Continuação dos comentários ao Evangelho XXX Domingo do Tempo Comum – Ano A – Mt 22,34-40
Aquele que ama o Pai, ama o Filho
O grande Bispo de
Hipona confere tanta importância a que à fé se una o amor, que não se intimida
em continuar com seus comentários a esse respeito, levando suas afirmações a
ponto de talvez chocar certas mentalidades mais relativistas dos dias de hoje:
“E todo aquele que
ama quem gera, ama o que por ele é gerado (I Jo 5, 1). Juntou em seguida o amor
com a fé, pois a fé sem amor é vã. Com amor, é a fé do cristão; sem amor, a fé
do demônio. Ora, os que não crêem são piores do que os demônios, mais
empedernidos que os próprios demônios. Há por aí alguém que não quer crer em
Cristo: esse tal não imita nem sequer os demônios. Há outros, porém que não
crêem em Cristo, mas O odeiam... São como os demônios, que temiam ser
castigados e diziam: ‘Que tens Tu conosco, Jesus de Nazaré? Vieste perder-nos
antes do tempo?’ (Mc 1, 24). Acrescenta a essa fé o amor, a fim de que se
converta naquela fé da qual fala o Apóstolo: ‘A fé que opera pelo amor’ (Gl 5,
6).
“Se encontraste essa
fé, encontraste um cristão, encontraste um cidadão de Jerusalém, encontraste um
peregrino que suspira pelo caminho. Une-te a ele, seja ele teu companheiro,
corre junto com ele, caso também tu sejas isso. Todo aquele que ama quem gerou,
ama o que por Ele foi gerado. Quem gerou? O Pai. Quem foi gerado? O Filho.
Portanto, o que diz João? Todo aquele que ama o Pai, ama o Filho”.3
No amor encontramos a tão procurada felicidade
Tão vastas são as
considerações sobre a virtude do amor, que não haverá enciclopédia capaz de
abarcar os tesouros emanados da oratória e da pluma dos Santos, Padres,
Doutores, teólogos, exegetas, etc. a respeito da mesma.
É justamente em
função do amor que devemos contemplar a temática levantada pela Liturgia deste
XXX Domingo do Tempo Comum, em suas três leituras. Nessa virtude encontramos a
tão procurada felicidade, como nos ensina São Tomás de Aquino: “Sendo amor a Deus, faz-nos desprezar as
coisas terrenas e unir-nos a Ele. Por isso afasta de nós a dor e a tristeza, e
dá-nos a alegria do divino: ‘o fruto do Espírito Santo é caridade, alegria,
paz’ (Gl 5, 22)”.4 E com razão, pois Ele é o dulcis Hospes animæ, o Amigo
por excelência que habita nas almas em estado de Graça.
II – O amor é a plenitude da lei
Tramas dos fariseus contra Jesus
“Mas os fariseus, tendo sabido que Jesus reduzira ao
silêncio os saduceus, reuniram-se, e um deles, doutor da Lei, tentando-O,
perguntou-Lhe: ‘Mestre, qual é o grande Mandamento da Lei?’”.
O Evangelho de hoje
se insere num encadeamento de fatos que se inicia com a pregação de Jesus por
meio da parábola dos vinhateiros homicidas (Mt 21, 33-45) que levou os
adversários de Cristo — na sua totalidade, segundo São Marcos (12, 13), ou
somente os fariseus, de acordo com São Mateus — a se exacerbarem em cólera,
pois interpretaram-na como dirigida a eles (Mt 21, 45) e, por essa razão,
reuniram-se em conselho (Mt 22, 15). Nessa linha de acontecimentos, São Marcos
é muito explícito ao afirmar: “Procuravam prendê-Lo, mas temiam o povo [...] E
deixando-O, retiraram-se. Enviaram-Lhe alguns fariseus e herodianos, para que O
apanhassem em alguma palavra” (Mc 12, 12-13).
Na realidade,
havia-se criado um verdadeiro impasse. De um lado, estava um grande número de
pessoas simples do povo, arrebatadas pelas palavras e milagres de Jesus que,
por isso, não O abandonavam; de outro, os chefes que desejavam silenciá-Lo em
vida, ou, causando-Lhe a morte. Impossível se tornava para estes executarem tal
crime enquanto Ele estivesse cercado pelas multidões. Também a noite não lhes
facilitava a tarefa, pois o Divino Mestre abraçava o isolamento sem que ninguém
soubesse para onde se retirava. Tornava-se, portanto, indispensável para os
“filhos de Belial” manobrar a opinião pública a fim de separar os entusiastas
d'Aquele que julgavam ser João Batista ressuscitado, ou talvez Elias, ou um
grande Profeta.
A pergunta do doutor da Lei
Pertence a essa
seqüência de investidas a famosa resposta de Jesus: “Dai a César o que é de
César e a Deus o que é de Deus” (Mt 22, 21), como também a explicação
sapiencial com a qual fizera calarem-se os saduceus (cf. Mt 22, 2932),
confundindo-os pela grosseira questão relacionada com a ressurreição dos
mortos. É na esteira dessa polêmica que se acrescenta a pergunta do tal doutor
da Lei. Não é inteiramente claro se esse homem propõe essa questão ao Mestre
por autêntica curiosidade ou por desejo de aparecer como sábio, ou até mesmo
por fazer parte do complô contra Ele. Os três sinópticos relatam o episódio em
sua integridade. São Mateus opta pela hipótese de ser ele cúmplice e malicioso.
São Marcos o vê como um homem sincero, pelo fato de Nosso Senhor ter afirmado
não estar ele longe do Reino do Céu (cf. Mc 12, 34). Não seria descabida,
entretanto, a suposição de somarem-se todas essas interpretações, pois era
possível tratar-se de um fariseu de boa fé, trabalhado pela maldade dos outros
fariseus, a fim de lançálo sobre o Messias, para colocá-Lo em situação difícil.
Sobre o personagem em
foco, o famoso Maldonado assim se exprime:
“Diz-nos Lucas que, quando Cristo acabou de refutar os
saduceus, um escriba exclamou: ‘Mestre, falaste bem’. Acrescenta o Evangelista:
‘E já não se atreviam a fazer-Lhe pergunta alguma’ (Lc 20, 39-40); isso deve
ser entendido com relação aos saduceus, pois precisamente por essa resposta,
como indica Mateus, os escribas e fariseus tomaram ocasião de tentá-Lo outra
vez, para mostrarem-se mais sábios que os saduceus. Aquele que aqui Mateus
chama de ‘doutor da Lei’, Marcos diz que era ‘escriba’ (cf. Mc 12, 28); por
onde se vê que, embora os escribas tivessem diversos ofícios, em algumas
ocasiões podia-se ser escriba e fariseu ao mesmo tempo. Pois esse doutor da Lei
era fariseu, segundo se vê pelo versículo 34”.5
Já o Arcebispo de
Toledo, Cardeal Isidro Gomá y Tomás, assim avaliou esta passagem: “Os fariseus se mancomunaram quando ouviram
dizer que Ele havia reduzido ao silêncio os saduceus, fechando-lhes o caminho a
qualquer réplica, não sem uma íntima satisfação de sua parte, pois tinham os
saduceus como seus mais formidáveis adversários doutrinários. A inveja e a
malevolência são mães da audácia despudorada; a derrota dos adversários deveria
tê-los tornado mais cautos. E um deles — doutor da Lei, do partido dos
fariseus, que tinha ouvido o debate e visto como Nosso Senhor respondera bem —
foi escolhido para propor a Jesus a questão tramada por eles naquele conventículo.
Aproximou-se e Lhe fez a pergunta, tentando-O, com má intenção, embora a
resposta de Jesus o tenha impressionado, elogiando Jesus e, por sua vez,
chegando a merecer o elogio do Senhor”.6
Lei humana e Lei divina
Conforme nos ensina o
Doutor Angélico, sabemos ser a lei, “uma ordenação da razão para o bem comum,
promulgada por aquele que tem o cuidado da comunidade”.7 Evidentemente, esta é
uma definição que tem em vista a natureza humana no seu relacionamento social.
Entretanto — continua o próprio São Tomás — “além da lei natural e da lei
humana, foi necessário, para direção da vida humana, ter a Lei divina”.8 E
entre quatro claríssimos argumentos a favor de sua tese, o Doutor Angélico
demonstra essa necessidade em função de um fim ao qual se ordena o homem, que é
superior à faculdade humana, ou seja, sua bem-aventurança eterna.
Afirma ainda: “Porque, em razão da incerteza do juízo
humano, principalmente sobre as coisas contingentes e particulares, aconteceu
haver a respeito dos diversos atos humanos juízos diversos, dos quais também
procedem leis diversas e contrárias. Para que o homem, pois, sem qualquer
dúvida possa conhecer o que lhe cabe agir e o que evitar, foi necessário que,
nos atos próprios, ele fosse dirigido por lei divinamente dada, a respeito da
qual consta que não pode errar”.9
Porém, não devemos
nos esquecer que o Céu nos torna iluminado o caminho a seguir, mas o auxílio
para abraçá-lo nos vem da Graça: “O
princípio que move exteriormente ao bem é Deus, que nos instrui pela Lei e
ajuda pela Graça”.10 Hoje, pela força do Espírito Santo, temos muito
explícita essa doutrina, mas assim não se apresentava para os doutores da Lei e
nem mesmo para os fariseus. Os rabinos viviam emaranhados em complicadas
casuísticas de 613 preceitos. Destes, 365 (à imagem dos dias do ano) eram
negativos, e 248 (à semelhança numérica dos ossos do corpo humano) eram
positivos. Dos primeiros, alguns eram tão graves que só podiam ser reparados
com a pena capital, e os outros, por uma penitência proporcionada. A miríade de
outras obrigações menores proporcionava-lhes discussões intermináveis em suas
escolas. Por essas razões, não era fácil formular com toda segurança uma
resposta categórica e clara a essas questões, sobretudo se fosse para não
colidir com opiniões subjetivas destes ou daqueles rabinos.
Continua no próximo post.