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quinta-feira, 28 de março de 2013

Evangelho Domingo da Páscoa na Ressurreição do Senhor Jo 20, 1-9 Ano C


Evangelho Domingo da Páscoa na Ressurreição do Senhor Jo 20, 1-9  Ano C  2013
A RESSURREIÇÃO DO SENHOR
Entre os acontecimentos daquele dia, há episódios que passam muitas vezes despercebidos; porém, bem analisados, revelam em toda a sua força o poder do amor.
Quia surrexit sicut dicit... Tal como havia anunciado aos seus (Mt 16, 21; 17,9; 17, 22; 20, 19; Jo 2, 19, 20 e 21; Mt 12, 40), Jesus ressuscitou. Esse supremo fato já havia sido previsto por David (Sl 15, 10) e por Isaías (Is 11, 10).
São Paulo ressaltará o valor desse grandioso acontecimento: “Se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa pregação, e também é vã a vossa fé” (1 Cor 15, 14). Daí a importância capital da Páscoa da Ressurreição, a magna festa da Cristandade, a mais antiga, e centro de todas as outras, solene, majestosa e pervadida de júbilo: “Haec est dies quam fecit Dominus. Exultemus et laetemur in ea” — esse é o dia que o Senhor fez, seja para nós dia de alegria e felicidade (Sl 117, 24).
Na liturgia, essa alegria é prolongada pela repetição da palavra “aleluia”, pelo branco dos paramentos e pelos cânticos de exultação. Com razão dizia Tertuliano: “Somai todas as solenidades dos gentios e não chegareis aos nossos cinquenta dias de Páscoa” (TERTULIANO.De idolatria, c 14 ML 1, 683).
Na Ressurreição do Senhor, além de contemplarmos o triunfo de Jesus Cristo, celebramos também a nossa futura vitória, sendo aplicáveis a nós as belas palavras de São Paulo: “Onde está, ó morte, a tua vitória? Onde está o teu aguilhão?” (1 Cor 15, 55).
Cristo foi o único que ressuscitou por seu próprio poder
Elias operara a ressurreição do filho da viúva de Sarepta, em casa de quem vivia (1 Rs 17, 17-24). Mais tarde, o mesmo faria Eliseu com o filho de uma sunamita (2 Rs 4, 17-37).
O próprio Salvador, tomado de pena ao encontrar o cadáver da filha de Jairo, ordenou às mulheres que não mais chorassem, pois a menina apenas dormia. Jesus conservou consigo apenas os pais e três apóstolos e, tomando-a pela mão, disse: “Menina, eu te ordeno, levanta-te!” Ela se pôs de pé cheia de vida e de alegria. Maravilhados com o prodígio, os pais nem se deram conta de que a jovenzinha precisava se alimentar, e o próprio Mestre teve de lhes lembrar isto (Mc 5, 35-43).
A compaixão de Jesus pelos sofrimentos humanos se manifestou novamente ao deparar Ele com um enterro, na cidade de Naim. Todos caminhavam consternados em extremo, pois falecera o filho de uma viúva, seu único sustento. O féretro encontrava-se cercado por gente desfeita em pranto. As misericordiosas entranhas de Nosso Senhor se comovem: “Não chores”, diz Ele à pobre mãe. E, colocando sua onipotência divina a serviço de sua bondade infinita, diz: “Moço, eu te ordeno, levanta-te!” Obedecendo à solene voz do Criador, começou a falar aquele que havia pouco ainda era defunto. Jesus tomou-o pela mão e o entregou a sua mãe (cf. Lc 7, 11-16).
A mais impressionante de todas as ressurreições operadas por Jesus foi, sem dúvida, a de Lázaro. Maria, irmã do morto, advertiu o Mestre de que o cadáver já entrara em decomposição, pois recebera o ósculo da morte quatro dias antes. Entretanto, apesar de saber Jesus que o milagre a ser efetuado aguçaria a inveja dos fariseus e, assim, apressaria sua própria morte, Ele ansiava ardentemente por cumprir os desígnios do Pai. No Sagrado Coração de Jesus encontram-se, então, dois fortes sentimentos harmônicos: a compaixão por seu amigo Lázaro e pelas irmãs dele, e a pressa em realizar a finalidade de sua Encarnação. Manda que se remova a lápide da entrada do túmulo. Um repugnante odor se espalha entre os presentes. Uma voz possante e onipotente ordena: “Lázaro, vem para fora!” À boca do túmulo cavado na pedra, um cadáver revivescido apresenta-se com dificuldade, com vendas por todo o corpo. Uma nova determinação: “Desatai-o e deixai-o ir”, dito com divina serenidade. Era a mesma voz à qual os ventos e os mares obedeciam... (Jo 11, 38-44)
Na Sexta-feira Santa, ressurreições numerosas se operaram, concomitantes ao terremoto, às trevas e ao rasgão do véu do templo. Os justos deixaram suas sepulturas, passearam pelas ruas e apareceram a muitas pessoas, certamente para increpá-las pelo deicídio (cf. Mt 27, 52-53).
Ao longo da Era Cristã haverá outras ressurreições: São Pedro fará retornar à vida Tabita (At 9, 36-43); São Paulo, com um abraço, reerguerá da morte o jovem Êutico (At 20,9-12); São Bento devolverá com saúde, a um camponês, o filho, cujo corpo inerte havia sido posto à porta do mosteiro.
Mas, se numerosas foram as ressurreições ao longo dos tempos, no que se distingue especialmente a de Cristo?
Em primeiro lugar, nunca ninguém profetizou seu próprio retorno à vida terrena. Menos ainda pôde alguém operar por seu próprio poder esse milagre tão acima da natureza criada.
“Destruí este templo, e eu o reedificarei em três dias” (Jo 2, 19). Era a maior prova de que Jesus dissera a verdade. Mais. De que Jesus é a Verdade. Nenhum ato poderia ser mais convincente que esse, mas nem por isso se convenceram os maus: “Enquanto elas voltavam, alguns homens da guarda já estavam na cidade para anunciar o acontecimento aos príncipes dos sacerdotes. Reuniram-se estes em conselho com os anciãos. Deram aos soldados uma importante soma de dinheiro, ordenando-lhes: ‘Vós direis que seus discípulos vieram retirá-lo à noite, enquanto dormíeis. Se o governador vier a saber, nós o acalmaremos e vos tiraremos de dificuldades’. Os soldados receberam o dinheiro e seguiram suas instruções. E esta versão é ainda hoje espalhada entre os judeus.” (Mt 28, 11-15)
Demonstração mais grandiosa de sua própria divindade, impossível. Má-fé mais entranhada entre seus inimigos, inimaginável.
Um aspecto pouco comentado da narrativa da Ressurreição de Jesus
Embora não o tenham afirmado os Evangelistas, é de senso comum, e os bons autores são concordes a este respeito, que Jesus apareceu em primeiro lugar a sua Mãe, logo após a Ressurreição. Na sequência, apareceu a Santa Maria Madalena (Mc 16,9; Jo, 1117) e, depois, a outras das santas mulheres (cf. Mt 28, 9-10).
Por que motivo teria escolhido as mulheres para Se manifestar, antes dos próprios Apóstolos?
Voltemos nossa atenção para uma passagem do Evangelho muito pouco analisada:
“Passado o sábado, Maria Madalena, Maria, mãe de Tiago, e Salomé compraram aromas para ungir a Jesus. E no primeiro dia da semana, foram muito cedo ao sepulcro, mal o sol havia despontado. E diziam entre si: Quem nos há de remover a pedra da entrada do sepulcro?” (Mc 16, 1-3)
Agiam impensadamente, ou seja, de modo substancialmente imperfeito, por várias razões. Sabiam que o cadáver havia sido ungido dois dias antes. Por que fazê-lo de novo? Ademais, tratava-se do corpo de uma pessoa falecida havia quarenta e oito horas. Por fim, é de bom senso que não se deve violar uma sepultura, qualquer que seja, e as leis romanas não toleravam uma transgressão desse tipo.
Havia dificuldades adicionais, como elas mesmas confessam: “Quem nos há de remover a pedra...?” Naquela hora era improvável que encontrassem homens aos quais pudessem pedir tal serviço. E na hipótese de lá haver alguns, prestar-se-iam a realizar tarefa tão perigosa?
O sepulcro havia sido lacrado com todos os cuidados dos odientos adversários de Jesus, como sabiam os discípulos. Os príncipes dos sacerdotes e os fariseus “asseguraram o sepulcro, selando a pedra e colocando guardas” (Mt 27, 62-66). Como iriam elas convencer as sentinelas a lhes permitirem abrir o túmulo e retirar o cadáver?
E nada indica que elas tenham exposto seus planos a São Pedro e aos outros Apóstolos. É mais uma nota de imperfeição. Agiam por conta própria num assunto que poderia comprometer toda a Igreja nascente. Qualquer violação da sepultura deixaria a incipiente comunidade cristã em complicada situação diante das autoridades judaicas e romanas. O simples fato de chegarem a fazer aos vigias alguma proposta quanto ao cadáver daria razão aos príncipes dos sacerdotes e escribas, que haviam solicitado ao governador romano uma guarda diante do túmulo de Jesus, pois “seus discípulos poderiam vir roubar o corpo e dizer ao povo: Ressuscitou dos mortos”... (Mt 27, 64).
Outra questão de grande peso para a avaliação dos fatos é esta: por que Nossa Senhora não se juntou a elas? Terão perguntado à Mãe de Jesus se estava correto aquele modo de proceder?
Além do mais, elas mesmas não criam na Ressurreição. Do contrário, teriam preferido ficar nas proximidades do Santo Sepulcro, para aguardar os acontecimentos. Igualmente, não lhes teria ocorrido a ideia de embalsamar de novo o corpo, a fim de protegê-lo da agressividade do tempo e da decomposição.
Este juízo parece por demais severo, ainda que apoiado em autores de grande importância. E de fato o é. Acrescente-se a isto que os próprios Apóstolos consideravam a situação com a gravidade que estamos descrevendo. As terríveis notícias sobre os acontecimentos da Paixão do Senhor, que se haviam propagado por todos os lados, e o ódio que podiam sentir pairando no ar, haviam lhes incutido terror até o fundo da alma. Por isto estavam trancados no Cenáculo.
Ora, é precisamente em meio a esse clima de tragédia e pânico que aquele grupo de piedosas mulheres, sem muito refletir sobre as conseqüências de seus atos, resolve sair antes do raiar da aurora...
Apesar da sua imprudência, as mulheres não foram repreendidas
Podemos imaginar a enorme preocupação que tomou a todos no Cenáculo, ao darem por falta dessas mulheres. E também o alvoroço que deve ter havido e os olhares de reprovação, quando elas voltaram para contar o que haviam presenciado no túmulo de Jesus. Apóstolos e discípulos não só não acreditaram na narração, como atribuíram tudo à fértil imaginação feminina: “Mas essas notícias pareciam-lhes como um delírio, e não lhes deram crédito” (Lc 24, 11). Ao narrar o episódio dos discípulos de Emaús, São Lucas lhes coloca nos lábios um lamento sobre tais mulheres, que haviam assustado a todos no cenáculo (cf. Lc 24, 22).
Apenas São Pedro e São João resolveram se mover para certificar-se do que ouviram, e creram em Santa Maria Madalena depois de examinarem o sepulcro de Jesus (Jo 20, 3-8).
No fim de tudo, as próprias mulheres se deram conta do perigo a que se haviam exposto e da imprudência cometida: “Elas saíram do sepulcro e fugiram trêmulas e amedrontadas; e a ninguém disseram coisa alguma (pelo caminho), por causa do medo” (Mc 16, 8). Esta é a reação característica dos imprevidentes: antes do ato, o perigo não existe; após as primeiras configurações deste, o pânico.
Diante desses fatos, tornam-se incompreensíveis as atitudes de Nosso Senhor para com elas. Façamos uma breve recapitulação dos fatos:
1. Por escolha de Jesus, a precedência na pregação do Evangelho cabia aos homens (os doze apóstolos e 72 discípulos). Ora, o mais importante de todos os milagres, o fundamento de nossa fé, a Ressurreição do Senhor Jesus, não é comunicada aos homens em primeiro lugar, mas sim às mulheres. Elas são encarregadas pelo “raboni” de transmitir a Boa Nova para os próprios apóstolos e discípulos, a fim de que estes a anunciem pelo mundo. Por cúmulo, eles nem sequer chegam a lhes dar crédito... (cf. Mc 16, 11).
2. Jesus manda dois Anjos (Lc 24, 4) para lhes comunicar o grande acontecimento (Lc 24, 6; Mc 16, 6; Mt 28, 6). É a primeira vez que no Evangelho deparamos com o termo “ressurreição” após a morte do Senhor.
3. Elas não só não recebem a menor recriminação da parte dos mensageiros celestes, mas são tratadas com enorme bondade e deferência. Um dos Anjos as recebe com palavras carinhosas, procurando logo de início desfazer-lhes o medo e mostrar-lhes que conhecia perfeitamente a alta razão que as movia até ali.
4. Como ficou visto mais atrás, Jesus apareceu a Maria, sua Mãe, logo após sair do sepulcro. Em segundo lugar, a Madalena (Jo 20, 16), com enorme ternura, chamando-a pelo nome. E, em terceiro, às outras mulheres, também com muita bondade, deixando que d’Ele se aproximassem e até osculassem seus pés (cf. Mt 28, 9-10).
O amor puro por Jesus acaba compensando as imperfeições
A esta altura nos perguntamos por que essa diferença de atitude de Jesus, para com elas, de um lado, e para com os Apóstolos, de outro. O trato do Senhor para os Apóstolos é bem descrito por São Marcos: “Finalmente apareceu aos onze, quando estavam à mesa, e censurou-lhes a sua incredulidade e dureza de coração, por não terem dado crédito aos que o viram ressuscitado” (Mc 16, 14). Sua primeira palavra, portanto, segundo o evangelista, é de censura para com eles. Que diferença! Por quê?
Não teria entendido nada dessa sublime lição quem afirmasse que Jesus quis dar preeminência à mulher sobre o homem. Não é este o caso. Na verdade, tais episódios deixam transparecer claramente a essência do Evangelho, que Nosso Senhor havia resumido nos seguintes termos: “Dou-vos um novo mandamento: amai-vos uns aos outros. Como eu vos tenho amado, assim também deveis amarvos uns aos outros” (Jo 13, 34). É no perfeito amor a Deus e ao próximo que está a síntese do Evangelho.
Era tão grande o amor que aquelas mulheres tinham por Jesus que até seu instinto de conservação havia se definhado, no que significasse ir ao encontro d’Ele. Carregavam imperfeições, mas o amor pelo Senhor era puro. E quando esse amor é assim acrisolado, Cristo mesmo toma sobre si a tarefa de aperfeiçoar as ações que a natureza humana decaída venha a realizar.
Com essa afirmação, não é nossa intenção fazer uma apologia da imprudência enquanto tal, mas ressaltar como as atitudes irrefletidas das santas mulheres do Evangelho eram compensadas pelo puro amor de Deus — a caridade.
É por demais exíguo o espaço destas páginas para discorrer sobre a falsa e a verdadeira prudência. A primeira entrincheira a alma no mero raciocínio e abafa o fervor. Mas nesse episódio do Evangelho vemos premiado o amor, mesmo quando tingido de imperfeição. São Paulo se refere à essa supremacia do amor, ao afirmar de nada valerem o dom das línguas, o de profecia, o de ciência, e outros, sem a caridade (1Cor 13, 1-3).
O fervor é um tesouro
São Tomás transcreve este pensamento de Aristóteles: “Os que são movidos pelo instinto divino são mais audazes...” (SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica I-II q. 45 a3c).
É oportuno lembrar que também o coração do jovem costuma mover-se pelo amor, sobretudo quando arrebatado pelo fervor primaveril. Tal como as santas mulheres, muitas vezes não se guia pela prudência, nem pela razão, mas sim pela audácia. Se se trata de um amor desinteressado e puro, Deus o premia.
Essa chama é um tesouro, que precisa ser tratada com carinho. Cabe aos pais e aos educadores não extingui-la, mas direcioná-la para as sendas do bem e da virtude.
Terminemos estas reflexões com uma explicitação de São Pedro Julião Eymard (1811-1868), fundador da obra da adoração perpétua ao Santíssimo Sacramento e da Congregação Sacramentina:
“Nosso Senhor quer suscitar em nós um amor apaixonado por Ele. Toda virtude ou pensamento que não se torne por fim uma paixão, jamais produzirá algo de grande. (...) O amor só pode triunfar se for em nós uma paixão vital. Sem isso, podemos produzir atos isolados de amor, mas nossa vida não é ganha nem doada. (...)
“Para ser uma paixão, nosso amor deve seguir as leis das paixões humanas. Refiro-me às paixões honestas, naturalmente boas; pois, em si mesmas, as paixões são indiferentes. Fazemo-las más quando as dirigimos para o mal. Depende só de nós utilizá-las para o bem. “Quando a paixão domina um homem, concentra-o. Determinado homem quer chegar a uma certa posição honrosa e elevada. Só trabalhará para isto, mesmo que tome dez ou vinte anos, não importa. ‘Chegarei lá’, diz ele. Concentra nisto sua vida. Tudo fica reduzido a servir a este pensamento ou desejo. Deixa de lado tudo o que não o conduza a seu objetivo. (...) Eis como se chega, no mundo, ao que se deseja.
“Essas paixões podem tornar-se más, e ai! muitas vezes não são mais que crime contínuo. Mas, enfim, podem ser e são ainda, em si mesmas, honoríficas.
“Sem uma paixão, nada alcançamos. Vivemos sem objetivo, arrastando uma vida inútil. Pois bem, na ordem da salvação, é preciso ter também uma paixão que nos domine a vida e a faça produzir, para a glória de Deus, todos os frutos que o Senhor espera. Amai tal virtude, tal verdade, tal mistério apaixonadamente. Devotai-lhe vossa vida, consagrai-lhe os vossos pensamentos e trabalhos. Sem isso, nada alcançareis, sereis apenas um assalariado que trabalha por empreitada, jamais um herói! (...)
“Olhai os santos. Seu amor os transporta, faz sofrer, abrasa-os; é um fogo que os consome, despende as suas forças e acaba por lhes causar a morte. Mas uma morte feliz! Entretanto, se não chegamos todos a este ponto, podemos pelo menos amar apaixonadamente a Nosso Senhor, e deixar que nos domine seu amor. (...) “Mas poderíamos dizer: ‘Somos então obrigados a amar assim?’ Bem sei que o preceito de amar deste modo não está escrito. Não é preciso! Nada o diz, mas tudo o clama: esta lei do amor está em nosso coração. (...)
“Alguns dirão: ‘Mas isto é exagero!’ Mas o que é o amor senão o exagero? Exagerar é ultrapassar a lei. E o amor deve exagerar” (S. Pedro Julião Eymard, La Divine Eucharistie). 

quarta-feira, 27 de março de 2013

Quinta-feira Santa - Instituição da Santíssima Eucaristia


Comentários sobre a instituição da Santíssima Eucaristia - quinta-feira Santa

A propósito da Santa Ceia, o seguinte pensamento que me ocorreu certa vez.
Uma pessoa que tivesse Fé e soubesse que Nosso Senhor Jesus Cristo era Deus, assistisse à sua Crucifixão e estivesse informada de que depois viriam a Resurreição e a Ascensão, essa pessoa poderia se perguntar: “Depois da Ascensão, nunca mais virá Ele à Terra? Então, até o fim do mundo Ele estará ausente? Seria isto arquitetônico? Seria razoável, tendo Ele feito pela humanidade tudo quanto fez?”
Jesus Cristo imolou sua vida de um modo dolorosíssimo e resgatou todo o gênero humano. Ele quis condescender em contrair com os homens que Ele salvou essa relação tão especial, de ser Ele a cabeça do Corpo Místico, que é a Igreja. E quis, pela graça, estar continuamente com todos os homens até o fim do mundo, de maneira a, por ela, vir a ser a alma de nossa própria alma, o princípio motor de nossa vida sobrenatural.
Poderia, então, haver deste lado tanta união com Ele e, uma vez Ele morto, uma tão completa, tão prolongada, tão irremediável separação? Seria possível que Jesus subisse aos Céus e cessasse assim a presença real d’Ele na Terra?
 Tudo clamava pela instituição da Eucaristia
Não quero dizer que a Redenção e o sacrifício da Cruz impusessem a Deus, em rigor de lógica, a instituição da Sagrada Eucaristia. Mas pode-se dizer que tudo clamava, tudo bradava, tudo suplicava por que Nosso Senhor não se separasse assim dos homens.
E uma pessoa com senso arquitetônico deveria entrever que Nosso Senhor arranjaria um meio de estar sempre presente, junto a cada um dos homens por Ele remidos. De forma tal que, depois da Ascensão, Ele estivesse sempre no Céu, no trono de glória que Lhe é devido, mas ao mesmo tempo acompanhasse passo a passo a via dolorosa de cada homem aqui na Terra, até o momento extremo em que cada um dissesse, por sua vez: “Consummatum est” (Jo 19,30).
Como se faria essa maravilha?
Essa hipotética pessoa não poderia adivinhá-la, mas deveria ficar sumamente suspeitosa de que, de algum modo, ela se realizaria. De tal maneira está nas mais altas conveniências da qualidade de Redentor de Nosso Senhor Jesus Cristo — o qual é nosso Protetor, nosso Médico, nosso divino Amigo — que seria próprio d’Ele fazer por nós esse prodígio.
Eu creio que se eu assistisse à Crucifixão e soubesse da Ascensão, ainda que não soubesse da Eucaristia, eu começaria a procurar Jesus Cristo pela Terra, porque não conseguiria me convencer de que Ele tivesse deixado de conviver com os homens.
Presente em todos os lugares, em todos os momentos
Esse convívio verdadeiramente maravilhoso de Jesus Cristo com os homens se faz, exatamente, por meio da Eucaristia.
Em todos os lugares da Terra, em todos os momentos, Ele está realmente presente, nas catedrais opulentas e nas igrejinhas pobres. Quantas vezes, viajando em estradas de rodagem, encontramos umas capelinhas minúsculas, pobres, que dão para acolher apenas umas vinte ou trinta pessoas. Passamos por uma delas e comovemo-nos, pensando que nela Nosso Senhor Jesus Cristo esteve, está ou estará realmente presente — com toda a glória do Tabor, com toda a sublimidade do Gólgota, com todo o esplendor da Divindade — de tal maneira Ele multiplicou pela Terra a sua presença adorável!
Olhamos para as pessoas que encontramos numa igreja, e pensamos: “Nosso Senhor Jesus Cristo está presente neste homem que comunga. Naquele outro, estará ainda nesta semana, talvez hoje mesmo, talvez amanhã. Estará presente tantas e tantas vezes! Eis um homem que vai ser transformado, embora por algum tempo, num sacrário vivo. Muito mais do que num sacrário, porque o tabernáculo contém as espécies eucarísticas, mas não comunga.”
Aí nós podemos medir bem a prodigiosa obra de misericórdia realizada por Nosso Senhor, com a instituição da sagrada Eucaristia. Tanto quanto a presença d’Ele tem um valor infinito, tanto assim também tem valor infinito o fato de Ele estar realmente presente sob as sagradas espécies por toda a Terra, e em todos os homens que queiram condescender em O receber.
É muito bom, também, imaginarmos as horas e horas e horas que Ele passa abandonado nos sacrários, adorado apenas por Nossa Senhora, pelos Anjos e Santos do Céu. Pensar nos homens ausentes e distantes, e Ele à espera de que um deles queira vir recebê-Lo. De tal maneira o Infinito se sujeita ao que é finito, Aquele que é a própria pureza e a própria perfeição, se sujeita às boas disposições e, mais ainda, às vezes às más disposições daqueles que bem mal O querem receber.
Enlevo e gratidão
Por pouco que se pense nisto tudo, nossa alma não pode deixar de transbordar de reconhecimento, de enlevo, de gratidão por aquilo que Nosso Senhor operou na Última Ceia. Só uma inteligência divina poderia excogitar a sagrada Eucaristia, poderia imaginar esse meio de estar presente por toda parte e de entrar em todos os homens. E só mesmo um Deus podia realizá-lo!
Por mais que essas verdades sejam sabidas, é imperioso que nós detenhamos sobre elas nossa atenção e, por intermédio de Nossa Senhora, demos graças enormes a Deus, pela instituição da sagrada Eucaristia.
Simplesmente agradecer “por intermédio” de Nossa Senhora?
Se é verdade que todo dom vindo do Céu para os homens foi pedido por Ela — porque sem seu pedido o dom não teria sido dado — é verdade que Nossa Senhora pediu a instituição da sagrada Eucaristia, e foi pelos rogos d’Ela que Nosso Senhor Jesus Cristo a instituiu. Portanto, não devemos utilizá-La apenas como intermediária desse agradecimento, mas devemos agradecer também “a Ela” a sagrada Eucaristia.
Devemos agradecer a Jesus, que condescendeu em instituí-la, e a Maria que, movida pela graça, pediu a Deus esse favor transcendentalíssimo, e o obteve para nós.
É este pensamento que não pode deixar de estar presente nos nossos espíritos nesta Quinta-Feira Santa.
A maravilha da Missa
Há um pensamento transcendental  que também devemos ter em vista hoje, e que diz respeito ao santo Sacrifício da Missa. Os senhores sabem bem que a transubstanciação se opera no próprio ato em que Nosso Senhor Jesus Cristo renova a sua Paixão. A essência da Missa, que é a renovação da Paixão e Morte de Jesus Cristo, está na transubstanciação, que é o prodígio pelo qual o pão e o vinho se fazem Corpo e Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, pelas palavras sacramentais pronunciadas pelo sacerdote. A Missa, que é ao mesmo tempo oferecimento e imolação, é também o ato determinante da presença real de Jesus sob as espécies que depois se conservam nos sacrários.
Então, aquele homem que estivesse presente no Calvário, depois do “Consummatum est”, depois que as santas mulheres receberam o corpo descido da Cruz, depois que Nossa Senhora chorou sobre Ele e foi embalsamado, depois que Ele foi levado até o sepulcro, depois que a Cruz ficou sozinha no alto do Gólgota e todo mundo foi embora — aquele homem ali solitário, com o espírito cheio de Fé, compreenderia ser aquela Cruz o símbolo de um ato que tinha que se renovar, de um ato que, pela mesma lógica, convinha enormemente que se multiplicasse.
Esse ato, de fato, se renovou de um modo prodigioso por toda a Terra, e continuará se renovando até o fim do mundo, na Missa.
Os teólogos dizem que o Sacrifício da Missa tem um valor tão inapreciável e infinito, ao pé da letra, que se em um determinado dia ela deixasse de ser celebrada, a justiça de Deus cairia sobre o mundo, dando-lhe fim.
Houve um pintor — não me lembro qual — que pintou um quadro muito bonito, representando a última Missa sobre a Terra. Mostra ele, no meio do caos e da desordem, um padre que celebra a Missa, oferecendo a Deus o Sacrifício do Altar. Nesse momento, estão todos os Anjos prontos para cair sobre a Terra para executar a justiça de Deus e desencadear o fim do mundo. Mas eles todos estão parados, ainda, à espera de que a última Missa tenha sido celebrada. Porque tal é a reverência de Deus Padre para com o sacrifício de seu próprio Filho, a Ele oferecido na Missa, que nem o desígnio de acabar com o mundo O faria precipitar sua mão, antes desse sacrifício ser concluído.
Sacerdócio e bondade de Deus
Nós devemos considerar ainda que a Quinta-Feira Santa foi o dia da instituição do sacerdócio. O poder de consagrar foi conferido aos apóstolos nesta ocasião. Houve nesse dia, portanto, três maravilhas, conexas entre si: o Sacrifício, o Sacramento e o Sacerdócio, às quais se deve juntar o insigne ato do lava-pés.
Entretanto, o dia da instituição da Eucaristia, que deveria ser um dia de alegria, um dia de júbilo, é um dia de júbilo misturado com tristeza. Tristeza por causa da Paixão que se aproxima. Tristeza por causa do ódio satânico que fervia em torno mesmo do Cenáculo, onde Nosso Senhor Jesus Cristo estava por essa forma consumando a sua obra. Tristeza por causa da tibieza dos apóstolos, da fraqueza daqueles que eram, entretanto, os primeiros e os mais imediatos beneficiários de todas essas maravilhas. Tristeza por causa do filho da perdição, que estava sentado entre os apóstolos e ia executar o crime nefando, o pior crime da História, o de vender por trinta dinheiros Nosso Senhor Jesus Cristo.
E Ele, sendo Deus, tendo conhecimento de todas as coisas que iam acontecer, entretanto não trepidou em acumular tantas maravilhas sobre as pessoas desses pobres miseráveis que daí a pouco iam fazer tudo quanto fizeram, e do traidor por excelência, que fez tudo quanto fez.
Os senhores estão vendo o que é a vocação. Os senhores estão vendo o que é a misericórdia de Deus, a qual nada consegue abalar ou demover. Jesus Cristo tinha intuito de construir o seu Reino sobre a Terra, tinha o intuito de fazer daqueles apóstolos os pilares desse Reino. De fato, Ele cumulou de dons esses apóstolos. Eles foram infiéis, mas esses dons não se perderam. Os apóstolos acabaram sendo fiéis e as intenções de Nosso Senhor Jesus Cristo acabaram se realizando.
Graça a pedir na Quinta-Feira Santa
Aqui nós temos um argumento para nos estimularmos no meio de nossas incontáveis fraquezas.
Quantas razões para nós batermos no peito! Quantas razões para considerarmos as nossas confissões apressadas, as nossas comunhões mecânicas e sem piedade verdadeira! Quantas razões para pensar nas mil ocasiões em que estivemos abaixo de nossa vocação!
Entretanto, Nossa Senhora continua a nos proteger, continua a nos ajudar, continua a nos conceder graças de toda ordem. Podemos esperar que Ela tenha a intenção misericordiosa de nos conservar como seus apóstolos para todo o sempre, para a criação do Reino de Maria, apesar de todas as nossas insuficiências, de nossas carências, de nossas infidelidades.
E assim devemos nos inclinar a seus pés e pedir que Ela nos trate como tratou os apóstolos e obtenha para nós um trato análogo da parte de Nosso Senhor Jesus Cristo. Quer dizer, pedir-Lhe que — fechando os olhos às nossas fraquezas e misérias passadas e presentes, e até mesmo àquelas que de futuro nós possamos ter — Ela queira não romper esse pacto de misericórdia que Ela estabeleceu conosco. Que Ela queira manter esse pacto e fazer chegar logo o dia mil vezes feliz em que nos confirme na fidelidade. E em que nós possamos, afinal, ser para Ela razão de uma alegria estável, permanente, durável, sólida e séria, por nossa grande fidelidade.
Esta é a graça que na Quinta-feira Santa devemos especialmente pedir.*
* Excerto tirado da Revista Dr Plinio 63




segunda-feira, 25 de março de 2013

Evangelho da Solenidade da Anunciação do Senhor Lc 1, 26-38

Comentário ao Evangelho – Solenidade da Anunciação do Senhor Lc 1, 26-38
Um Universo composto por criaturas com deficiências
Se nos fosse dado contemplar a imensidade dos possíveis de Deus, ou seja, o incontável número de seres que Ele poderia ter criado em sua onipotência, veríamos criaturas semelhantes às deste mundo, mas sem os seus característicos defeitos. Por exemplo, ouriços constituídos sem meios de causar mal aos homens; pernilongos lindíssimos dotados de uma picada agradável e benfazeja; urubus de figura tão elegante quanto os seus voos, e assim por diante.
Por que não pôs Deus no universo criaturas assim, sem qualquer defeito, as quais poderiam ter sido criadas e não o foram?
Pergunta esta de difícil resposta. O certo, porém, é que no universo no qual vivemos três criaturas são insuperáveis: a humanidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, unida hipostaticamente à divindade; a visão beatífica e Nossa Senhora.1 Todos os outros seres, considerados individualmente, poderiam ser mais perfeitos.
Ora, este mundo composto por criaturas com deficiências é, entretanto, ótimo no seu conjunto, como ensina São Tomás de Aquino: “O universo não pode ser melhor do que é, se o supomos como constituído pelas coisas atuais, em razão da ordem muito apropriada atribuída às coisas por Deus e em que consiste o bem do universo. Se apenas uma dessas coisas se tornasse melhor, a proporção da ordem estaria destruída, como a melodia de uma cítara ficaria destruída se uma corda se tornasse mais tensa do que deve”.2
O universo criado por Deus tinha de ser o que mais O glorificasse, porque Ele não poderia ter escolhido criá-lo de forma nem um pouco inferior ao mais adequado. E tudo quanto nele existe de defectivo serve para o homem ter presente a sua debilidade, fraqueza e dependência contínua de Deus. Lembra-lhe, enfim, sua contingência. É deste mundo, com deficiências, que nós fazemos parte.
As considerações acima nos preparam para analisar o papel de Nossa Senhora na Criação, que é especialmente recordado na liturgia escolhida pela Igreja para a Solenidade da Anunciação do Senhor.
O “fiat” de Maria Santíssima
Sobre a conhecidíssima e tão comentada passagem evangélica da Anunciação, pareceria não haver nada de novo a dizer. Entretanto, como um vinho excelente apresenta aspectos diferentes em cada safra, assim também acontece com o magno acontecimento da Encarnação do Verbo, no qual sempre descobriremos novas e magníficas maravilhas.
As aparências não estão à altura do acontecimento
“Naquele tempo, 26 o anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galileia, chamada Nazaré, 27 a uma Virgem, prometida em casamento a um homem chamado José. Ele era descendente de Davi e o nome da Virgem era Maria”.
Antes de entrar na análise da narração de São Lucas, é mister voltarmos nossa atenção para o local onde Se encontrava Maria Santíssima ao ser visitada pelo Arcanjo São Gabriel. Não se tratava de um magnífico palácio, como tantos artistas imaginaram, mas de uma casa muito modesta, com paredes de tijolos aparentes. Estava situada em Nazaré, uma cidade então insignificante, na qual a Sagrada Família viverá na pobreza, humildade e apagamento.
Não há neste episódio outros elementos cujas aparências estejam à altura do acontecimento que ali se daria, a não ser a presença da Virgem Maria, e também a de São José. Pois o elevadíssimo grau de santidade de ambos certamente transluzia em seus gestos, fisionomias e em todo o seu modo de ser.
No momento da Anunciação, Nossa Senhora rezava
28a “O anjo entrou onde Ela estava...”.
O que fazia Maria Santíssima quando o anjo chegou junto a Ela? Sem dúvida, rezava, talvez considerando a desastrosa situação na qual se encontrava a humanidade. O povo judeu havia se desviado da prática da verdadeira religião e os pagãos, a começar pelos romanos, viviam numa tremenda decadência moral. Chegara-se ao que São Paulo chama “plenitude dos tempos” (Ef 1, 10).
É assim, com Maria Santíssima orando ao Pai recolhida no seu aposento, que São Bernardo descreve a cena da Anunciação, pondo em realce a importância da oração para Deus manifestar-Se. Pois uma coisa é evidente: as preces d’Ela comoveram os Céus: “A saudação do anjo, feita com tanta reverência, indica quanto as orações de Maria haviam agradado ao Altíssimo”3 — afirma o Doutor Melífluo.
Numa de suas meditações sobre a vida de Cristo, São Boaventura nos apresenta a jovem Maria levantando-Se à meia noite no Templo para fazer sete súplicas diante do Altar e rezando desta forma: “Eu Lhe pedia a graça de presenciar o tempo no qual haveria de nascer aquela Virgem Santíssima que daria à luz o Filho de Deus, de conservar-me os olhos para poder vê-La, a língua para louvá-La, as mãos para servi-La, os pés para ir aonde Ela mandar e os joelhos para adorar o Filho de Deus em seu regaço”.4
Sua humildade A impedia de concluir quem haveria de ser essa Dama à qual desejava ardentemente servir, mas, possuindo ciência infusa e recebendo graças sobre graças, foi tecendo considerações até conceber em seu espírito, com total nitidez, a figura moral do Messias prometido. Maria “concebeu Cristo em sua mente antes de concebê-Lo em seu ventre”, afirma Santo Agostinho.5
Ao ver iluminar-se o aposento por uma luz sobrenatural e aparecer diante d’Ela o Arcanjo São Gabriel, Maria não deu o menor sinal de espanto. Segundo vários autores, entre eles São Pedro Crisólogo e São Boaventura, Ela estava “habituada às aparições angélicas, as quais não podiam deixar de ser frequentes para Aquela que Deus havia cumulado de tantas graças, que reservava para tão altos destinos, e que os anjos reverenciavam como sua Rainha e a própria Mãe de Deus”.6 Podemos, inclusive, conjecturar que o próprio São Gabriel não Lhe fosse desconhecido.
A graça crescia n’Ela a cada instante
28b“... e disse: ‘Alegra-Te, cheia de graça, o Senhor está contigo!’”.
A expressão usada pelo Anjo para saudá-La tem um sentido muito profundo no qual vale a pena nos determos.
Nosso Senhor Jesus Cristo, Salvador da humanidade, é a única criatura que possui a plenitude absoluta de graça. Ele a teve desde o início, sem qualquer possibilidade de aumento. E quando o Evangelho afirma que Jesus “ia crescendo em sabedoria, tamanho e graça diante de Deus e dos homens” (Lc 2, 52), refere-se às manifestações exteriores de sua santidade. “Mas interiormente o tesouro de dons celestes, que O tornavam agradável a Deus, era tão perfeito que não podia crescer de maneira alguma”.7
Não acontecia o mesmo com Nossa Senhora. Ao longo de toda a sua vida, foi incessante seu progresso espiritual, ora devido aos méritos sobrenaturais obtidos pela prática de incontáveis boas obras, ora como fruto da sua oração humilde, confiante e perseverante, ora, no fim da sua existência, por efeito do Sacramento da Eucaristia. E isto sem falar dos incrementos de graça, de incalculáveis proporções, experimentados por sua alma no momento da Encarnação do Verbo, aos pés da Cruz e por ocasião de Pentecostes.8
Não houve, portanto, um instante no qual Ela não tivesse mais graça do que no anterior, como bem exprime Campana: “Em todos os momentos de sua vida, Maria foi penetrada por inteiro pelos raios divinos da graça; em cada minuto de sua existência, sua vontade mostrou-se dócil em render a Deus homenagem e glória; todas as pulsações de seu Coração foram sempre para Deus. [...] Essa ascensão de Maria rumo ao ideal de santidade era contínua, uniforme, sem solavancos, sem interrupção”.9
Assim, quando o anjo A proclama “cheia de graça”, indica estar sua alma participando da vida divina no maior grau possível naquele instante; mas um minuto depois essa plenitude já seria maior.
E conclui o mesmo Campana: “Maria progredia em graça porque n’Ela se desdobravam sem cessar novas capacidades de graça, as quais eram logo preenchidas. Precisamente nisto consiste a diferença característica entre a plenitude de santidade de Maria e a de Jesus Cristo”.10
Plenitude de superabundância
Com base no Doutor Angélico, Garrigou-Lagrange distingue três plenitudes de graça: absoluta, exclusiva de Cristo; de superabundância, privilégio especial de Maria; e de suficiência, comum a todos os santos.11 E explica o insigne teólogo dominicano: “Essas três plenitudes subordinadas foram justamente comparadas à de uma fonte inesgotável, à do rio que dela procede e à dos canais alimentados por esse rio para irrigar e fertilizar as regiões por ele atravessadas, ou seja, as diversas partes da Igreja universal no espaço e no tempo”.12
Assim, desde o momento de sua criação, Maria Santíssima participou da vida divina mais do que todos os Anjos e todos os bem-aventurados juntos. A tal ponto, que se Ela lhes distribuísse todas as graças das quais cada um deles tivesse necessidade, nada Lhe faltaria, pois, “sob a forma de méritos, de orações e de sacrifícios, esse rio de graça remonta a Deus, oceano da paz”.13
A plenitude da graça de Maria, afirma São Lourenço de Bríndisi, “só é compreensível para Deus, pois só Ele abarca o abismo imenso e o quase infinito pélago dessa graça”.14
Causa da perturbação de Maria
29 “Maria ficou perturbada com essas palavras e começou a pensar qual seria o significado da saudação”.
A reação de Nossa Senhora mostra a profundidade do seu espírito.
Dotada de ciência infusa, Ela entendeu perfeitamente o alcance da altíssima afirmação do anjo, considerando não apenas o significado imediato daquelas palavras, mas também suas consequências e correlações com o panorama da História.
Contudo, sendo cheia de graça, um dos seus predicados era a humildade mais excelsa. Em nada preocupada consigo mesma, todas as suas cogitações voltavam-se para Deus e a salvação da humanidade: Quando virá o Messias? Quando se dará a redenção?
A presença de São Gabriel não Lhe causou qualquer perturbação. Sua saudação, porém, deixou-A com um ponto de interrogação, pois não podia imaginar que aquelas palavras pudessem ser aplicadas a Ela. Conforme esclarece São Tomás: “A Bem-aventurada Virgem tinha uma fé expressa na Encarnação futura: mas, por ser humilde, não tinha tão alta ideia de Si mesma. E por isso era preciso que fosse informada a respeito da Encarnação”.15
Medo de macular uma humildade ilibada
30 “O anjo, então, disse-Lhe: ‘Não tenhas medo, Maria, porque encontraste graça diante de Deus’”.
Embora sem mancha de pecado original, Nossa Senhora foi criada em estado de prova e percebia com toda clareza a necessidade da vigilância. Temia aplicar a Si as palavras do Anjo e, cedendo em algo ao orgulho, acabar por ofender a Deus.
“Não tenhas medo, Maria” significava: “Não vos preocupeis, porque vossa humildade em nada será atingida”. Com essas palavras, São Gabriel A exorta a ter confiança de que jamais sairá do reto caminho. Não em razão dos seus méritos. Ele não diz: “Não tenhas medo porque és forte”, mas sim “porque encontraste graça diante de Deus”.
E por que encontrou Ela graça diante de Deus?
A resposta, no-la dá São Bernardo: “Se Maria não fosse humilde, não desceria sobre Ela o Espírito Santo; e, se Este não descesse, Ela não conceberia pelo poder d’Ele. Pois como poderia conceber d’Ele sem Ele? É claro, portanto, que, para Ela conceber d’Ele, ‘o Senhor olhou para a humildade de sua serva’ (Lc 1, 48) muito mais do que para a sua virgindade; e, embora tenha por sua virgindade agradado a Deus, foi pela humildade que concebeu”.16
E nós também procedemos assim? Tomamos cuidado com a vaidade, como o fez Nossa Senhora nessa circunstância? Somos cientes de que um pensamento de orgulho consentido pode ser o ponto de partida para uma séria decadência na vida espiritual? Ou aceitamos com delícias qualquer elogio, real ou imaginário, que nos seja feito?
O ato de virtude que Lúcifer e os anjos maus não praticaram no Céu, nem Adão e Eva no Paraíso Terrestre, Maria Santíssima o fez da forma mais perfeita possível. Que exemplo sublime Ela nos dá, a nós tantas vezes preocupados em obter honrarias devidas ou indevidas!
“Será chamado Filho do Altíssimo”
31“Eis que conceberás e darás à luz um filho, a quem porás o nome de Jesus. 32 Ele será grande, será chamado Filho do Altíssimo, e o Senhor Deus Lhe dará o trono de seu pai Davi. 33 Ele reinará para sempre sobre os descendentes de Jacó, e o seu reino não terá fim”.
Nestes três versículos, o Anjo indica as extraordinárias características d’Aquele que Nossa Senhora haveria de conceber. Elas estavam em perfeita harmonia com a Sagrada Escritura, a qual Maria Santíssima conhecia como ninguém, e com a rica imagem do Messias formada por Ela em seu espírito, ao longo dos anos.
Imaginemos qual seria a reação de uma jovem recém-casada daquele tempo, ao receber de um anjo a notícia de que o seu filho haveria de ser grande tanto na ordem sobrenatural: “será chamado Filho do Altíssimo”, quanto na natural: “o Senhor Deus Lhe dará o trono de seu pai Davi”. Impossível excogitar algo mais elevado!
Maria, entretanto, reage diante da comunicação do Anjo dando novas mostras de humildade heroica. São Gabriel lhe anuncia que será a Mãe do mais importante dos filhos de Israel: do próprio Messias! E Ela o ouve tranquila e serena, porque as suas preocupações estavam bem longe da glória pessoal.
Perplexidade diante do anúncio
34“Maria perguntou ao anjo: ‘Como acontecerá isso, se Eu não conheço homem algum?’”.
Aqui resplandece a Fé de todo incomum de Nossa Senhora, ante o anúncio feito pelo Anjo. Ao ouvi-lo dizer “conceberás e darás à luz um filho”, reconhece tratar-se de fato de uma mensagem divina, e não põe obstáculo algum à sua realização. Porém, entre as graças das quais Ela estava plena, reluzia um insuperável amor à virtude da castidade. Desposada com São José, combinou com ele manterem-se virgens por toda a vida.17 E é nesse sentido que se deve entender a expressão “não conheço homem algum”. Podemos supor ter havido longas conversas entre Ela e São José a esse respeito, chegando à conclusão de ser claramente inspirado por Deus o voto de castidade feito por ambos.
Mesmo com essa convicção bem arraigada na alma, Ela não duvidara das palavras de São Gabriel. Apenas apresenta-lhe sua perplexidade, visando conhecer mais a fundo como haveria de concretizar-se o desígnio divino.
Origem inteiramente sobrenatural do Verbo Encarnado
35 “O anjo respondeu: ‘O Espírito virá sobre Ti, e o poder do Altíssimo Te cobrirá com sua sombra. Por isso, o menino que vai nascer será chamado Santo, Filho de Deus. 36 Também Isabel, tua parenta, concebeu um filho na velhice. Este já é o sexto mês daquela que era considerada estéril, 37 porque para Deus nada é impossível’”.
Quem senão Deus, seu Criador, conhecia o amor extraordinário da Virgem Santíssima à virtude da pureza? Por isso Ele, que é a Delicadeza em essência, teve o cuidado de mandar o celeste mensageiro resolver com extraordinária elevação e reverência sua santa perplexidade.
Conhecendo por instrução divina o problema que a maternidade divina levantava n’Ela, o anjo Lhe mostra que, assim como havia concedido à sua prima Isabel conceber um filho na velhice, a Onipotência divina poderia fazê-La conceber sem concurso de varão. E Ela, resplandecente de sabedoria e inteligência, entende em toda a sua profundidade as explicações do Anjo e logo as aceita.
A origem inteiramente sobrenatural do Verbo Encarnado foi revelada naquele momento. Que considerações não deve ter feito Maria ao conhecer o alcance desse acontecimento!
Maria gerou no tempo a mesma Pessoa gerada pelo Pai na eternidade
38 “Maria, então, disse: ‘Eis aqui a serva do Senhor; faça-se em Mim segundo a tua palavra!’. E o anjo retirou-se”.
A escravidão é o estado mais deplorável para uma criatura humana. Pelo Direito Romano, quem caía nessa situação era considerado coisa, res, perdendo todos os direitos próprios à pessoa humana. E quando a Virgem Maria disse: “Eis aqui a serva do Senhor”, o fez com total consciência, colocando-Se por inteiro nas mãos de Deus, com absoluta confiança na sua liberalidade.
A partir desse ato de radical aceitação, todo ele feito de humildade e de fé, operou-se logo em seguida a concepção do Verbo Encarnado no seu seio virginal.
Consideremos agora um aspecto particularmente comovedor desse fiat.
O Verbo de Deus foi gerado pelo Pai desde toda a eternidade. Conhecendo-Se a Si mesmo, Ele gerou um Filho eterno sem concurso de mãe alguma, de uma forma misteriosa que nossa inteligência não consegue compreender.
Ora, logo após o consentimento da Virgem — “Eis aqui a serva do Senhor, faça-se em Mim segundo a tua palavra” —, o Espírito Santo iniciou n’Ela o processo de gestação do Verbo Encarnado. Ela tornou-Se Mãe sem concurso de pai natural.
Há, pois, entre o Padre Eterno e Maria Santíssima um paralelo de impressionante grandeza: ao considerar suas próprias magnificências, Este gera o Filho na eternidade; e Maria, pondo nas mãos de Deus sua própria contingência, gera o Filho de Deus no tempo!
Por ser a mais humilde de todas as criaturas, Nossa Senhora reproduz de algum modo a geração do Verbo na eternidade, ao dar origem na Terra à natureza humana de Nosso Senhor. O Pai criou todas as coisas no Verbo e pelo Verbo; pela Encarnação, Maria vai permitir ao Filho oferecer-Se em sacrifício ao Pai, para a recuperação de todas as coisas degradadas pelo pecado.18
O grandioso plano da Encarnação e da Redenção do gênero humano esteve na dependência desse fiat de Maria, porque se, por uma hipótese absurda, Ela não tivesse aceitado, não teria havido a Redenção.
A festa da harmonia no Universo
Como vimos no início deste artigo, Deus escolheu, entre infinitas possibilidades, criar o melhor dos universos, no qual tudo se ajusta em função de Nosso Senhor Jesus Cristo. Porque se Ele tivesse criado todos os seres no seu grau máximo de perfeição surgiria, paradoxalmente, uma tremenda deficiência, maior do que qualquer outra que possamos conceber: a do Verbo Encarnado não poder oferecer nada de Si para tornar mais elevada a Criação.
Devemos, portanto, nos alegrar com as nossas limitações e, em certo sentido, até com nossos pecados, pois eles permitem a Nosso Senhor exercer a misericórdia, derramando sobre nós, por meio de Maria Santíssima, aquilo que n’Ele existe em plenitude absoluta.
Porém, a fecundidade do Preciosíssimo Sangue de Jesus é tal que, ao reparar e perdoar, Ele não só nos restaura aquilo que perdemos, mas nos traz um complemento, dando-nos ainda mais do que anteriormente possuíamos. Dessa maneira, podemos alcançar, pela graça divina, aquilo que os seres mais perfeitos, se fossem criados, teriam por natureza.
Ora, foi a Virgem Maria, com sua disponibilidade e obediência, quem introduziu no cerne da Obra divina a Criatura cume e modelo arquetípico de tudo quanto existe, da Qual tudo deflui. Por isso, a Solenidade da Anunciação do Senhor celebra a restauração da harmonia no universo. É a comemoração do dia em que a Criação passou a transluzir com um brilho todo divino, pelos méritos de Maria Santíssima.
1“A humanidade de Cristo, pelo fato de estar unida a Deus; a bem-aventurança criada, por ser o deleitar-se em Deus; e a Bem-aventurada Virgem, por ser a Mãe de Deus, têm até certo ponto infinita dignidade, provinda do bem infinito que é Deus. Sob este aspecto, nada pode ser feito melhor do que eles, como nada pode ser melhor do que Deus” (SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, I, q.25, a.6, ad.4).
2Idem, I, q.25, a.6, ad.3.
3SÃO BERNARDO. Obras Completas. Homilías sobre la Virgen Madre 3,1. Madrid: BAC, 1953, t.I, p.207.
4SÃO BOAVENTURA. Meditaciones de la vida de Cristo. Buenos Aires: Santa Catalina, 1945, p.7.
5SANTO AGOSTINHO. Sermo 215, 4. ML 38, 1074.
6JOURDAIN, Zéphyr-Clément. Somme des grandeurs de Marie. 2.ed. Paris: Hyppolite Walzer, 1900, t.II, p.268.
7CAMPANA, Emile. Marie dans le Dogme Catholique – Les Prérogatives de Marie. Montréjeau: SoubironCardeilhac, s.d., t.II, p.281-282
8 Cf. ROYO MARÍN, OP, Antonio. La Virgen María. Madrid: BAC, 1968, p.252-268.
9 CAMPANA, op. cit., p.278.
10 Idem, p.281
11 Cf. GARRIGOU-LAGRANGE, OP, Réginald. La Mère du Sauveur et notre vie intérieure. Paris: Les Éditions du Cerf, 1954, p.34-36.
12 Idem, p.35.
13Idem, ibidem.
14 SÃO LOURENÇO DE BRINDISI. Marial – María de Nazaret, “Virgen de la Plenitud”. Madrid: BAC, 2004, p.206.
15 SÃO TOMÁS DE AQUINO. Op. cit., III, q.30, a.1, ad 2.
16 SÃO BERNARDO. Op. cit., Homilías sobre la Virgen Madre 1,5, p.189.
17 Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. Op. cit., III, q.28, a.4.
18 Observa a este propósito Alastruey: “A Anunciação demonstra a participação na Encarnação e, portanto, na restauração do mundo decaído, obtida pela Santíssima Virgem, de cujo consentimento dignou-Se depender o próprio Deus para encarnar-Se em seu seio” (ALASTRUEY, Gregorio. Tratado de La Virgen Santísima. Madrid: BAC, 1945, p.71).



MEU DEUS, MEU DEUS, POR QUE ME ABANDONASTES?



Causa-me assombro como essa fisionomia expressa uma forma de sofrimento de Nosso Senhor que não me lembro de ter visto representado, de modo tão preciso e extremo, em nenhum outro crucifixo.

Olhos escancarados e salientes, a tensão de toda a carnatura da face e a posição do pescoço dão a impressão de algo muito mais aflitivo do que a dor: é o mal-estar. Um mal-estar terrível, pior do que qualquer padecimento, inundando completamente a Alma adorável e o sagrado Corpo de Nosso Senhor no alto da Cruz. Dir-se-ia que, nessa posição e com essa expressão fisionômica, o Divino Redentor não estava distante de dar o brado sublime que precedeu de momentos a sua morte: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?” Tudo n’Ele está prestes a estalar, a desaparecer. O “consummatum est” se aproxima.

Sofrimento indizível, cuja consideração deve nos preparar para nos unirmos a Jesus, pelos rogos de Maria Santíssima, em nossas dores, em nossas perplexidades e aflições de espírito, nas horas em que parecemos sucumbir ao peso da angústia e pensamos estar, nós também, abandonados pela Providência.

Comentários de Plinio Correa de Oliveira sobre o milagroso crucifixo que se encontra no altar-mor da Igreja de São Francisco de Assis, em São João del Rey, MG (foto acima).


domingo, 24 de março de 2013

Preparando a alma para a Semana Santa



Ao nos aproximarmos da Semana Santa, devemos ter uma compreensão clara de seu significado e do bem que a Igreja tem intenção de nos obter durante esses dias. Dr. Plinio Correa de Oliveira, com entranhada piedade, nos aponta como participar das comemorações da Paixão de modo atento, devoto e esperançado.
Sem  prestar  atenção  nas coisas, nada se faz  bem feito. Por exemplo, um pintor que não presta atenção na pintura, não faz nada que preste. Fixar a  atenção aonde deve e mantê-la ali durante o tempo necessário, é condição para que a pessoa faça qualquer coisa de bom.
Essa verdade se aplica, sobretudo, para aquilo que há de mais importante: os atos de piedade pelos quais a pessoa se volta para Deus, pede-Lhe graças e as recebe. É preciso saber recolher essas graças e aproveitá-las, agindo na linha em que elas indicam.
Tudo isso supõe muita seriedade. E para termos essa seriedade bem atenta durante o importantíssimo período do ano litúrgico onde os católicos comemoram a Paixão e Morte de Cristo, a Compaixão de Nossa Senhora e a Ressurreição de Nosso Senhor, apresentarei algumas noções a respeito dessas comemorações.
As consequências do pecado original
Quando  Adão  e  Eva  pecaram,  como  consequência,  perderam os dons preternaturais: ficaram sujeitos à morte, a tormentos, a doenças, a dores, a indisposições, etc.  Sua inteligência tornou-se mais limitada e perderam o  domínio que tinham sobre os animais, desde o tigre ou  leão mais feroz até o menor inseto. Qualquer mosquitinho pode nos perturbar; antes do pecado isso não sucedia com Adão. 
O estudo e o trabalho, quer o manual, quer o intelectual, tornaram-se difíceis. Para a mulher, a gestação passou a ser frequentemente acompanhada de incômodos  de saúde, e o dar à luz um filho, dolorido. E há uma série  de outros castigos causados pelo pecado original.
Porém, isso não é nada em comparação com o seguinte. Como o pecado cometido tinha uma gravidade infinita, ficaram fechadas para o homem as portas do Céu. E,  além de padecer nesta Terra, o homem corria grave risco  de ir para o inferno.
Porque, depois do pecado, o homem ficou com tendências para o mal, com muita dificuldade em praticar o  bem, como demonstra o episódio de Caim e Abel.
Caim e Abel
Adão e Eva tiveram muitos filhos; entre outros, Caim  e Abel. Este era o predileto, bem apessoado, bom, dedicado e amava a Deus. Caim, pelo contrário, era um homem irascível, de mau gênio e invejoso.
O Gênesis não narra detalhes, mas eu imagino que a  história de Caim e de Abel tenha se dado do seguinte  modo:
Certa ocasião, Abel ofereceu um sacrifício a Deus: colocou frutos sobre um altar e ateou fogo a fim de consumi-los em louvor de Deus, tendo-se evolado bonita fumaça em direção ao céu.
Caim fizera também um altar, sobre o qual pusera  frutas podres, e a fumaça que subira era feia. Vendo  que o sacrifício de Abel era aceito por Deus e o dele rejeitado, ficou com inveja do irmão e, tomado de ódio,  matou-o.
Podemos imaginar quanto Adão e Eva sofreram com  isso. Nunca haviam visto uma pessoa morta, e estavam  agora diante do cadáver do filho predileto. E dirigiram  seus olhos para Caim, que estava com uma cara péssima, pois cometera um homicídio, um pecado que clama  ao Céu e brada a Deus por vingança. E era um homicídio com terrível agravante, pois se tratava de fratricídio.
Amaldiçoado por Deus, Caim começou a cumprir o  castigo que o Criador lhe impôs: andar por toda parte sem poder parar. De tempos em tempos, Adão e Eva  viam Caim meio desvairado passar, e talvez dizer-lhes: “Eu não posso parar, tenho que andar, andar, andar,  porque matei meu irmão…” E novamente se afundava pelo mato.
Para salvar o gênero humano, a própria Segunda Pessoa da Santíssima Trindade veio à Terra
Mas Deus queria salvar o gênero humano, e para isso  era preciso que alguém resgatasse o pecado de nossos  primeiros pais. A Segunda Pessoa da Santíssima Trindade deveria encarnar-Se e sofrer tudo quanto Nosso Senhor Jesus Cristo padeceu, para que até o fim do mundo ficassem abertas as portas da graça e do Céu para o  homem.
E os fiéis à comunicação de que viria um Salvador, um  Messias,  ficaram  esperando  e,  em  cada  nova  geração,  eles se perguntavam: “Virá o Messias? Será o filho de um  de nós?” E passaram-se milhares de anos quando, afinal,  numa manhã, uma Virgem estava rezando e o Anjo Gabriel Lhe aparece, dizendo-Lhe que Ela era cheia de graça, perfeita aos olhos de Deus.
O Messias nasceria d’Ela e, em última análise, perguntava-Lhe se concordava com isso. Sua resposta foi um assentimento sublime:
“Eis aqui a escrava do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra.”
Naquele momento, o Divino Espírito Santo interveio  em Nossa Senhora e o Verbo se encarnou e habitou entre nós.
Previsão do atroz sofrimento
Em todo presépio bem feito, o Menino Jesus aparece sorrindo, afável, como uma criança que está encantada em ver sua Mãe — que Mãe! Pode-se imaginar o encantamento d’Ela em ver seu Filho, com “F” maiúsculo;  que coisa incomparável! —, mas com os braços abertos,  em forma da Cruz.
Quer  dizer,  Ele  vinha  à  Terra ciente de que era para padecer o sofrimento da  Cruz.  Jesus  sabia  tudo  que  iria  sofrer  em  todos os dias de sua vida,  para salvar os homens.  Ele foi o ápice dos profetas, o Profeta perfeito; não só previa o que  acontecia, mas fazia o que  previa.
Há  composições  muito bonitas — São José era  carpinteiro  —  que  representam Jesus, já adolescentezinho,  trabalhando  com  o pai. Em certo momento,  Ele  apanha  dois  pedaços  de madeira formando uma  cruz  e  fica,  sozinho,  contemplando-a.
Outras  mostram  Nossa  Senhora,  na  casa  de  Nazaré,  olhando,  por  uma  porta  entreaberta,  Nosso  Senhor  Jesus  Cristo,  que  está numa sala vizinha rezando com os braços abertos em  cruz, compreendendo e pré sofrendo o que viria.
Início da vida pública
Ele passou trinta anos de  vida  particular  na  oração,  no recolhimento, junto com  São  José  e  Nossa  Senhora.  E nesse período faleceu São  José, que é o Patrono da boa  morte, porque morreu tendo  Nosso  Senhor  Jesus  Cristo  e Nossa Senhora alentandoo. Portanto, não se pode ter  melhor morte do que a dele.
Certo  dia,  Jesus  se  despede  de  Maria  Santíssima,  a qual compreende que Ele  vai para a sua vida pública.  Não será mais a vida do lar,  mas a do mundo; Ele vai começar a pregar, fazer milagres, converter pessoas, bem  como suscitar um entusiasmo e uma veneração indizíveis, que se manifestarão no Domingo de Ramos.
Mas também vai despertar a inveja, o ódio. Muitos viram-No chorar pela morte de Lázaro e depois, chegando  diante de seu sepulcro, dar a ordem: “Lázaro, venha para fora!” Lázaro levantou-se, provavelmente ainda todo  enfaixado com as tiras com que os judeus envolviam os  mortos, e desfez-se daquilo.
Coisa fantástica, pois afirma a Escritura que Lázaro estava havia quatro dias na sepultura e, conforme  disse Marta, já devia estar cheirando mal. Nosso Senhor mandou-o sair da sepultura, e ele assim o fez  em condições de perfeita saúde.
Podemos calcular a alegria de suas irmãs e o entusiasmo dos que seguiam a Nosso Senhor! Mas houve também ódio a Nosso Senhor, porque Ele era santo e pregava a virtude. Os maus odeiam o bem, a virtude, e a quem faz milagres para propagar o bem e a virtude.
Movidos por esse ódio, os maus combinaram entre si de matar Jesus.
Nosso Senhor celebra a Páscoa e chora sobre Jerusalém
Afinal, chega o momento. Era Páscoa, e Nosso Senhor  vai com os seus ao Cenáculo, a fim de celebrá-la. Ele institui a Sagrada Eucaristia e depois, com os Apóstolos, se  dirige cantando, como era costume entre os judeus, para  um lugar onde pudessem fazer oração. 
Chegam assim ao Horto das Oliveiras, depois de ter  passado por um local do qual viam de longe o templo  e a cidade de Jerusalém, sobre a qual Jesus havia chorado. Ele sabia perfeitamente que aquele templo seria destruído, e também a cidade, a respeito da qual fez  uma linda comparação: quantas vezes procurou reunir  sua população em torno d’Ele, como a galinha faz com  os pintainhos. Entretanto, eles não quiseram e veio o  castigo.
O lance mais pungente da Paixão
Começou, depois, a Paixão de Nosso Senhor, com sofrimentos inenarráveis. A meu ver, o mais doloroso ocorreu quando Ele se encontrou com Nossa Senhora, porque  A viu sofrer tudo quanto um coração de mãe pode padecer naquela situação, no meio daquela canalha vil. Ela sabia que Jesus estava sendo conduzido para a morte e seguiu-O, fidelíssima, até o cimo do Calvário, onde ficou aos  pés da Cruz até o momento de Ele morrer.
No alto da Cruz, quando os estertores das piores dores O atormentavam, Nosso Senhor fez ainda um ato boníssimo, convertendo o bom ladrão, que se chamava Dimas, e dizendo-lhe: “Hodie eris mecum in paradiso — Tu  estarás comigo hoje no Paraíso.” Foi a primeira canonização, e a Igreja o saúda como São Dimas. Ele havia sido um ladrão, um bandido, mas abria-se agora a era da  misericórdia.
Os últimos sofrimentos
Recentemente, médicos estudaram o que Nosso Senhor deve ter sofrido na Cruz. Cada um de seus pulsos  foi transpassado por um cravo, e não havia um suporte embaixo dos pés, como em geral os crucifixos apresentam. Seus  pés  também  estavam  atravessados  por  um cravo, que os prendia diretamente no madeiro da  Cruz.
Antes de ser crucificado, Nosso Senhor havia perdido  bastante sangue, mas no alto da Cruz perdia muito mais.  Quando sentia falta de ar, a fim de respirar melhor, Ele  se elevava apoiado nos cravos das mãos e dos pés, sofrendo com isso dores atrozes.
Nesse terrível tormento Jesus ainda disse: “Mulher,  eis aí teu filho!”, “Filho, eis aí tua Mãe.” Essas palavras  indicavam um grande perdão, porque São João Evangelista havia dormido no Horto das Oliveiras.
O fato é que São João, a partir daquele momento, passou a ser especialmente filho de Nossa Senhora. Ele era  parente muito chegado de Maria Santíssima, porque a  mãe dele era prima d’Ela. Mas não era filho. Filho ele  se tornou quando Nosso Senhor disse-lhe: “Filho, eis aí  tua mãe.” Aquele que horas antes fugira, recebia agora a  maior graça que se pode imaginar. 
E no auge das dores, Jesus exclamou: “Meu Deus,  meu Deus, por que me abandonaste?” Ele sabia que  não estava abandonado; era um clamor, pois seu sofrimento havia chegado ao auge. Depois inclinou a cabeça e expirou.
No alto da Cruz, Nosso Senhor tinha presente cada ato que praticamos
Nosso Senhor tinha ciência de tudo, do presente, passado e futuro, porque era o Homem-Deus. Conhecia todas as pessoas e, portanto, cada um de nós individualmente. No alto da Cruz, Ele teve em vista todos os pecados por nós cometidos, todos os nossos atos de virtude,  minhas palavras neste auditório e os que estão me ouvindo. E ofereceu seus sofrimentos e sua vida por cada um  de nós individualmente.
Jesus abriu o Céu para nossas almas. Continuamente nos concede graças, sua misericórdia desce sobre nós.
Ele vem ao nosso coração por meio da Sagrada Comunhão. Sua Mãe está rezando o tempo inteiro no Céu por  nós, como nossa Advogada.
O problema central de nossa vida...
Caso pequemos, arrependamo-nos imediatamente e,  por meio de Maria Santíssima, peçamos a Ele que nos  perdoe. Se for um pecado mortal, precisamos ir logo nos  confessar para que essa mancha repugnante e horrível se  apague de nossas almas, a fim de voltarmos à graça de  Deus. 
E  devemos  nos  compenetrar  de  que  o  problema  central  de  nossa  vida  consiste  em  praticarmos  cada  vez mais atos de virtude e sermos imitadores de Nosso Senhor Jesus Cristo, pela intercessão de Maria. E,  por outro lado, calcarmos aos pés o demônio, recusando as solicitações para o pecado que ele nos faz  para o pecado. E, confiando em Nossa Senhora, poderemos dizer: “Non peccabo in aeternum – Não pecarei  eternamente.”
Para  que  tudo  isto  não  se  apague  das  almas  dos  meus ouvintes — recordem-se de como o beneficiado tende a  se esquecer do benefício  recebido —, é preciso rezar a Nossa  Senhora,  pedindo-Lhe  que  isso  não  aconteça.  E  que  Ela  lhes dê as graças necessárias  e  superabundantes  a  fim  de  não  pecarem  mais.  Desse  modo,  suas vidas transcorrerão  na  contínua  amizade  de  Deus  e  de  Nossa Senhora, até o  momento  bem-aventurado  em  que  entregarem suas almas a Deus e  subirem para o Céu.
Esta  é  uma  introdução para esses dias de  meditação. 
 Plinio Correa de Oliveira - Extraído de conferência de 2/3/1991