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sábado, 1 de março de 2014

Evangelho 1º Domingo da Quaresma - Mt 4, 1 -11 - Ano A

Comentários ao Evangelho 1º Domingo da Quaresma - Ano A -Mt 4, 1 - 11
Naquele tempo, 1 o Espírito conduziu Jesus ao deserto, para ser tentado pelo diabo.
2 Jesus jejuou durante quarenta dias e quarenta noites, e, depois disso, teve fome.  Então, o tentador aproximou-se e disse a Jesus: “Se és Filho de Deus, manda que estas pedras se transformem em pãesl” 4Mas Jesus respondeu: “Está escrito: ‘Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus”.
5 Então o diabo levou Jesus à Cidade Santa, colocou-O sobre a parte mais alta do Templo, 6 Lhe disse: “Se és Filho de Deus, lança-Te daqui abaixo! Porque está escrito Deus dará ordens aos seus Anjos a teu respeito, e eles Te levarão nas mãos, para que não tropeces em alguma pedra”. Jesus lhe respondeu: “Também está escrito: ‘Não tentarás o Senhor teu Deus!”
8 Novamente, o diabo levou Jesus para um monte muito alto. Mostrou-Lhe todos os reinos do mundo e sua glória,  Lhe disse: “Eu Te darei tudo isso, se Te ajoelhares diante de mim, para me adorar”. 10 Jesus lhe disse: “Vai-te embora, satanás, porque está escrito: ‘Adorarás ao Senhor teu Deus e somente a Ele prestarás culto”. 11 Então o diabo O deixou. E os Anjos se aproximaram e serviram a Jesus (Mt 4, 1 - 1 1).
Ao triunfar sobre o demônio e as tentações no deserto, Nosso Senhor nos dá a principal garantia de que também nós, sustentados pela graça, podemos transpor incólumes todas as lutas espirituais.
“A VIDA DO HOMEM SOBRE A TERRA É UMA LUTA”
Os fenômenos da natureza humana, mesmo os mais comuns, não raras vezes obedecem a leis que, ao serem analisadas com atenção, podem nos proporcionar valiosas lições. E o que acontece quando sofremos uma fratura e somos obrigados, por exemplo, a manter engessado durante longo período um braço ou uma perna. No momento em que o gesso é retirado comprovamos que o membro atingido, embora antes fosse forte e vigoroso, tornou-se flácido. A musculatura ficou atrofiada pela imobilidade, sendo necessário submetê-la a sessões de fisioterapia para readquirir seu aspecto normal. Algo parecido se verifica com o homem que trabalhou a vida inteira e, ao se aposentar, opta por uma existência scdentária, permanecendo sentado na maior parte do dia numa confortável cadeira de balanço. Tal regime o expõe, com o tempo, a alguma grave doença, pois a constituição do ser humano exige movimento, esforço e combate.
Isso tem sua reversibilidade na vida espiritual, e até com maior razão. Nossa alma precisa exercitar-se constantemente na virtude a fim de aderir ao bem com toda a força, para o que as dificuldades, sobretudo a tentação, contribuem com um importante estímulo, como recorda Santo Agostinho: “Nossa vida neste desterro não pode existir sem tentação, já que o nosso progresso é levado a cabo pela tentação. Ninguém se conhece a si mesmo se não é tentado; nem pode ser coroado se não vence; nem vence se não peleja; nem peleja se lhe faltam inimigo e tentações” .
A Liturgia deste 1º Domingo da Quaresma nos ensina a reconhecer a necessidade e o valor da tentação.
O Paraíso Terrestre: uma maravilha que excede a natureza humana
A primeira leitura (Gn 2, 7-9; 3, 1-7) relata como Deus, depois de criar o homem, o introduziu no Paraíso Terrestre onde “fez brotar da terra toda sorte de árvores de aspecto atraente e de fruto saboroso ao paladar, a árvore da vida no meio do jardim e a árvore do conhecimento do bem e do mal” (Gn 2,9). Segundo São Tomás de Aquino,2 era um lugar muito superior à natureza do homem — moldado com a terra deste mundo e só depois levado para o Eden (cf. Gn 2, 7-8) —, mas ao qual ele se adequava em virtude do dom sobrenatural da incorruptibilidade, infundido por Deus. Podemos supor que a natureza vegetal ali era esplendorosa, com flores, frutos e folhagens dotados de um brilho especial, e animais mais perfeitos que os atuais.
Apesar de estarem cercados de maravilhas, algo faltava a nossos primeiros pais: não tinham o mérito da fidelidade face às vicissitudes e reveses, o mérito da luta. A este propósito, comenta o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira: “Até aquele momento, que luta tinha travado Adão? Nenhuma. Ele não tinha más inclinações, ele não tinha [defeitos] nativos, [...] ele não tinha apetência para o mal. [...] No Paraíso havia tudo, exceto um herói!”.3
Em meio ao esplendor, surge a tentação
Nessa situação de felicidade — narra o Gênesis —, aproxima-se o demônio para tentá-los através da serpente, “o mais astuto de todos os animais dos campos que o Senhor Deus tinha feito” (3, la). Ladino, ele inicia um diálogo com Eva e lhe indaga: “E verdade que Deus vos disse: ‘Não comereis de nenhuma das árvores do jardim?” (Gn 3, lb). Deturpação característica do pai da mentira, pois Deus não havia dito isto a Adão, apenas proibira de comer do fruto da árvore da ciência do bem e do mal, acrescentando uma advertência: “no dia em que dele comeres, morrerás indubitavelmente” (Gn 2, 17). Uma vez estabelecida a conversa, o demônio já havia alcançado metade de seu intento. Só faltava levá-los à queda.

Adão e Eva sucumbiram à tentação, mas o Evangelho deste domingo nos ensina a opor resistência ao inimigo infernal, seguindo as pegadas de Nosso Senhor. Por ter assumido a natureza humana, Jesus adquiriu o direito de nos conferir seus méritos e força para enfrentar o demônio, tornando-nos também triunfantes à medida que nos unimos a Ele. E neste episódio nos dá uma lição de como combater.
Continua no próximo post.

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Evangelho VIII Domingo do Tempo Comum - Ano A - 2014 - Mt 6, 24-34

Conclusão dos comentários ao Evangelho VIII Domingo do Tempo Comum - Ano A - 2014
A nossa impotência diante das leis da natureza
“Qual de vós, por mais que se afadigue, pode acrescentar um só côvado à duração de sua vida?”.
A cada novo argumento, torna-se incontestável nossa impotência diante das leis da natureza e, por outro lado, a onipotência divina no governo do mundo. Por isso nos diz São João Crisóstomo: “Deus é quem faz crescer vosso corpo, cada dia, sem que possais dar-vos conta disso. Se, pois, todos os dias a Providência de Deus trabalha em vós para o crescimento de vosso corpo, como ficará Ela inativa diante de verdadeiras necessidades? Mas, se todos os esforços de vosso pensamento não podem acrescentar a menor parcela a vosso corpo, como podereis vós salvá-lo todo inteiro?” 11.
O afeto de Deus visa também a nossa elegância e pulcritude
“E por que vos inquietais com o vestido? Considerai como crescem os lírios do campo — e não trabalham nem fiam! Eu digo-vos, todavia, que nem Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como um deles. Se, pois, Deus veste assim a uma erva do campo, que hoje existe e amanhã é lançada no forno, quanto mais a vós, homens de pouca Fé?”.
Jesus deixa claro serem esses lírios, os “do campo”, ou seja, os que nascem a esmo, sem os cuidados dos homens. Na mesma linha do que anteriormente dissera sobre as aves, ou seja, as “do céu”, e não as domésticas. Chama-nos a atenção, de modo especial, o carinho empregado pelas mães ao providenciarem as roupas para suas crianças, pois procuram sempre vesti-las com beleza. Esse é o afeto de Deus ao cuidar de cada uma de Suas criaturas humanas: visa Ele não só nossa alimentação — como o faz com as “aves do céu” — mas também nossa elegância e pulcritude. Esse esmero de Deus será ainda muito maior nos albores da ressurreição dos corpos: “Pelos lírios, podem-se entender as celestes claridades dos Anjos, que o próprio Deus reveste de uma glória deslumbrante. Eles não trabalham nem fiam, porque a graça que, desde sua origem, assegurou a felicidade dos Anjos, difunde-se sobre todos os momentos de sua existência; e como, após a ressurreição, os homens serão semelhantes aos Anjos, Nosso Senhor, fazendo brilhar aos nossos olhos o esplendor das virtudes celestes, quis nos fazer esperar essa vestimenta de glória eterna” 12.
O exemplo de Salomão, preocupado por vestir-se à altura da sabedoria que lhe havia sido gratuitamente concedida por Deus, é de uma extraordinária eloquência para todos os tempos. Pois, quem com mais arte saberia realizar essa tarefa? São João Crisóstomo sintetiza bem a diferença entre as vestes de Salomão e as criadas por Deus: “das vestiduras de Salomão à flor do campo há a distância da mentira à verdade” 13.
 Consequentemente, duvidar ou, pior ainda, não crer na Providência Divina é suficiente para sermos classificados como “homens de pouca Fé”, pois, se esses são os cuidados de Deus para com ervas a serem queimadas quando murcharem, quanto maiores não serão eles com as almas imortais e os corpos ressurrectos!
Não vos aflijais: Deus vos ama e de vós cuida como Pai
“Não vos aflijais, pois, dizendo: Que comeremos? Que beberemos? Com que nos vestiremos?”.
Vê-se, neste versículo, o empenho do Divino Mestre em nos convencer das verdades anteriormente expostas. “O Senhor repete esta recomendação para nos fazer compreender sua necessidade e gravá-la mais profundamente em nossos corações” 14.
“Os gentios é que procuram com excessivo cuidado todas estas coisas. Vosso Pai sabe que tendes necessidade delas”.
O sentimento familiar nos tempos do Evangelho era mais sólido e profundo do que nos dias da atual decadência, na qual vai desmoronando essa pilastra de uma sociedade bem constituída. Todos tinham um conceito claro e indiscutível a respeito da paternalidade. Em outro momento, Jesus lhes dirá: “Se vós, pois, que sois maus, sabeis dar boas coisas a vossos filhos, quanto mais vosso Pai celeste dará boas coisas aos que Lhe pedirem” (Mt 7, 11; cf. Lc 11, 13).
Ademais, os judeus tinham como um dos mais elevados pontos de honra o de serem contrapostos às concepções dos gentios. Ao atribuir à mentalidade dos pagãos a excessiva preocupação pelos bens deste mundo, Jesus tornava ainda mais patente Sua enérgica e categórica rejeição à mesma. Ouçamos o famoso Cornélio a Lápide comentar esta passagem: “Não vivais ansiosos sobre o que vestireis, pois Deus o sabe perfeitamente; mais ainda, o vê e intui, porque é Deus; logo, Ele proverá, porque vos ama e cuida de vós como Pai, e pode fazê-lo porque é celestial e, portanto, onipotente. Por que, pois, não Lhe entregais todas as vossas preocupações? Ele sabe, quer e pode socorrer-vos em vossas necessidades; sabe porque é Deus, quer porque é Pai, e pode porque é Rei celestial e impera com pleno direito no Céu e na Terra. Por isso São Francisco não dava aos seus outra provisão a não ser este dito dos Salmos: ‘Deposita no Senhor teus cuidados e Ele te alimentará’” (Sl 54, 23) 15.
 Busquemos, em primeiro lugar, a nossa Santificação
“Buscai, pois, em primeiro lugar, o Reino de Deus e a Sua justiça, e todas estas coisas vos serão dadas por acréscimo”.
A síntese de toda a doutrina do Evangelho se encontra nas palavras deste versículo; trata-se de, em primeiro lugar, buscar o Reino de Deus, como também a própria justiça desse mesmo Reino, tal como Jesus o pregou, ou seja, o oposto do almejado pelos fariseus.
O Reino de Deus pode ser considerado debaixo de três diferentes prismas: o da glória dos bem-aventurados, ou seja, o triunfante; o da Santa Igreja, que se evidencia no visível e externo Reino de Nosso Senhor Jesus Cristo; e, por fim, o da graça santificante em nossas almas ou interno.
Assim, devemos buscar a realização da santidade de Deus em nós, por meio do ódio ao pecado, numa aspiração crescente de Lhe obedecer na prática de todos os Mandamentos, com base num abrasado amor a Ele. Conduzindo, por um dinâmico zelo apostólico, a todos com quem tenhamos alguma relação, às vias dessa santidade, para maior brilho da Santa Igreja e salvação das almas. E, por fim, almejando o Reino eterno na glória.
Já em nosso despertar matutino — quer sejamos pobres, quer ricos — devemos ter a lembrança deste conselho de Nosso Senhor Jesus Cristo: “Buscai, pois, em primeiro lugar, o Reino de Deus e a Sua justiça...” Mas, infelizmente, os pobres em sua grande maioria não o fazem e, por isso, são objeto do egoísmo dos outros, vivendo em pobreza neste mundo e ameaçados a nela se lançarem eternamente. E os ricos menos ainda são inclinados a seguir a voz de Cristo, por imaginarem já possuir “todas estas coisas”...
“Não vos preocupeis, pois, com o dia de amanhã; o dia de amanhã terá as suas preocupações próprias. A cada dia basta o seu mal”.
Preocupemo-nos primordialmente em santificar-nos a fim de obtermos o Reino de Deus. Pratiquemos as virtudes e enriqueçamo-nos dos bens do Céu na plena confiança de que, assim, não nos faltarão os da terra. Evitemos a ruína do relativismo moral de nossos dias e cumpramos nossos deveres do dia-a-dia sem as aflições do amanhã.
Não nos é vedado fazer uso de uma sábia e moderada prudência no que tange à nossa manutenção. É-nos proibido, isto sim, uma destrutiva inquietação com o nosso futuro material que nos leve a esquecer as obrigações de maior atualidade e importância, com relação ao Reino de Deus. “A cada dia basta o seu mal”, pois jamais devemos nos esquecer da infinita bondade e carinho do Senhor, conforme transparece na primeira leitura de hoje: “Sião dizia: ‘O Senhor abandonou-me, o Senhor esqueceume’. Pode uma mulher esquecer-se daquele que amamenta? Não ter ternura pelo fruto de suas entranhas? E mesmo que ela o esquecesse, Eu nunca te esqueceria” (Is 49, 14-15).
1 Os bens espirituais podem ser possuídos ao mesmo tempo por muitos, não, porém, os bens corporais (AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica III, q. 23, a.1, ad. 3; cf. tb. III, q.28, a.4, ad 2).
2 AQUINO, São Tomás de. Liber de perfectione spiritualis vitæ, c. 6.
3 Cf. TUYA, OP, Manuel de. Biblia Comentada. Madrid: BAC, 1964, v. II, p. 156.
4 MALDONADO, SJ, P. Juan de. Comentarios a los cuatro Evangelios. Madrid: BAC, 1950, v. I, p. 303.
5 MALDONADO. Op. cit. id., ibid.
6 O termo é usado no mesmo sentido em Mt 10, 36-37; Lc 14, 26 e Rm 9,  12-13
7 AGOSTINHO, Santo. Confissões. l. X, c. XX.
8 MALDONADO. Op. Cit. pp. 304-305.
9 MALDONADO. Op. cit. id. ibid.
10 In Lc 12, 24.
11 Apud AQUINO. Catena Aurea.
12 Santo Hilário, apud: AQUINO. Catena Aurea.
13 Apud: TUYA. Op. Cit. p. 158.
14 São Remígio, apud AQUINO. Catena Aurea.

15 In Mt 6, 31.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Comentário ao Evangelho VIII Domingo do Tempo Comum - Ano A - 2014 - Mt 6, 24-34

Continuação dos comentários ao Evangelho VIII Domingo do Tempo Comum - Ano A - 2014
Saibamos hierarquizar as nossas preocupações
“Portanto vos digo: Não vos preocupeis, nem com a vossa vida, acerca do que haveis de comer, nem com o vosso corpo, acerca do que haveis de vestir. Porventura não vale mais a vida que o alimento, e o corpo mais que o vestuário? Olhai para as aves do céu que não semeiam, nem ceifam, nem fazem provisões nos celeiros, e, contudo, vosso Pai celeste as sustenta. Porventura não valeis vós muito mais do que elas?”.
A natureza puramente animal, assim como a vegetal, com seus instintos respectivos, normais e ordenados, e não possuindo uma alma imortal, não buscam a felicidade infinita. Ademais, as aves não armazenam alimentos em celeiros e os lírios não tecem nem fiam, pois lhes falta a racionalidade para terem essas preocupações.
Ora, o homem — mais do que as plantas buscam o sol, e os animais o alimento —, possui uma alma que, num verdadeiro “teotropismo”, vive à procura do infinito. “Buscar-Vos, ó meu Deus” — clama Santo Agostinho — “é buscar minha felicidade e bem-aventurança: devo buscar-Vos para que minha alma viva, porque sois Vós a vida de minha alma, assim como ela é que dá vida a meu corpo” 7.
O coração do homem só está em paz quando encontra Deus. Essa “felicidade e bem-aventurança” não estão no afã das riquezas, pois, ao desejá-las fora do amor a Deus, pobres ou ricos entregar-se-ão às ânsias voluptuosas de querer sempre mais.
Deve-se procurar os bens materiais, mas sem inquietação
Evidentemente, não exclui o Divino Mestre nossa obrigação em relação ao trabalho. Sobre este particular há numerosos comentários de santos doutores, demonstrando ser o trabalho um excelente meio de santificação. Jesus tem diante de Si todos aqueles que colocam como último limite de seus horizontes os bens materiais, e na obtenção destes aplicam sofregamente toda a sua preocupação. Essa atitude carrega consigo uma boa parcela de culpabilidade, além de ser autodestrutiva. Antes de tudo, por ofender de certa forma a Deus, ao manifestar-Lhe desconfiança de Sua bondade. E ademais, perde o apoio divino ao colocar toda a sua segurança em esforços e planejamentos pessoais. Em síntese, torna-se patente o quanto o homem não pode descuidar dos bens eternos, pelo fato de ir atrás do indispensável à vida.
Deve-se buscar os bens materiais, mas sem inquietação, pois esta implicaria em negar a infinita generosidade de Deus.
Uma fundamental lição sobre como devemos hierarquizar nossas preocupações
Por essa razão, comenta Maldonado: “Quem, a não ser Deus, nos deu a alma e o corpo? Assim, quer Pedro que ponhamos nEle nossa solicitude, certos de que Ele cuidará de nós” (cf. 1 Pd 5, 7)” 8. Claro está que Deus não poderia nos dar o corpo e a vida com o intuito de nos lançar na fome e na miséria. Sua infinita e sábia providência impõe que Ele nos proporcione as condições para sustentar nossa natureza física como também — e principalmente — nossa vida sobrenatural. Assim, Deus que, às vezes, permite nos advenham cruzes e sofrimentos ao longo de nossa existência, derrama graças e forças para tudo suportarmos com vantagem para nós.
O Divino Mestre nos dá uma fundamental lição sobre a devida hierarquização de nossas preocupações. Sendo o homem composto de corpo e alma, e por ser esta mais valiosa, merece maior atenção e cuidado. Portanto, se necessário for desprezar ou abandonar outros interesses em benefício da salvação da própria alma, assim se deve proceder, pois Deus nos dará o secundário.
Insere-se nestes versículos a vocação apostólica e missionária, como por exemplo a de um Beato Anchieta, que abandona familiares, pátria e bens, e ruma para terras desconhecidas com o objetivo de converter e santificar incontáveis indígenas, no Brasil. Os que abraçam essa via recebem o cêntuplo nesta terra e o prêmio da vida eterna (cf. Mt 19, 29).
Se nosso Pai cuida de criaturas inferiores, quanto mais não cuidará de nós?
Quando conseguimos um hiato de calma dentro da febricitada correria dos dias atuais para observar a natureza viva — desde a tenacidade das formigas em busca de alimento, até a agilidade de um colibri, sugando com elegância o conteúdo quase místico de uma flor — num ato contínuo louvamos a Deus, por constatar essa maravilhosa disposição da Divina Providência de oferecer a insetos e animais o necessário para o seu sustento. “Todos esses seres esperam de Vós que lhes deis de comer em seu tempo. Vós lhes dais e eles o recolhem; abris a mão, e se fartam de bens” (Sl 103, 27-28).
Ora, o homem é, não só, superior a todas as criaturas terrenas, mas até mesmo seu rei (cf. Gen 1, 28). Sendo assim, é preciso que esse rei supere o exemplo desses súditos seus que com tanta abnegação praticam a pobreza evangélica: as aves do céu. Despojadas de tudo, dependem exclusivamente da benevolência divina. Ademais, como bem comenta Maldonado: “As aves andam no mais alto do ar, estão mais distantes de sua comida e, no entanto, Deus as alimenta”. Jesus usou o exemplo das aves “porque os animais terrestres gastam mais tempo em procurar o alimento e escondê-lo com sua habilidade” 9.
É, de certa forma, curioso referir-se o Divino Mestre às aves “do céu” e não às domésticas, pois estas são alimentadas pelos homens e as outras pelo “vosso Pai celeste”. Ou seja, se nosso Pai cuida de criaturas tão inferiores que não têm nenhum grau de filiação em relação a Ele, quanto mais não cuidará de nós, irmãos de Seu “Filho muito amado” (Mt 3, 17)!
São Lucas nos diz: “Considerai os corvos: não semeiam, nem ceifam, não têm despensa, nem celeiro, e, contudo, Deus os sustenta. Quanto mais valeis vós do que eles?” (Lc 12, 24).

Sobre essa passagem, comenta Santo Ambrósio: “Os corvos, que não trabalham, têm o necessário para seu uso, e o têm em abundância, porque não sabem reduzir a seu domínio particular os frutos que foram dados em comum para todo mundo comer. Nós, porém, perdemos o comum porque nos esforçamos em apropriá-lo; e o perdemos porque não conseguimos fazê-lo nosso, já que não durará perpetuamente, nem conseguimos ter uma abundância certa onde o futuro é sempre incerto. Por que, pois, crês que tuas riquezas são tuas, sendo que Deus quis que tua comida fosse comum com todos os outros que vivem?” 10.
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terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Comentário ao Evangelho VIII Domingo do Tempo Comum - Ano A - 2014 - Mt 6, 24-34

Continuação dos comentários ao Evangelho VIII Domingo do Tempo Comum - Ano A - 2014
Um servo não pode entregar sua vontade a dois senhores
Havendo um apreço desequilibrado pelos bens deste mundo, quem o possua terá conferido a esses bens o caráter de senhorio. Ora, sabemos o quanto a escravidão, em si mesma, é avassaladora. As faculdades do escravo pertencem ao senhor e a este deve ele entregar todo o seu serviço. “Um senhor pode ter muitos servos, mas um servo não pode ter muitos senhores; pois o próprio do senhor é governar o servo, e não precisamente amá-lo; o específico do servo, porém, é amar, e não governar seu senhor; o mando pode dividir-se, mas o amor, não. Com isso, Cristo indica que as riquezas se gastam injustamente não só quando são injustas. Mas, até mesmo, quando não foram adquiridas por maus meios, se são amadas, apartam o homem do amor de Deus. Ninguém pode servir a dois senhores, como disse antes: ‘É impossível que um rico entre no Reino dos Céus’ (Mt 19, 23). Observa o autor da Obra Imperfeita que ninguém pode servir a dois senhores, e não diz que ninguém pode ter dois senhores. Dá o nome de senhor a qualquer coisa a que nos tenhamos entregado em demasia, à qual servimos de alguma maneira: ‘Não sabeis que, quando vos ofereceis a alguém para lhe obedecer, sois escravos daquele a quem obedeceis, quer seja do pecado para a morte, quer da obediência para a justiça?’ (Rm 6, 16). E São Pedro: ‘O homem é feito escravo daquele que o venceu’ (2 Pd 2, 19). 5
O verbo “servir” empregado neste versículo refere-se à situação de um servo que, sem restrição alguma, entrega sua vontade a um senhor, figura muito de acordo com a inclinação para os extremos, tão característica dos orientais. Neste caso, torna-se impossível ao servo obedecer a um segundo senhor que lhe dê qualquer incumbência oposta e simultânea à exigida pelo primeiro. Ademais, acabará por amar menos seu autêntico senhor, atitude à qual equivale o significado do termo “odiar” na língua hebraica 6. Na realidade, Deus não quer apenas uma parte de nosso coração, ainda que esta seja grande. Ele o deseja na sua íntegra, e essa entrega deve ser realizada por nós com alegria, generosidade e constância.
Dois senhores rivais: Deus e o dinheiro
Resumindo, o Divino Mestre nos coloca diante de dois senhores diametralmente opostos no que concerne aos seus respectivos interesses: Deus e o dinheiro. O primeiro nos exige a crença nEle e em Suas revelações, a esperança em Suas promessas, com amor total, além da prática da castidade, da humildade, como também do cortejo de todas as virtudes. O dinheiro cobra de nós, e nos inspira ambição, volúpia de prazeres, vaidade, orgulho, menosprezo do próximo, etc. Um nos dá forças para praticar o bem e a este inclina nossas paixões, enquanto o outro nos arrasta para o mal e nele nos vicia. O Céu e sua eterna felicidade constituem o estímulo para os esforços exigidos por um dos senhores. A terra e seus prazeres fugazes são os atrativos oferecidos pelo outro.
Esses dois senhores não admitem rivais. O pior rival do dinheiro é Deus, e vice-versa. Por isso, a desgraça do rico que entrega seu coração aos bens da terra consiste em buscar em vão sua felicidade neles; e a desgraça do pobre, em iludir-se com a pseudofelicidade oferecida pelas riquezas.

É preciso ter sempre diante dos olhos o quanto são opostos entre si, Deus e o mundo. Por isso, não queiramos servir a ambos ao mesmo tempo: “Não vos sujeiteis ao mesmo jugo com os infiéis. Que união pode haver entre a justiça e a iniquidade? Ou que sociedade entre a luz e as trevas? E que concórdia entre Cristo e Belial? Ou que de comum entre o fiel e o infiel? E que relação entre o templo de Deus e os ídolos? Porque vós sois templos de Deus vivo” (2 Cor 6, 14-16).
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segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Comentário ao Evangelho VIII Domingo do Tempo Comum

Comentário ao Evangelho VIII Domingo do Tempo Comum - Ano A - 2014
Evangelho ( Mt 6, 24-34)
“Ninguém pode servir a dois senhores: Porque, ou há de odiar um e amar o outro, ou há de afeiçoar-se a um e desprezar o outro. Não podeis servir a Deus e às riquezas.
Portanto vos digo: Não vos preocupeis, nem com a vossa vida, acerca do que haveis de comer, nem com o vosso corpo, acerca do que haveis de vestir. Porventura não vale mais a vida que o alimento, e o corpo mais que o vestuário? Olhai para as aves do céu que não semeiam, nem ceifam, nem fazem provisões nos celeiros, e, contudo, vosso Pai celeste as sustenta. Porventura não valeis vós muito mais do que elas? Qual de vós, por mais que se afadigue, pode acrescentar um só côvado à duração de sua vida?
E por que vos inquietais com o vestido? Considerai como crescem os lírios do campo — e não trabalham nem fiam! Eu digo-vos, todavia, que nem Salomão, em toda sua glória, se vestiu como um deles. Se, pois, Deus veste assim a uma erva do campo, que hoje existe e amanhã é lançada no forno, quanto mais a vós, homens de pouca Fé? Não vos aflijais, pois, dizendo: Que comeremos? Que beberemos? Com que nos vestiremos? Os gentios é que procuram com excessivo cuidado todas estas coisas. Vosso Pai sabe que tendes necessidade delas. Buscai, pois, em primeiro lugar, o Reino de Deus e a Sua justiça, e todas estas coisas vos serão dadas por acréscimo. Não vos preocupeis, pois, com o dia de amanhã; o dia de amanhã terá as suas preocupações próprias. A cada dia basta o seu mal” (Mt 6, 24-34).
Pobres sempre tereis entre vós” (Jo 12, 8), respondeu Jesus a Judas que, perplexo diante de um grande gasto de Maria Madalena, para ungir os adoráveis pés do Salvador, perguntara: “Por que não se vendeu esse bálsamo por trezentos denários e não se deu o dinheiro aos pobres?” (Jo 12, 5).
Essa é a grande ansiedade que pervade as almas de povos e nações dos últimos tempos, ou seja, a frenética busca dos bens materiais. Ora, segundo os Doutores, tanto mais se dividem os homens, quanto mais se apegam a esses bens. Pelo contrário, tanto mais união, benquerença e paz há entre eles, quanto mais se entregam aos bens espirituais. São Tomás de Aquino se serve várias vezes desse elevado pensamento de Santo Agostinho: “Bona spiritualia possunt simul a pluribus (integraliter) possideri, non autem bona corporalia” 1.
Assim, quanto maior for o número dos que possuem os mesmos bens do espírito, tanto melhor será. Ademais, obtém-se grande progresso no conhecimento da verdade, na medida em que se procure ensiná-la e se deseje aprendê-la nos outros.
Eis a liturgia de hoje a nos indicar uma profunda solução para as crises atuais: a da desgastada questão social e a da ameaçada economia mundial.
 Introdução
Quem nasceu numa gruta, teve uma manjedoura por berço e em sua vida pública não encontrou onde repousar a cabeça, tem absoluta autoridade para discorrer sobre o desprendimento. A experiência humana, ao longo dos milênios, comprova que não devemos amar as criaturas por elas mesmas. Se for conveniente ou até necessário amá-las, é em função do amor a Deus que devemos fazê-lo.
“É claro que o coração humano tanto mais intensamente se entrega a uma coisa quanto mais se aparta de muitas outras” 2. Seguindo essa via, alguns santos alcançaram um alto grau de virtude, sobretudo ao abraçarem o exagero. São Francisco de Assis chega a fazer um conúbio místico com a pobreza, e Santo Inácio de Loyola, ao partir para Jerusalém, depois de sua contemplação em Manresa, deixa na praia de Barcelona tudo quanto lhe haviam dado; leva consigo três companheiras: a Fé, a Esperança e a Caridade.
A outros, porém, São Paulo recomenda serem previdentes: “Se alguém não quer trabalhar, também não coma” (2 Te 3, 10). Até onde deve ir a preocupação com nossa subsistência e qual a atitude de alma, equilibrada e santa, face aos bens deste mundo, como, também, a plena confiança em Deus, são os temas tratados pela Liturgia deste VIII Domingo do Tempo Comum.
Dois Senhores que não admitem rivais
“Ninguém pode servir a dois senhores: Porque, ou há de odiar um e amar o outro, ou há de afeiçoar-se a um e desprezar o outro. Não podeis servir a Deus e às riquezas”.
O presente Evangelho faz parte do famoso Sermão da Montanha, do qual São Mateus transcreve as partes essenciais. Nele transparece a forte advertência do Divino Mestre contra o desvario dos que se afanam pelos tesouros deste mundo e acabam por se perder em meio às aflitivas preocupações da vida presente.
O apego às riquezas constitui uma real escravidão
Neste versículo, é muito sutil e preciso o emprego do verbo servir, e não qualquer outro, pois o problema central não está em ter bens materiais, mas sim no valor que a eles se tributa e, sobretudo, no afeto que se lhes tenha. Em sua substância, encontramos aqui um desdobramento do Decálogo, em particular do Primeiro Mandamento, tal como o próprio Deus o declarou através de Seus profetas: “Não terás outros deuses diante de Mim. Não farás para ti imagem alguma, nem escultura [...]. Não adorarás tais coisas, nem as servirás; Eu sou o Senhor, o teu Deus” (Ex 20, 3-5) 3.

O apego às riquezas constitui, a partir de certo grau, uma real escravidão e “ninguém pode servir a dois senhores quando mandam coisas contrárias, nem mesmo quando ordenam coisas diferentes, porque a própria natureza impede que o amor do servo se reparta para dois senhores diversos” 4.