Continuação dos comentários ao Evangelho da Festa da Exaltação da Santa Cruz - Jo 3, 13-17
O Filho desceu do Céu para abraçar a Cruz
Qual foi a via escolhida
por Deus para consumar a entrega de seu Filho ao mundo? A mais perfeita de todas
— pois Ele não pode desejar para Si nada que seja inferior — mas causa espanto:
a morte de Cruz! Nós preferiríamos que Ele triunfasse sobre o mal desde o
início e não sofresse os tormentos da Paixão. Na verdade, se Jesus oferecesse
ao Pai um simples fechar de olhos, um gesto, uma palavra ou um ato de vontade,
seria suficiente para reparar nosso pecado. Contudo, segundo ensina São Paulo na
segunda leitura de hoje (Fl 2, 6-11), “Jesus Cristo, existindo em condição
divina, não fez do ser igual a Deus uma usurpação, mas Ele esvaziou-Se a Si
mesmo, assumindo a condição de escravo e tornando-Se igual aos homens.
Encontrado com aspecto humano, humilhou-Se a Si mesmo, fazendo-Se obediente até
a morte, e morte de Cruz” (Fl 2, 6-8). Sendo Deus, o Filho possui a alegria eterna
e poderia ter dado à sua natureza humana uma vida terrena cheia de deleites. Não
obstante, a natureza divina comunicou a Cristo-Homem o gozo de abraçar a Cruz, ser
nela pregado e morrer, cumprindo a vontade d’Aquele que O enviara (cf. Jo 5,
30), para salvar os homens da morte eterna.
Símbolo da perfeição do universo
17 “De fato, Deus não enviou o seu Filho ao mundo para
condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por Ele”.
Ao ouvir estas
palavras, Nicodemos entendeu, decerto — ainda que de modo um tanto nebuloso —,
que se iniciava um novo regime na história do povo eleito: a era da justiça
inclemente estava terminada e começava a era da misericórdia. E esta, tão mais
forte do que aquela! A tal ponto, que o irretorquível ímpeto da justiça, capaz
de levar suas determinações até as últimas consequências, se rende quando encontra
a misericórdia. Porque a misericórdia é como a água, e a justiça, como o fogo.
Este queima, destrói e consome, mas no contato com a água, ele se extingue,
desaparecendo as chamas, as brasas e todo o ardor. À humanidade que gemia sob a
ameaça de um castigo, a Providência mandou o oxigênio da misericórdia, do qual
vivemos há mais de dois milênios.
Em suma, foi com o
intuito de nos salvar que a Santíssima Trindade promoveu a vinda do Filho ao mundo.
Desde toda a eternidade a Cruz esteve na mente de Deus, com um papel central na
História, como instrumento para a realização da perfeição das perfeições do
universo, sua maior honra e sua excelsa beleza: a Redenção. Diante deste
panorama é possível, inclusive, entender porque Deus permitiu o pecado. No plano
da criação, a suprema glória não é a inexistência deste mal, mas o Homem-Deus,
que Se deixou prender e crucificar, por amor a nós.
IV – A CRUZ, FONTE DE GLÓRIA
À primeira vista,
então, pareceria contraditório o que comemoramos nesta festa: a Exaltação da
Santa Cruz. No entanto, a Cruz, outrora considerada como o pior dos desastres
na vida de alguém, um símbolo de ignomínia que serviu para a execução de tantos
criminosos, é hoje exaltada pela Igreja porque Nosso Senhor Jesus Cristo veio
ao mundo mostrando o quanto ela Lhe é própria. É “o sinal do Filho do Homem” (Mt
24, 30) e Ele a transformou em sinal de triunfo! Por isso, a Cruz triunfa no
alto das catedrais, na ponta das coroas e no centro das mais importantes
medalhas.
A Cruz é a via da
glória. Com quanta razão se diz: “Per crucem ad lucem — É pela cruz que se
chega à luz”. E é este o princípio que a Liturgia de hoje oferece para nosso
benefício espiritual: se queremos atingir a santidade, nada é tão central
quanto saber sofrer. O traço comum de todos os Santos é justamente sua atitude
diante da Cruz. De fato, o momento decisivo de nossa perseverança não é aquele em
que a graça sensível nos toca e damos passos vigorosos na virtude, mas, sim, a
hora da provação, quando as tentações nos assaltam e experimentamos nossa
debilidade. Não foi sem motivo que, ao ensinar o Pai Nosso, o Divino Mestre
disse “livrai-nos do mal”; mas Ele não empregou o mesmo verbo no pedido
referente às tentações: “não nos deixeis cair em tentação”. Ser tentado é algo
inevitável e necessário depois do pecado original. Nessa hora, devemos resistir
abraçados à cruz, certos de que nela se encontra nossa única esperança: “Ave
Crux, spes unica!”. E quando cometemos uma falta ou nossa vida interior parecer
encalhada, dando-nos a impressão de não sermos amados por Deus, lembremo-nos de
que esta sensação é contrária à revelação feita por Nosso Senhor no Evangelho que
acabamos de considerar; pensemos que Deus nos ama tanto, que o Filho teria Se
encarnado e sofrido a Paixão de Cruz para salvar a cada um de nós, individualmente.
Glorifiquemos
transbordantes de júbilo, nesta festa, o sinal de nossa salvação e o penhor da
ressurreição futura, e saibamos carregar sempre a própria cruz com amor e
veneração, tal como o fez nosso Salvador antes de começar a Via-Sacra.
1) Cf. SAO TOMÁS DE
AQUINO. Suma Teológica. III, q.25, a.4. Tal adoração não se presta só à Cruz na
qual Nosso Senlior foi crucificado, mas também às imagens desta, como explica o
Doutor Angélico neste mesmo artigo: “Se falamos da imagem da Cruz de Cristo,
feita de qualquer outra matéria, por exemplo, de pedra, madeira, prata ou ouro,
a Cruz é venerada só como imagem de Cristo, com uma adoração de latria”.
2) Cf. Idem, I, q.25,
a.6, ad 4.
3) Cf. Idem, ad 3.
4) Cf. COLUNGA, OP,
Alberto; GARCIA CORDERO, OP, Maximiliano. Biblia Comentada. Pentateuco. Madrid:
BAC, 1960, v.1, p.847.
5) Cf. SÃO TOMÁS DE
AQUINO, op. cit., T-II, q, a.2.
6 COLUNGA; GARCIA
CORDERO, op. cit., p.847.
7 Cf. CCE 1472-1473.
8 SÃO JUSTINO. Diálogo con Trifón, 94, 2. In: RUIZ
BUENO, Daniel (Org.). Padres Apologetas Griegos (s.II). 2.ed. Madrid: BAC, 1979, p.470.
9 SÃO JOÃO
CRISÓSTOMO. Homilía
XXIV, n.1. In: Homilías sobre el Evangelio de San Juan (1-29). 2.ed. Madrid:
Ciudad Nueva, 2001, v.I, p.289.
10 Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO, op. cit., III, q.52,
a.5, ad 1.
Continua no próximo post