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sábado, 3 de março de 2012

Transfiguração Mt 17, 1-9

[...] “muito amado em Quem pus toda a minha complacência” [...]

Quando amamos algo, buscamos uma bondade que preexiste nesse algo, enquanto reflexo do próprio Deus. Nosso amor não é eficiente a ponto de produzir a bondade nos objetos por nós amados. Pelo contrário, o amor de Deus, segundo São Tomás de Aquino, é tão rico que introduz a bondade nos seres por Ele amados. Ele é a Bondade por essência e a difundiu por todas as Suas criaturas. Porém, aqui afirma o Pai ter colocado “toda” a Sua complacência em seu Unigênito, tal qual no-lo declara São João: “O Pai ama o Filho, e pôs todas as coisas na sua mão” (Jo 3, 35). Portanto, ao colocar nEle todo o Seu amor, pôs nEle, toda a Sua bondade.

[...] “ouvi-O”

Ali estava o próprio Moisés, que outrora dissera ao povo eleito: “O Senhor teu Deus te suscitará um Profeta, como eu, de tua nação, e dentre teus irmãos; ouvi-lo-ás” (Dt 18,15). A ele, mais tarde, se associaria a voz de um outro mestre: Elias.

Os mestres do Antigo Testamento eram autênticos enquanto procuravam anunciar o Messias vindouro ou Sua doutrina. O mesmo se deve afirmar a respeito de todos os que vieram depois de Cristo: serão eles verdadeiros mestres na medida em que aprenderem e transmitirem a doutrina do Divino Mestre, tal qual Ele mesmo afirmou: “Um só é o vosso Mestre” (Mt 23, 8). Ele não ensina como um professor comum que busca ilustrar seus alunos por meio de puros raciocínios, Ele se baseia em Seu conhecimento, por ser a Sabedoria infinita, e em Sua autoridade de Filho de Deus, e por isso exige nossa fé. Sua vida nos proporcionou, a cada passo, motivos suficientes para n’Ele crermos. É um dever de nossa parte crer em Sua Palavra, imitar Seus exemplos, praticar sua lei, etc.; nisto consiste a obediência à ordem do Pai: “... ouvi-O”.

A fragilidade humana diante da glória de Deus

Ouvindo isto, os discípulos caíram de bruços, e tiveram grande medo.

A voz do Senhor toca a fundo o coração dos inocentes, tal qual se deu com Pedro na barca, ou com Tomé no Cenáculo: caem com a face por terra. Sobre os maus, seu efeito é bem o contrário: caem de costas, como sucedeu com os soldados que foram prender Jesus no Horto das Oliveiras.

São Jerônimo procura nos explicar as razões desta queda dos Apóstolos: “Por três motivos caíram aterrorizados: porque compreenderam seu erro, porque ficaram envolvidos pela nuvem luminosa e porque ouviram a voz de Deus que lhes falava. E não podendo a fragilidade humana suportar tamanha glória, ela se estremece com todo o seu corpo e toda a sua alma, e cai por terra: pois o homem que não conhece sua medida, quanto mais queira elevar-se até as coisas sublimes, mais desliza até as baixas”10.

Porém, Jesus aproximou-Se deles, tocou-os e disse-lhes: ‘Levantai-vos, não temais.’

Além da onipotência de Sua presença e de Sua voz, Jesus quis tocálos com Sua própria mão. Esse fato nos faz recordar aquela passagem de Daniel: “uma mão me tocou e fez-me levantar” (Dn 10, 10). Tornou-se, assim, evidente para eles o quanto essa força partia de Jesus e não da natureza deles.
Eles, então, levantando os olhos, não viram ninguém, exceto Jesus.
Desaparecem de seus olhos a Lei e os Profetas. Agora entendem experimentalmente o quanto Jesus é o Esperado das nações.

Após a contemplação é necessário dedicar-se à ação

Quando desciam do monte, Jesus fez-lhes a seguinte proibição: “Não digais a ninguém o que vistes, até que o Filho do Homem ressuscite dos mortos.”

Até mesmo no alto do Tabor, terminam as alegrias, como sempre ocorre nesta terra de exílio. É necessário descerem do monte todos aqueles que, ademais, são chamados à vida ativa. Depois de se enriquecerem com as graças de Deus por meio da contemplação, é preciso abraçar as penosas tarefas da pregação e da caridade. E não deviam dizer nada a ninguém, “porque se fosse divulgada ao povo a majestade do Senhor, este mesmo povo se oporia aos príncipes dos sacerdotes e impediria a Paixão, e assim se retardaria a Redenção do género humano” 11.

sexta-feira, 2 de março de 2012

Transfiguração Mt 17, 1-9

Papel das consolações na vida

Pedro, tomando a palavra, disse a Jesus: “Senhor, que bom é nós estarmos aqui; se queres, farei aqui três tendas, uma para Ti, uma para Moisés, e outra para Elias.”

Pedro será confirmado em graça somente em Pentecostes; até lá, sua loquacidade lhe confere o mérito da manifestação de fé na divindade de Jesus (cf. Mt 16, 16; Mc 8, 29; Lc 9, 20), ou o demérito da promessa temerária de jamais romper sua fidelidade (cf. Mt 26, 33-35; Mc 14, 29; Lc 22, 33; Jo 13, 37), ou da negação na casa do Sumo Sacerdote  (cf. Mt 26, 69-74; Mc 14, 66-72; Lc 22, 55-60; Jo 18, 25-27). No Tabor, penetrado de desmedida alegria, deseja perpetuar aquela felicidade. Pedro não estava ainda suficientemente instruído pelo Espírito Santo para saber o quanto a Terra não era o ambiente para o gozo permanente. Não tinha noção de quanto as consolações são auxílios passageiros concedidos por Deus para nos estimular em Seu serviço e a sofrer por Ele.

“Eu e o Pai somos um”

Estando ele ainda a falar, eis que uma nuvem resplandecente os envolveu; e saiu da nuvem uma voz que dizia: “Este é o Meu Filho muito amado em Quem pus toda a Minha complacência; ouvi-O”.

Nas Escrituras Sagradas, aparece algumas vezes esta ou aquela nuvem para simbolizar a presença de Deus e Sua teofania. Várias são as passagens do Êxodo em que elas são utilizadas como sinais sensíveis da manifestação divina: “a glória do Senhor apareceu no meio da nuvem” (Ex 16, 10); “e logo que Moisés entrava no tabernáculo da aliança, a coluna de nuvem descia [...] vendo todos que a coluna de nuvem se conservava parada à porta do tabernáculo” (Ex 33, 9-10); etc.


Não resta a menor dúvida de ser do Pai a voz que proclama: “Este é o meu Filho”. E de fato, analisando em profundidade, somente Cristo Jesus preenche todos os requisitos de Filho perfeito. Possui a mesma substância do Pai de maneira tão plenamente cabal que constitui uma só e mesma coisa com Este: “O Pai e eu somos a mesma coisa” (Jo 10, 30). É, portanto, igual ao Pai: “Filipe, quem me vê, vê também a meu Pai” (Jo 14, 9).

Em Suas duas naturezas, Ele é a Palavra que manifesta o Pai: é “o resplendor de sua glória e a figura de sua substância” (Hb 1, 3), enquanto Deus. Por outro lado, também o fez através de Sua humanidade: “Manifestei o Teu nome aos homens que Me deste do meio do Mundo” (Jo 17, 6); “glorifiquei-Te sobre a Terra; acabei a obra que Me deste a fazer” (Jo 17, 4). Além disso, foi de uma insuperável obediência: “Não se faça a Minha vontade, mas a Tua” (Lc 22, 42); “o meu alimento é fazer a vontade d’Aquele que Me enviou” (Jo 4, 34); “fez-Se obediente até a morte, e morte de cruz!” (Fl 2, 8). Sempre em inteira submissão, imitando-O em tudo: “O Filho não pode por Si mesmo fazer coisa alguma, mas somente o que vê fazer o Pai” (Jo 5, 19).

Se bem que sejamos verdadeiros filhos de Deus, como nos assegura o Salmista — “Eu disse: ‘Sois deuses, e todos filhos do Altíssimo’” (Sl 81, 6) —, nós o somos por misericordiosa adoção. O Filho de Deus por natureza é um só: “O Filho de Deus veio e nos deu entendimento e luz para conhecer ao verdadeiro Deus” (1 Jo 5, 20).

quinta-feira, 1 de março de 2012

Transfiguração (Mt 17, 1-9)

Seis dias depois, tomou Jesus consigo Pedro, Tiago e João, seu irmão, e levou-os à parte a um monte alto [...]

São Lucas fala em oito dias. Será mais fácil compreender quão aparente é essa discrepância se levarmos em conta que um evangelista considera o dia de saída e o de chegada, enquanto Mateus só se refere aos intermediários, como nos explica São Jerônimo7. O “depois” toma como referência a cena da confissão e primado de Pedro, na Cesaréia.

Dali partem rumo ao Monte Tabor que dista aproximadamente 80 km, situado nos confins da Galiléia e da Samaria. O Divino Mestre se comprazia com o alto das montanhas, e ali procurava prodigalizar Seus grandes mistérios.

Nesse caso concreto, escolheu o Tabor talvez para simbolizar a necessidade de elevarmos nossos corações sobre as coisas deste mundo e, em consequência, mais facilmente nos entregarmos à meditação das verdades eternas e delas tirarmos todo proveito, conforme as palavras de São Remígio: “Com isto o Senhor nos ensina que é necessário, para quem deseja contemplar a Deus, não se deixar atolar nos baixos prazeres, mas elevar a alma para as coisas celestiais, por meio do amor às realidades superiores. Ensina ainda a Seus discípulos que não devem procurar a glória de sua beatitude divina nas regiões inferiores do mundo, mas sim no reino da beatitude celestial. E são levados separadamente porque todos os santos estão apartados, com toda a sua alma e pela direcção da fé, de qualquer mancha, e serão radicalmente separados nos tempos vindouros; ou também porque muitos são os chamados e poucos os escolhidos” 8.

Os comentários se multiplicam a propósito da razão de ter Jesus escolhido esses três Apóstolos para gozarem do convívio glorioso do Senhor. Um motivo claro e imediato salta logo aos olhos: estes veriam mais de perto as humilhações pelas quais passaria o Salvador. Como também era fundamental haver algumas testemunhas da glória de Jesus para sustentarem, na prova da Paixão, os Apóstolos em suas tentações.

Apartar-se das criaturas é condição indispensável para entrar em contato com Deus e, mais ainda, para vê-Lo.

E transfigurou-Se diante deles. O Seu rosto ficou refulgente como o Sol, e as Suas vestes tornaram-se luminosas de brancas que estavam.

No que terá consistido essa transfiguração? Evidentemente, não viram os Apóstolos a divindade do Verbo de Deus, inacessível aos olhos corporais. Viam apenas uma fímbria dos fulgores da verdadeira glória da humanidade sagrada de Jesus. Provavelmente, nada mais do que o dom da claridade da qual gozam os corpos gloriosos.

Tenhamos presente o quanto o Salvador tinha preferência pela noite para rezar e por isso esse marcante acontecimento deve ter-se dado após o entardecer, em meio aos silêncios da natureza, pois também assim Ele Se manifesta a nósnquando fazemos calar, em nosso interior, o bulício das criaturas e buscamos as luzes do alto depois de termos apagado as de aqui debaixo.

“O seu rosto resplandecia como um Sol” (Ap 1, 16), ou seja, raios de luz partiam de Sua Sagrada Face e se espalhavam a boa distância. Sem deixar de ser a mesma fisionomia, nada mais possuído de conotações terrenas, tornou-se radiante de brilho e esplendor, com plena vitalidade e doçura. Bem podemos imaginar Sua grandeza ao vir julgar os vivos e os mortos no fim dos tempos, uma vez que Seu rosto será ainda muitíssimo mais brilhante nessa ocasião.


Continua...

quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

O bom porto da eternidade

“Sou demasiadamente grande, e meu destino por demais nobre, para que eu me torne escravo de meus sentidos” 12. Esta foi a conclusão à qual chegou Sêneca por mera elaboração filosófica, sem ter a menor revelação de algo análogo à Transfiguração do Senhor. No Tabor, Jesus Cristo vai muitíssimo além: em Sua divina didática, faz-nos conhecer uma parcela de Sua glória nos reflexos da claridade própria a Seu corpo após a Ressurreição. Pálida exemplificação do que veremos no Céu, como fruto dos méritos de Sua Paixão, dos fulgores de Sua visão beatífica e da união hipostática. Como objetivo imediato, quis Ele fortalecer seus discípulos para assumirem com heroísmo as tristes provações de Sua Paixão e Morte, à margem da manifestação de Sua divindade. Porém, não era alheio aos Seus divinos desígnios, deixar consignado para a História quais são as verdadeiras e reais alegrias reservadas aos justos post mortem.

Em contrapartida, o demônio, o mundo e o pecado nos prometem contentamentos com ares de absoluto. Entretanto, sua fruição é quase sempre fugaz e seguida de amargas frustrações; além do mais, ao término desta vida seremos lançados no fogo eterno como castigo, se não tiver havido de nossa parte um verdadeiro arrependimento, propósito de emenda e a obtenção do perdão de Deus.

No Tabor a voz do Pai proclama: “ouvi-O”. Esta recomendação se dirige sobretudo a nós, batizados, pois somos filhos adotivos de Deus e, portanto, já passamos por uma imensa transformação quando ascendemos à ordem sobrenatural, deixando de ser exclusivamente puras criaturas. Porém, quando penetrarmos na ordem da glória, outra transformação se dará, pois seremos como Ele o é agora. Para lá chegarmos, convida-nos Jesus a iniciarmos pelas agruras dos primeiros passos no caminho da virtude, sustentados logo depois por muita paz de alma e, por fim, sermos nós mesmos transfigurados no alto do Tabor eterno.

O Céu, por si só, é uma enorme manifestação da bondade de Deus, um riquíssimo tesouro de felicidade que Ele nos promete e um poderoso estímulo para aceitarmos com amor as cruzes durante nossa existência terrena. Confiemos nessa promessa com base nas garantias da Transfiguração do Senhor e peçamos à Mãe da Divina Graça que bondosamente nos auxilie com os meios sobrenaturais a chegarmos incólumes, decididos e seguros ao bom porto da eternidade: o Céu.

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Amor: a procura incessante de Deus


O mesmo se pode dizer quanto à vontade, pois no Céu claramente veremos a Deus face a face como o compêndio de todo bem, tal qual nos ensina São Tomás: “A razão comum da bem-aventurança é o bem comum perfeito. Assim o significou [Boécio] quando disse que é ‘o estado perfeito da reunião de todos os bens’, não significando outra coisa por isso, senão que o bem-aventurado está no estado do bem perfeito”3. E em seguida torna ainda mais claro o conceito: “A bem-aventurança perfeita [...] possui a reunião de todos os bens, devido à união com a fonte universal de todo bem. Assim, não necessita de cada um dos bens particulares” .

Daí compreendermos o porquê de certos santos terem experimentado uma tal carga mística de amor que quase chegaram ao desfalecimento. Quiçá possamos ter melhor ideia de quão imensa e plena será a felicidade de nossa vontade no Céu, ao analisarmos a razão do movimento de nosso amor às criaturas, aqui na Terra. Sem nos darmos conta, portanto, quase sempre de maneira implícita, ao amarmos, estamos buscando um reflexo de Deus existente nestes ou naqueles objetos de nosso amor. Tendo isto diante dos olhos, podemos nos perguntar: qual não será nossa felicidade no Céu, ao depararmos com o próprio Deus, face a face?

Gozo: a posse do bem desejado

Dessa visão de Deus face a face e desse amor recíproco entre mim e Ele, redundará um eterno e indescritível gozo, pois quando tomo posse de um objeto sempre muito desejado por mim, torno-me feliz. Enquanto ele não me pertence, eu me consumo por obtê-lo. Ao recebê-lo por minha propriedade definitivamente, nele repouso e dele desfruto. Nisso consiste a felicidade. Quanto melhor for o objecto e maior sua duração, proporcionalmente mais intenso será o meu gozo daí resultante.

O ser humano, na essência de seu espírito, especificamente é inteligência e amor. No Céu, o desejo de conhecer se satisfaz de forma plena na visão da Verdade, Bondade e Beleza, ou seja, do próprio Deus. E a ânsia de amar e ser amado se aplaca inteiramente, pois não só amaremos a Deus, mas seremos cientes e experientes de todo o amor que Ele nos tem. E, ademais, eternamente vendo aspectos novos do Ser Absoluto e Infinito, acrescidos pelo insuperável convívio de Jesus em Sua santíssima humanidade, da Virgem Maria, nossa Mãe, dos anjos e dos santos.

O que é o Céu?

Esse é o Céu, “o fim último e a realização de todas as aspirações mais profundas do homem, o estado de felicidade suprema e definitiva”; e essa é a glória que transparece no Tabor, ao transfigurar-Se o Senhor. Manifestou aos três Apóstolos a clareza de Sua alma e de Seu corpo para animá-los, em função da glória final, a percorrerem o espinhoso e dramático caminho do Calvário e, com fortaleza de alma, aceitarem o futuro martírio no epílogo de suas vidas.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

A imensa felicidade do Paraíso Celeste


São Paulo declara aos Coríntios ter sido arrebatado ao Céu em certo momento de sua vida, e lá ter ouvido palavras impossíveis de ser transmitidas e menos ainda de poder explicá-las: “... foi arrebatado ao paraíso; e ouviu palavras inefáveis que não é lícito [ou possível] a um homem repetir” (2 Cor 12, 4).

De fato, para os místicos torna-se difícil externar suas experiências interiores, e daí bem podemos compreender o quanto faltaram a São Paulo os termos de comparação para relatar o que com ele se passara, pois, segundo o que ele mesmo havia dito anteriormente: “nem o olho viu, nem o ouvido ouviu, nem jamais passou pelo pensamento do homem o que Deus preparou para aqueles que O amam” (1 Cor 2, 9). Essa é a maravilha que nos aguarda no momento de ingressarmos na vida eterna. E esse deve ter sido um considerável motivo para São Paulo perseverar até a hora de seu martírio, apesar de ter ele visto então apenas reflexos do Absoluto que hoje contempla face a face.

Consideremos em profundidade — até onde pode alcançar nossa inteligência fortalecida pela fé — qual será a essência de nossa felicidade quando ingressarmos na visão beatífica.

Visão beatífica e conhecimento de Deus através das criaturas

Segundo São Tomás de Aquino, todos os seres criados por Deus poderiam ter sido superiores, com exceção de três: a humanidade de Cristo, por estar unida hipostaticamente à pessoa do Filho; a Virgem Santíssima, por ser Mãe de Deus; e a visão beatífica, por se tratar de visão do próprio Deus 1.

São Paulo afirma ser imperfeito nosso conhecimento nas atuais circunstâncias, mas “quando vier o que é perfeito, o que é imperfeito será abolido” (1 Cor 13, 10). E torna ainda mais clara essa ideia utilizando-se desta comparação: “Quando eu era criança, falava como criança, sentia como criança, discorria como criança. Mas, quando me tornei homem, dei de mão às coisas que eram de criança. Nós agora vemos como que por um espelho, obscuramente, mas então veremos face a face” (1 Cor 13, 11-12).

Tão rico foi o universo teológico recebido por São Paulo directamente do próprio Cristo Jesus que, às vezes, teses de preciosa substância ficam involucradas em meio de outros temas, ao longo de suas epístolas. Esta, em concreto, é uma delas. De fato, nosso conhecimento é imperfeito, pois, quer seja no campo natural da pura inteligência, ou no sobrenatural, mediante a virtude da fé, e inclusive no da profecia, tem uma nota comum: a elaboração subsequente realizada com base nos conceitos criados e com o esforço da abstração.

Pelo contrário, ao vermos Deus face a face, a fé redundará em visão e, portanto, se evanescerá com todo o conhecimento abstrativo.

“Agora vemos como que por um espelho...” ou seja, por meio de um instrumento; conhecemos a Deus só “porque as coisas invisíveis dEle, depois da criação do mundo, compreendendo-se pelas coisas feitas, tornaram-se visíveis” (Rm 1, 20). E é a partir desse contato direto com as criaturas que elaboramos outros motivos e princípios através da própria fé, utilizando conceitos criados. Por isso é obscuro nosso conhecimento e, portanto, imperfeito. Porém, quando chegar o fim, teremos um conhecimento imediato, claro e total de Deus, se bem que não possamos conhecê-Lo totalmente.

A felicidade do ser inteligente: o exercício de suas faculdades

Talvez entendamos ainda melhor essa questão se seguirmos o pensamento de São Tomás de Aquino 2. Segundo o Doutor Angélico, o desejo de felicidade do ser inteligente leva-o a buscar sua própria perfeição, exercitando suas mais elevadas faculdades. Isto se verifica até quanto aos próprios sentidos, e por isso podemos constatar que o olho se regozija ao ver, e o paladar, ao saborear. E em consequência constitui um tormento a inactividade forçada dos mesmos.

Ora, a felicidade do ser inteligente também se verifica no exercício de suas faculdades e tornar-se-á ele tanto mais feliz quanto mais nobres sejam essas faculdades e mais formoso e elevado o objeto sobre o qual se exerçam. Não há dúvida de que, naturalmente falando, nada há de mais excelente no homem do que sua inteligência e nada pode superar a suprema verdade que é o próprio Deus. É, portanto, na inesgotável e sempre renovada visão beatífica que o homem encontra a plenitude da felicidade, extensiva a todas as suas apetências legítimas, como, por exemplo, o desejo de governar: “e reinarão com Ele ...” (Ap 20, 6); ou a necessidade dos bens: “Todos os bens me vieram juntamente com ela, e inumeráveis obras pelas suas mãos” (Sb 7, 11). “O que é presentemente para nós uma tribulação momentânea e ligeira, prepara-nos um peso eterno de glória para além de toda a medida” (2 Cor 4, 17).