmente o declínio do senso do pecado. Alguns, por exemplo, tendem a substituir posições exageradas do passado, por outros exageros; assim, da atitude de ver o pecado em toda parte, passa-se a não o vislumbrar em parte alguma; da demasiada acentuação do temor das penas eternas, à pregação dum amor de Deus que excluiria toda e qualquer pena merecida pelo pecado; da severidade no esforço para corrigir as consciências errôneas, a um pretenso respeito pela consciência, até suprimir o dever de dizer a verdade. (...)
“Diante do problema do embate de uma vontade rebelde com Deus infinitamente justo, não se pode deixar de nutrir sentimentos de salutar ‘temor e tremor’, como sugere São Paulo” 5.

Assim sendo, a Parábola de hoje tem grande importância para os dias atuais e por isso vale a pena conhecê-la em toda sua substância e profundidade.
Continua no próximo post

domingo, 22 de setembro de 2013

EVANGELHO XXVI DOMINGO DO TEMPO COMUM - ANO C - 2013 - Lc 16, 19-31

COMENTÁRIO AO EVANGELHO DO XXVI DOMINGO DO TEMPO COMUM
O POBRE E O RICO
Estamos, uma vez mais, diante de uma cena evangélica sobre a condenação eterna. O inferno se apresenta nesta parábola com algumas características ainda não conhecidas até então, e em dramático contraste com o prêmio celeste.
O  EVANGELHO Lc 16, 19-31
Havia um homem rico que se vestia de púrpura e de linho fino e todos os dias se banqueteava esplendidamente. 20 Havia também um mendigo, chamado Lázaro, que, coberto de chagas, estava deitado à sua porta, 21 desejando saciar-se com as migalhas que caíam da mesa do rico, e até os cães vinham lamber-lhe as chagas.
22 Sucedeu morrer o mendigo, e foi levado pelos Anjos ao seio de Abraão. Morreu também o rico, e foi sepultado. 23 Quando estava nos tormentos do inferno, levantando os olhos, viu ao longe Abraão e Lázaro no seu seio. 24 Então exclamou: “Pai Abraão, compadece-te de mim, e manda Lázaro que molhe em água a ponta do seu dedo para refrescar a minha língua, pois sou atormentado nestas chamas”.
25 Abraão disse-lhe: “Filho, lembra-te que recebeste os teus bens em vida, e Lázaro, ao contrário, recebeu males; agora é ele aqui consolado e tu és atormentado. 26 Além disso, há entre nós e vós um grande abismo; de maneira que os que querem passar daqui para vós não podem, nem os daí podem passar para nós”. 27 O rico disse: “Rogo-te, pois, ó pai, que o mandes à minha casa paterna, 28 pois tenho cinco irmãos, para que os advirta disto, e não suceda virem também eles parar a este lugar de tormentos”.
29 Abraão disse-lhe: “Eles têm Moisés e os profetas; ouçam-nos”. 30 Ele, porém, disse: “Não basta isso, pai Abraão, mas, se alguém do Reino dos mortos for ter com eles, farão penitência”. 31 Ele disselhe: “Se não ouvirem Moisés e os profetas, também não acreditarão, ainda que ressuscite alguém dentre os mortos”. (Lc 16, 19-31)
A parábola do Evangelho deste domingo se desdobra em três atos sucessivos. No primeiro, assistimos ao paroxismo de situações opostas, entre o pobre Lázaro e o rico, ainda nesta terra. A seguir, ambos morrem, e são conduzidos a destinos bem diferentes. Lázaro vai para o Céu e o rico para o inferno. Este, em meio aos tormentos do fogo, se dirige a Abraão, rogando um lenitivo. Por último, implora pelos próprios parentes, a fim de evitar que caiam na mesma desgraça.
Tendo em vista a profundidade dos múltiplos significados das palavras e ações do Divino Mestre, procuremos apreciar com amor todas as importantíssimas lições contidas no Evangelho deste domingo.
OS EPISÓDIOS NESTA TERRA
À primeira impressão, o drama nos enche a alma de compaixão pelo pobre Lázaro e nos conduz a uma antipatia pelo avarento. As formas podem ter sido escolhidas pelo Divino Pedagogo com mero intuito didático, entretanto, na sua essência, os fatos narrados são realíssimos e se repetem ao longo de toda a existência humana. Comecemos por analisar o avarento.
O rico avarento
Na literatura judaica, as figuras cheias de posses eram comumente apresentadas vestidas de púrpura. As túnicas e roupas interiores eram confeccionadas em puro linho. Com a maneira refinada de vestir-se, desfrutava o rico em questão também de uma elaborada culinária oriental. Curioso é de se notar que a narração evangélica não menciona amigos ou convidados aos festins diários do personagem em foco. Teria talvez esse rico um tão supino egoísmo, que preferia comer a sós, com o receio de, ao condividir os prazeres da mesa, diminuir seu próprio gozo? Também não aparece nenhuma referência sobre as instalações do tal rico. Terá sido um grande palácio? Não era o costume da época. O luxo naqueles tempos era bem mais fruído nas roupas e nos prazeres da mesa do que nas magnificências dos palácios.
Transparece nesse simples versículo (v. 19) o claro desejo do Divino Mestre de focalizar a figura de um homem abastado e rodeado dos melhores prazeres: dinheiro em quantidade, finos tecidos e excelente comida. Até aqui a descrição não insinua maior desordem na conduta do rico. Sua avareza se evidenciará pateticamente nos detalhes da dolorosa miséria do mendigo deitado à porta de sua opulência.
O pobre Lázaro
Do rico, não sabemos o nome, mas a memória do mendigo se fixou na História. Lázaro, diminutivo popular de Eleazar, cujo significado é “Deus ajuda”. Certamente se tratava de um desses mendigos que se aninhavam em determinados cantos ou entradas de casas para obter uma esmola ou algum alimento. A miséria aliada à sensação de abandono levava-os a uma verdadeira obstinação de se fixarem num posto e ali permanecerem, muitas vezes por décadas. Até hoje em dia, o mesmo fenômeno se repete. Quem de nós não se recorda de pelo menos um caso assim? Dá-se ao mendigo um nome, ou um apelido, e se estabelece uma certa familiaridade entre ele e seus benfeitores. Apesar de sua indigência, de seu aspecto pouco asseado ou da decomposição da fisionomia, ele sempre terá alguns simpatizantes que, além de uns trocados, lhe darão uns dedos de prosa. Ele saberá colocar-se em situações onde possa chamar a atenção sobre si.
Provavelmente, esses elementos somados a outros tantos levaram o bom Lázaro a deitar-se na porta principal do edifício do rico. Ali permanecia silencioso ou desenrolando uma ladainha de pedidos, a fim de implorar — com base em seu miserável aspecto, ou através da pura palavra — o auxílio dos transeuntes. Era seu posto fixo de mendicância, tolerado pelo dono da casa, o qual, dessa forma, manifestava alguma caridade em relação ao mendigo.
Como se não lhe bastasse a penúria dos meios de subsistência, seu corpo estava coberto de chagas. Algumas delas à mostra, sobretudo nas pernas insuficientemente cobertas pela curta túnica — quiçá, não só curta mas também rasgada.
Naqueles tempos, não era incomum, na Palestina, o contraste entre mendigos estropiados e peregrinos de porta em porta à busca de restos de comida a fim de não morrer de fome, e, de outro lado, ricos acomodados em seu fausto. Porém, os pobres não eram revoltados com sua situação de inferioridade e nem desejavam promover uma revolução social para ter parte na fortuna alheia. Eles não almejavam senão viver.
Lázaro desejava se alimentar das migalhas, ou seja, das sobras da mesa do rico, o qual “todos os dias se banqueteava esplendidamente”. A completa indiferença da opulência em relação à extrema miséria do mendigo sentado à sua porta, demonstrava que ao rico faltava o carinho cheio de calor humano para aliviar um pouco o sofrimento de Lázaro. Esse afeto só era concedido ao pobre pelos cães, tão dramático era seu estado. Ele nem forças tinha para os afastar de perto de si.

Assim termina o primeiro ato da parábola: o rico satisfeitíssimo em seu fausto, indiferente ao infeliz pobre, na indigência de sua roupa, saúde e alimentos, vivendo os últimos suspiros de sua existência.
Continua