Comentários ao Evangelho 4º Domingo da Páscoa – Ano B – Jo 10, 11-18
O mercenário, que não é
pastor e não é dono das ovelhas, vê o lobo chegar, abandona as ovelhas e foge,
e o lobo as ataca e dispersa. Pois ele é apenas um mercenário e não se importa
com as ovelhas.
Eu sou o bom pastor.
Conheço as minhas ovelhas, e elas me conhecem, assim como o Pai me conhece e eu
conheço o Pai. Eu dou minha vida pelas ovelhas.
Tenho ainda outras
ovelhas que não são deste redil: também a elas devo conduzir; escutarão a minha
voz, e haverá um só rebanho e um só pastor.
É por isso que meu Pai me
ama, porque dou a minha vida, para depois recebê-la novamente. Ninguém tira a
minha vida, eu a dou por mim mesmo; tenho poder de entregá-la e tenho poder de
recebê-la novamente; esta é a ordem que recebi de meu Pai”. (Jo
10, 11-18)
“O SENHOR É MEU PASTOR”
A propósito da cura do cego de nascença, e da
polêmica provocada por ela entre os fariseus, Jesus se revelou como o Bom
Pastor, que arrisca a vida por suas ovelhas. Foi esta uma das ocasiões nas
quais Ele exprimiu de modo mais tocante seu amor infinito por nós.
Deus, na sua inesgotável sabedoria, dispôs em perpétua ordem
e harmonia todos os seres, fazendo muitas vezes os inferiores símbolos dos
superiores. Assim, no sexto dia de sua obra, criou entre os animais a espécie
ovina, com o intuito de, no futuro, o cordeiro servir de título ao Redentor, o
Cordeiro de Deus. Conferiu características próprias aos rebanhos de ovelhas,
assim como ao relacionamento entre estas e seus pastores, para facilitar a
compreensão do amor entre o Fundador da Igreja e seus fiéis.
Na civilização de hoje, demasiadamente industrial e
planificada, causa agradável surpresa encontrar pelos campos rebanhos que nos
recordam aquela sociedade pastoril dos primeiros séculos da História. Alheios
às transformações técnicas e sociais, esses animais continuam a se comportar
como outrora. Impressiona observar sua sensibilidade à voz ou assobio de seu
guia.
Certa ocasião, estando em um ambiente campestre nas
cercanias do Palácio do Escorial, não muito distante de Madri (Espanha),
assisti a um “sermão” dirigido por um pastor a seu rebanho. As ovelhas ouviam
com atenção exemplar as admoestações sobre os cuidados que deveriam ter durante
a permanência naquele local. Terminada a “pregação”, ele as dispersou com um
simples bater de palmas. Bem mais tarde, convocou-as todas pela voz — chegando
a chamar algumas pelo nome próprio — e as fez retomar a estrada, rumo ao seu
redil. O fato me emocionou e me fez lembrar o Evangelho que devemos aqui
analisar: “As ovelhas o seguem, porque conhecem a sua voz” (Jo 10, 4).
Pedagogia divina
Entre os vários instintos do homem, o mais forte e
importante é o de sociabilidade. Aristóteles afirmava que, por natureza, o ser
humano é um animal político, ou seja, sociável. A apetência (e a necessidade)
dos homens de se relacionarem uns com os outros leva-os a se unirem, dando
sequência ao plano divino da Criação, pois Deus nos deu esse instinto
precisamente para estimular a constituição da vida em sociedade. Mas não foi
esta a única razão; antes de tudo, tinha Ele em vista seu próprio desejo de
entrar em contato com as almas.
Conforme explica o Catecismo da Igreja Católica, Deus “quer
comunicar sua própria vida divina aos homens, criados livremente por Ele, para
fazer deles, no seu Filho único, filhos adotivos. Ao revelar-se, Deus quer
tornar os homens capazes de responder-Lhe, de conhecê-Lo e de amá-Lo bem além
do que seriam capazes por si mesmos” (nº 52). Para levar adiante o “projeto
divino da Revelação”, a “pedagogia divina” consistiu, desde os primórdios da
humanidade, em preparar o homem por etapas para esse relacionamento com Ele,
cujo ápice ocorreria na encarnação, morte e ressurreição de Nosso Senhor Jesus
Cristo (cf. idem, nº 53).
Dessa pedagogia fazia parte essencial a linguagem simbólica.
Quiçá não tenha Deus escolhido melhor signo para exprimir os vínculos a serem
estabelecidos entre Jesus e nós do que a figura do pastor com seu rebanho.
Já nos primórdios do Antigo Testamento, há uma insistência
na figura do pastor (cf. Gn 4, 4 e 20), na pessoa de Abraão (Gn 12, 16), de Lot
(Gn 13, 5) e do próprio Rei Davi (1 Sam 17, 34-35). Aos poucos, a condução do
rebanho vai se tornando símbolo dos guias do povo de Deus, a ponto de a
Escritura referir-se a eles com estas palavras: “Dar-vos-ei pastores segundo o
meu coração, os quais vos apascentarão com inteligência e sabedoria”(Jr 3, 15).
Ou como neste trecho: “Filho do homem, profetiza contra os pastores de Israel;
dize-lhes, a esses pastores, este oráculo: eis o que diz o Senhor Javé: ai dos
pastores de Israel que só cuidam do seu próprio pasto. Não é seu rebanho que
devem pastorear os pastores? Vós bebeis o leite, vestis-vos de lã, matais as
reses mais gordas e sacrificais, tudo isso sem nutrir o rebanho. Vós não
fortaleceis as ovelhas fracas; a doente, não a tratais; a ferida, não a curais;
a transviada, não a reconduzis; a perdida, não a procurais; a todas tratais com
violência e dureza. Assim, por falta de pastor, dispersaram-se minhas ovelhas,
e em sua dispersão foram expostas a tornarem-se presa de todas as feras. Minhas
ovelhas vagueiam em toda parte sobre a montanha e sobre as colinas, elas se
acham espalhadas sobre toda a superfície da terra, sem que ninguém cuide delas
ou se ponha a procurá-las” (Ez 34, 2-6).
Porém, a figura do Pastor toma a plenitude de seu
significado no Ser por excelência, o próprio Deus: “Eis o que diz o Senhor
Javé: vou castigar esses pastores, vou reclamar deles as minhas ovelhas, vou
tirar deles a guarda do rebanho, de modo que não mais possam fartar-se a si
mesmos; arrancarei minhas ovelhas da sua goela, de modo que não mais poderão
devorá-las. Pois eis o que diz o Senhor Javé: vou tomar Eu próprio o cuidado
com minhas ovelhas, velarei sobre elas. Como o pastor se inquieta por causa de
seu rebanho, quando se acha no meio de suas ovelhas tresmalhadas, assim me
inquietarei por causa do meu; Eu o reconduzirei de todos os lugares por onde
tinha sido disperso num dia de nuvens e de trevas. Eu as recolherei dentre os
povos e as reunirei de diversos países, para reconduzi-las ao seu próprio solo
e fazê-las pastar nos montes de Israel, nos vales e nos lugares habitados da
região. Eu as apascentarei em boas pastagens, elas serão levadas a gordos
campos sobre as montanhas de Israel; elas repousarão sobre as verdes relvas,
terão sobre os montes de Israel abundantes pastagens. Sou Eu que apascentarei
minhas ovelhas, sou Eu que as farei repousar — oráculo do Senhor Javé. A ovelha
perdida, Eu a procurarei; a desgarrada, Eu a reconduzirei; a ferida, Eu a
curarei; a doente, Eu a restabelecerei, e velarei sobre a que estiver gorda e
vigorosa. Apascentá-las-ei todas com justiça. (...) E vós, minhas ovelhas, vós
sois homens, o rebanho que apascento. E Eu, Eu sou o vosso Deus — oráculo do
Senhor Javé” (Ez 34, 10-16; 31).
Jesus, o Bom Pastor
Por fim apareceu nos céus da História o Pastor arquetípico,
o Bom Pastor: “Eu irei em socorro de minhas ovelhas para poupá-las de serem
atiradas à pilhagem; e julgarei entre ovelha e ovelha: Para pastoreá-las suscitarei
um só pastor (...). Será ele quem as conduzirá à pastagem e lhes servirá de
pastor” (Ez 34, 22-23).
II – O Pastor por excelência
Jesus é o Pastor que deu a vida por seu rebanho; ademais,
sempre disposto a ir atrás da ovelha perdida e, encontrando-a, retornar alegre
e feliz com ela sobre os ombros; a tirá-la do valo, ainda que em dia de sábado.
Quem de nós pode afirmar nunca ter sido objeto da busca do Bom Pastor, às vezes
até em circunstâncias trágicas? Quem alguma vez não se sentiu ovelha desgarrada,
mas nos ombros de Jesus, sendo reconduzida ao aprisco?
É nesta perspectiva que se insere o Evangelho do 4º Domingo
da Páscoa
As circunstâncias: a cura do
cego de nascença
Essas palavras se prendem a um episódio antecedente, denso
de emocionante carga simbólica. Inicia-se ao incidir o olhar de Jesus sobre um
cego de nascimento. Era comum julgarem os judeus haver uma relação entre as
enfermidades e os pecados cometidos pelo doente, ou por seus parentes. Por isso
perguntaram os discípulos ao Senhor: “Mestre, quem pecou, este homem ou seus
pais, para que nascesse cego?” (Jo 9, 2). A resposta firme de Jesus e o
desenrolar dos acontecimentos subsequentes deitarão luz para melhor entendermos
o Evangelho de hoje: “Nem este pecou nem seus pais, mas é necessário que nele
se manifestem as obras de Deus” (Jo 9, 3). Tendo feito essa profética
afirmação, tomou a iniciativa de curar o cego.
Como não podia deixar de ser, o portentoso milagre causou
comoção entre todos os conhecidos do miraculado, levando-os a desejarem encontrar
“aquele homem que se chama Jesus” (Jo 9, 11).
O burburinho popular cresceu a ponto de conduzirem o
beneficiado diante dos fariseus. Narrado o ocorrido, constatou-se ter sido
realizada a cura em dia de sábado. Isto configurava um grande crime, condenado
pelos fariseus. Um violador da lei do sábado — portanto, um pecador — não podia
ser de Deus! Eis, finalmente, encontrada uma grave acusação contra aquele Homem
que tanto os perturbava. Todavia, esta conclusão entrava em choque frontal com
uma pergunta levantada por outros fariseus: como explicar que um tal prodígio
pudesse ser praticado por um pecador?
Em meio à dissensão perplexitante, a esperança de acharem
uma saída fez os maus se voltarem para o próprio ex-cego. Quiçá pudesse este
dizer algo que desabonasse inteiramente Jesus. Entretanto, iludiam-se por
completo. Aquela era uma ovelha que conhecia a voz de seu Pastor, e assim não
se deixava enganar pelos ladrões e salteadores. Convicto, afirmou ser Nosso
Senhor um profeta. Embaraçados, os inquiridores resolveram interrogar os pais
daquele homem, na esperança de provarem ter tido sempre vistas normais. Afinal,
desqualificar a testemunha é uma saída bem conhecida daqueles que se encontram
em apuros. Contudo, mais uma vez não conseguiram seu intento, pois o casal
confirmou ser seu filho cego de nascença, e sabiamente evitou quaisquer outros
comentários sobre o acontecido: “[Eles] temiam os judeus, pois os judeus tinham
ameaçado expulsar da sinagoga todo aquele que reconhecesse Jesus como o Cristo.
Por isso é que seus pais responderam: Ele tem idade, perguntai-lho” (Jo 9,
22-23).
O interrogatório final, em um ambiente de ansiedade e
fraude, acabou despertando indignação dos fariseus, por esbarrarem na robustez
de fé e honestidade do ex-cego. Havendo eles declarado não saberem de onde era
Jesus, “respondeu aquele homem: O que é de admirar em tudo isso é que não
saibais de onde ele é, e entretanto ele me abriu os olhos. Sabemos, porém, que
Deus não ouve a pecadores, mas atende a quem lhe presta culto e faz a sua
vontade. Jamais se ouviu dizer que alguém tenha aberto os olhos a um cego de
nascença. Se esse homem não fosse de Deus, não poderia fazer nada.
Responderam-lhe eles: Tu nasceste todo em pecado e nos ensinas?... E
expulsaram-no” (Jo 9, 30-34).
A Igreja é o redil, cuja
porta é Cristo
Após essa injusta conclusão de seu inquérito, não tardou o
antigo cego a se reencontrar com Jesus. Este, conhecendo desde toda a
eternidade aqueles fatos, perguntou-lhe se acreditava no Filho de Deus. Diante
de não poucos curiosos, o tal homem não só afirmou sua crença em Nosso Senhor,
mas também prosternou-se diante d’Ele e O adorou.
Essa bela e virtuosa atitude deixou emudecido o público
presente. O Divino Mestre aproveitou a ocasião para tirar todo o proveito do
episódio, e afirmou: “Vim a este mundo para fazer uma discriminação: os que não
vêem vejam, e os que vêem se tornem cegos” (Jo 9, 39).
A partir desse instante, entrando em contenda aberta com os
fariseus, Jesus passa a desenvolver a parábola narrada no Evangelho de hoje.
Começa por referir-se a um hábito comum, bastante conhecido entre os judeus: o
ladrão não entra pela porta do aprisco, mas “sobe por outro lugar” (Jo 10, 1).
O pastor, pelo contrário, utiliza-se tão-só dessa porta, fazendo ouvir sua voz
pelas ovelhas.
Não havendo os fariseus entendido essa alegoria, o Divino
Mestre declarou ser, Ele mesmo, a porta do aprisco.
Comentando com brilho esse trecho do Evangelho, a
Constituição Dogmática Lumen Gentium afirma: “A Igreja é o redil, cuja porta
única e necessária é Cristo. É o rebanho, do qual o próprio Deus anunciou que
seria o Pastor, e cujas ovelhas, embora governadas por pastores humanos, são
incessantemente conduzidas às pastagens e alimentadas pelo próprio Cristo, bom
Pastor e Príncipe dos pastores, que deu sua vida pelas ovelhas”(LG 6).
Um só rebanho e um só Pastor
Pelos antecedentes e por todo o contexto no qual ocorre, a
presente parábola leva-nos a compreender a divina excelência do Bom Pastor.
Jesus não só conhece como efetivamente ama suas ovelhas desde toda a
eternidade. Ele as criou, uma a uma, e as redimiu com seu próprio sangue,
elevando-as a participarem de sua vida. Ademais, deixou-se como alimento na
Eucaristia até a consumação dos séculos. Seu trato para com o rebanho atinge
extremos inimagináveis até mesmo pelo mais perfeito dos Anjos.
Através da Fé e em virtude da Graça, suas ovelhas, por
reciprocidade, conhecem-No, n’Ele esperam e operosamente O amam. Assim, Bom
Pastor e ovelhas relacionam-se de maneira semelhante ao convívio existente
entre as três pessoas da Santíssima Trindade, em um só Deus. Essa é a principal
razão de seu desejo-profecia: “Haverá um só rebanho e um só pastor” (Jo 10,
16).
Através da entrega de sua própria vida, sobre a qual Ele tem
um poder absoluto, obterá Jesus uma unidade entre Pastor e redil.
Também nós devemos ser
pastores...
Dispôs Deus que as figuras do cordeiro, do rebanho e do
pastor facilitassem ao homem a compreensão da necessidade do apostolado. Em sua
substância simbólica, elas reforçam princípios enunciados ao longo da Sagrada
Escritura: “E impôs a cada um deveres para com o próximo” (Ecli 17, 12).
Em relação a Jesus, somos cordeiros; é nossa obrigação moral
e religiosa reconhecer-Lhe a voz e seguir-lhe os passos. Mas somos também
muitas vezes chamados a representar o papel de pastores para com nossos irmãos,
dever de caridade, como nos ensina São Pedro: “Cada um, segundo o que recebeu,
comunique-o aos outros, como bons dispenseiros da multiforme graça de Deus” (1
Pe 4, 10). Caso assim não procedamos, seremos julgados como o servo mau e
preguiçoso da parábola dos talentos (cf. Mt 25, 14-30).
O trecho do Evangelho que acabamos de analisar constitui uma
premente conclamação para a participação efetiva, dedicada e entusiasmada de
todos os fiéis nas tarefas de apostolado. A obrigação de evangelizar não é
exclusiva dos religiosos, mas também de todo batizado. Por este sacramento,
cada um de nós é incorporado a uma sociedade espiritual — a Santa Igreja
Católica — regida pela Comunhão dos Santos, recebendo uma vocação geral de
apostolado e uma missão individual de expandir o Reino de Cristo. Mais
especialmente encontram-se concernidas nisto as associações e movimentos
católicos.
Para a realização dessa atividade, o campo de trabalho mais
indicado é a paróquia. Em outros termos, nada mais louvável e eficiente do que
contribuir para o revigoramento de nossas paróquias, esforçando-nos por incluir
neste âmbito todos aqueles que estejam a nosso alcance.
Recorramos à Mãe do Bom
Pastor
“Maria é a estrela na nova evangelização”, lembra-nos sempre
o Papa João Paulo II. Quem quiser ter sucesso nesse sublime empreendimento de
atrair seus próximos para o aprisco de Jesus Cristo, não pode deixar de colocar
seus trabalhos e sua própria pessoa sob a proteção e a orientação da Mãe do Bom
Pastor.
Nas catacumbas de Santa Priscila, em Roma, pode-se ver,
bem-conservada, uma pintura que representa Nosso Senhor como o Bom Pastor.
Significativamente, leva Ele aos ombros a ovelha perdida e caminha em direção a
sua Mãe, em cujas mãos vai entregá-la.
Peçamos a esse Coração Maternal e Imaculado que nos conduza
ao Bom Pastor, e assim possamos cumprir com santidade nossos deveres de apostolado
para com nossos irmãos.