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sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Evangelho – I Domingo da Quaresma - Mc 1, 12-15 - Ano B

Conclusão dos comentários ao Evangelho – I Domingo da Quaresma
Progredir no amor e no conhecimento
Para o cumprimento dessa obrigação, a Igreja nos orienta maternalmente através da liturgia deste domingo. Já a Oração do dia nos indica de certa maneira o caminho: “Concedei-nos, ó Deus onipotente, que, ao longo desta Quaresma, possamos progredir no conhecimento de Jesus Cristo e corresponder a seu amor por uma vida santa”.
Com efeito, precisamos “progredir no conhecimento de Jesus Cristo”, porque sendo Ele Deus e Homem verdadeiro é o arquétipo de todo o universo, conforme afirma São Paulo: “N’Ele foram criadas todas as coisas nos Céus e na Terra, as criaturas visíveis e as invisíveis” (Col 1, 16).
Mas basta conhecer? Não. Bem diz São João da Cruz: “No entardecer desta vida sereis julgados segundo o amor”.24 A mais profunda compreensão da doutrina deve servir, sobretudo, para aumentar a caridade em nós, de forma que melhor conhecendo a adorável Pessoa de Nosso Senhor, tenhamos maiores possibilidades de “corresponder a seu amor”.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Evangelho – I Domingo da Quaresma - Mc 1, 12-15 - Ano B

Continuação dos comentários ao Evangelho – I Domingo da Quaresma
II – O prólogo da pregação da Boa nova
O Evangelho deste primeiro domingo reporta-nos ao momento no qual dispunha-Se Cristo a iniciar sua missão de pregar a Boa Nova. Ao sair das águas do Jordão, logo após ser batizado por João, o Céu se abriu, o Espírito Santo desceu sobre Ele em forma de uma pomba e ouviu-se uma voz vinda do Alto: “Tu és o meu Filho bem-amado; em Ti ponho minha afeição” (Lc 3, 22).
Nesse instante, comenta Bento XVI, deu-se uma como que investidura do encargo messiânico do Filho do Homem. Foram-Lhe conferidas ali, para a História e perante Israel, a dignidade real e a sacerdotal. A partir desse momento a vida de Jesus está subordinada à missão para a qual Ele havia Se encarnado.9
O recolhimento precede a ação
“Naquele tempo, 12 o Espírito levou Jesus para o deserto”.
Após o Batismo, a primeira disposição do Espírito Santo foi de conduzir Jesus ao deserto, onde Ele permaneceu quarenta dias em regime de penitência, isolamento e oração.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Evangelho – I Domingo da Quaresma - Mc 1, 12-15 - Ano B

Comentário ao Evangelho – I Domingo da Quaresma
Naquele tempo, 12 o Espírito levou Jesus para o deserto. 13 E Ele ficou no deserto durante quarenta dias, e aí foi tentado por Satanás. Vivia entre animais selvagens, e os anjos O serviam. 14 Depois que João Batista foi preso, Jesus foi para a Galileia, pregando o Evangelho de Deus e dizendo: 15 ‘O tempo já se completou e o Reino de Deus está próximo. Convertei-vos e crede no Evangelho!’” (Mc 1, 12-15).
Adequar o nosso pensamento, desejos, ações e sentimentos conforme Nosso Senhor Jesus Cristo é o único meio de correspondermos condignamente ao amor que Deus manifesta por cada um de nós.
Mons. João Scognamiglio Clá Dias, EP

I – Um amor levado ao extremo limite
É insondável o amor do Criador em relação a cada um de nós em particular. Por isso, às vezes, nos confunde a consideração de todos os benefícios que d’Ele recebemos.
Podendo simplesmente permanecer em sua plena e eterna felicidade, quis Deus criar o universo, com o objetivo de manifestar sua infinita bondade: “Ele criou por bondade. Não necessitava de coisa alguma daquilo que fez”1 — ensina Santo Agostinho.
A todos os homens e mulheres, Ele deu o ser, escolhendo-os um a um dentre as infinitas criaturas racionais que poderia criar. Ademais, nos redimiu do pecado, nos sustenta e favorece com seus dons, nas mais variadas circunstâncias. Mas, sobretudo, dá-nos a oportunidade de participar de sua vida divina já nesta Terra, como primícias da felicidade sem fim que nos está reservada no Céu, em inefável convívio com a Santíssima Trindade.
Deus faz aliança com os homens
Em contrapartida a tanta bondade, repete-se invariavelmente uma constante no comportamento dos homens: em determinado momento, eles se desviam dos caminhos traçados pelo Criador; a Providência, então, intervém a fim de evitar sua perdição, proporcionando-lhes os meios necessários para a salvação. Assim, quando Adão e Eva cometeram o primeiro pecado, Deus os castigou com a expulsão do Paraíso, mas fez ao mesmo tempo uma aliança com o gênero humano, prometendo-lhe a Redenção e o restabelecimento do estado de graça perdido.2
Contudo, não tardaram os homens a recair no pecado. Logo depois de nossos primeiros pais começarem a povoar o orbe com sua descendência, o Senhor constatou “o quanto havia crescido a maldade das pessoas na Terra e como todos os projetos dos seus corações tendiam para o mal” (Gn 6, 5). Arrependido, então, de ter criado o gênero humano, o Senhor o teria extirpado por completo da face da Terra se Noé não encontrasse graça diante de seus olhos (cf. Gn 6, 8).
Assim, conforme narra a primeira leitura deste domingo (Gn 9, 8-15), terminado o terrível castigo do Dilúvio, Deus abençoou Noé e seus filhos, e estabeleceu com eles e com sua descendência uma aliança que “permanece em vigor durante todo o tempo das nações, até a proclamação universal do Evangelho”.3
Essa aliança será mais tarde renovada com Abraão, em quem “serão abençoadas todas as famílias da Terra” (Gn 12, 3); através da Lei de Moisés, no Sinai (cf. Ex 19, 5-6); ou na promessa messiânica feita a Davi (cf. II Sm 8, 16), para citar apenas alguns dos principais episódios da história da Salvação.
Cristo, auge da história da Salvação
Passam-se os séculos e a humanidade atinge um auge de decadência que marca simultaneamente o fim do Antigo Testamento e a “plenitude dos tempos” de que nos fala o Apóstolo (Gal 4, 4). Jesus cumpre de maneira superabundante as promessas feitas aos patriarcas e profetas, assumindo a humana natureza sem deixar de ser Deus. Culmina, assim, com uma perfeição toda divina, a história da Salvação.
A Encarnação do Verbo é um mistério que ultrapassa por completo nossa capacidade intelectiva. Para tentar compreendê-lo em alguma medida, imaginemos um anjo nos propondo assumir a natureza de uma minhoca, sem deixarmos a condição humana, com a missão de salvar da morte todas as minhocas do mundo. Qual seria nossa resposta?
Ora, a diferença entre um homem e uma minhoca é insondavelmente menor do que a existente entre Deus e as criaturas racionais. No primeiro caso, há uma desproporção enorme; no segundo, nem sequer se pode falar de desproporção, porque a distância é infinita. Entretanto, a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade assumiu a natureza humana para nos salvar, manifestando por nós um amor extraordinário, fora de toda medida.
De uma “loucura” de amor nasce a Santa Igreja
No alto do Calvário, a bondade e a misericórdia do Verbo Encarnado pelos pecadores são levadas, por assim dizer, até à loucura (cf. I Cor 1, 18). E São Pedro nos lembra, na segunda leitura deste domingo: “Cristo morreu, uma vez por todas, por causa dos pecados, o justo pelos injustos, a fim de nos conduzir a Deus. Sofreu a morte na sua existência humana, mas recebeu nova vida pelo Espírito. No Espírito, Ele foi também pregar aos espíritos na prisão, aos que haviam sido desobedientes outrora, como nos dias em que Noé construía a arca” (I Pd 3, 18-20a).
Na Aliança estabelecida por Deus com a humanidade após o Dilúvio, Ele prometeu não mais castigar a Terra por meio das águas (Gn 9, 11). Ora, bem se poderia dizer que a história da Salvação culmina num “dilúvio de Sangue”, de acordo com a expressiva fórmula de São Luís Maria Grignion de Montfort.4 Porque — se não bastassem a flagelação, a coroação de espinhos e todos os sofrimentos ao caminho do Calvário — Ele permitiu que, na Cruz, uma lança Lhe perfurasse o peito sagrado. Verteram-se nessa hora as últimas gotas de sangue e linfa que ainda restavam no seu Sacratíssimo Coração. Nasceu assim o Corpo Místico do qual Cristo é a Cabeça. “No Calvário, Ele completa sua imolação e faz nascer, em meio às mais espantosas torturas físicas e morais, a Igreja que Ele havia tão laboriosamente preparado e instituído. [...] É, pois, a Igreja que, segundo a doutrina dos Padres, sai do Lado aberto do Salvador e, por assim dizer, é dada à luz por Ele”.5
No mesmo sentido comenta São João “Pala da Santa Trindade” - por Fra Angélico, Convento de São Marcos, Florença (Itália) Crisóstomo: “Aquele sangue e aquela água são símbolos do Batismo e dos mistérios. De um e de outra nasce a Igreja, ‘pelo banho da regeneração e da renovação no Espírito Santo’ (Tt 3, 5), pelo Batismo e pelos mistérios”.6 E o Concílio Vaticano II afirma serem o começo e o crescimento da Igreja “significados pelo sangue e pela água que saíram do lado aberto de Jesus crucificado”7; e que “do lado de Cristo dormindo na Cruz é que nasceu o admirável Sacramento de toda a Igreja”.8

Continua no próximo post

domingo, 15 de fevereiro de 2015

Evangelho – I Domingo da Quaresma - Mc 1, 12-15 - Ano B

Comentário ao Evangelho – I Domingo da Quaresma
Adequar o nosso pensamento, desejos, ações e sentimentos conforme Nosso Senhor Jesus Cristo é o único meio de correspondermos condignamente ao amor que Deus manifesta por cada um de nós.
Mons. João Scognamiglio Clá Dias, EP
Naquele tempo, 12 o Espírito levou Jesus para o deserto. 13 E Ele ficou no deserto durante quarenta dias, e aí foi tentado por Satanás. Vivia entre animais selvagens, e os anjos O serviam. 14 Depois que João Batista foi preso, Jesus foi para a Galileia, pregando o Evangelho de Deus e dizendo: 15 ‘O tempo já se completou e o Reino de Deus está próximo. Convertei-vos e crede no Evangelho!’” (Mc 1, 12-15).
I – Um amor levado ao extremo limite
É insondável o amor do Criador em relação a cada um de nós em particular. Por isso, às vezes, nos confunde a consideração de todos os benefícios que d’Ele recebemos.
Podendo simplesmente permanecer em sua plena e eterna felicidade, quis Deus criar o universo, com o objetivo de manifestar sua infinita bondade: “Ele criou por bondade. Não necessitava de coisa alguma daquilo que fez”1 — ensina Santo Agostinho.
A todos os homens e mulheres, Ele deu o ser, escolhendo-os um a um dentre as infinitas criaturas racionais que poderia criar. Ademais, nos redimiu do pecado, nos sustenta e favorece com seus dons, nas mais variadas circunstâncias. Mas, sobretudo, dá-nos a oportunidade de participar de sua vida divina já nesta Terra, como primícias da felicidade sem fim que nos está reservada no Céu, em inefável convívio com a Santíssima Trindade.
Deus faz aliança com os homens
Em contrapartida a tanta bondade, repete-se invariavelmente uma constante no comportamento dos homens: em determinado momento, eles se desviam dos caminhos traçados pelo Criador; a Providência, então, intervém a fim de evitar sua perdição, proporcionando-lhes os meios necessários para a salvação. Assim, quando Adão e Eva cometeram o primeiro pecado, Deus os castigou com a expulsão do Paraíso, mas fez ao mesmo tempo uma aliança com o gênero humano, prometendo-lhe a Redenção e o restabelecimento do estado de graça perdido.2
Contudo, não tardaram os homens a recair no pecado. Logo depois de nossos primeiros pais começarem a povoar o orbe com sua descendência, o Senhor constatou “o quanto havia crescido a maldade das pessoas na Terra e como todos os projetos dos seus corações tendiam para o mal” (Gn 6, 5). Arrependido, então, de ter criado o gênero humano, o Senhor o teria extirpado por completo da face da Terra se Noé não encontrasse graça diante de seus olhos (cf. Gn 6, 8).
Assim, conforme narra a primeira leitura deste domingo (Gn 9, 8-15), terminado o terrível castigo do Dilúvio, Deus abençoou Noé e seus filhos, e estabeleceu com eles e com sua descendência uma aliança que “permanece em vigor durante todo o tempo das nações, até a proclamação universal do Evangelho”.3
Essa aliança será mais tarde renovada com Abraão, em quem “serão abençoadas todas as famílias da Terra” (Gn 12, 3); através da Lei de Moisés, no Sinai (cf. Ex 19, 5-6); ou na promessa messiânica feita a Davi (cf. II Sm 8, 16), para citar apenas alguns dos principais episódios da história da Salvação.

Comentário ao Evangelho –  Mt 6, 1-6.16-18 quarta-feira de cinzas

 Comentário ao Evangelho – Mt 6, 1-6.16-18 quarta-feira de cinzas
1 “Guardai-vos de fazer as boas obras diante dos homens, com o fim de serdes vistos por eles. Do contrário, não tereis direito à recompensa do vosso Pai que está nos Céus. 2 Quando, pois, dás esmola, não faças tocar a trombeta diante de ti, como fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas, para serem louvados pelos homens. Em verdade vos digo que já receberam a sua recompensa. 3 Mas, quando dás esmola, não saiba a tua mão esquerda o que faz a tua direita, 4 para que a tua esmola fique em segredo, e teu Pai, que vê o que fazes em segredo, te pagará.
5 Quando orardes, não sejais como os hipócritas, que gostam de orar em pé nas sinagogas e nos cantos das praças, a fim de serem vistos pelos homens. Em verdade vos digo que já receberam a sua recompensa. 6 Tu, porém, quando orares, entra no teu quarto, e, fechada a porta, ora a teu Pai; e teu Pai, que vê o que se passa em segredo, te dará a recompensa.
16 Quando jejuardes, não vos mostreis tristes como os hipócritas, que desfiguram o rosto para mostrar aos homens que jejuam. Na verdade vos digo que já receberam a sua recompensa. 17 Mas tu, quando jejuares, unge a tua cabeça e lava o teu rosto, 18 a fim de que não pareça aos homens que jejuas, mas sim a teu Pai, que está presente no oculto, e teu Pai, que vê no oculto, te dará a recompensa” (Mt 6, 1-6.16-18).
Comentário ao Evangelho – Quarta-Feira de Cinzas
O centro deve estar sempre ocupado por Deus
No jejum, na oração ou na prática de qualquer boa obra, não se pode erigir como fim último o benefício que daí possa nos advir, mas sim a glória d’Aquele que nos criou. Pois tudo quanto é nosso — exceção feita das imperfeições, misérias e pecados — pertence a Deus.
Tempo de penitência e reconciliação
Por meio do Ciclo Litúrgico, com sabedoria e didática, rememora a Igreja ao longo do ano os mais importantes episódios da existência terrena do Verbo Encarnado. As solenidades da Anunciação e do Natal, as comemorações do Tríduo Pascal e da Ascensão de Nosso Senhor aos Céus, entre outras, compõem um variado caleidoscópio, apresentando à piedade dos fiéis diferentes aspectos da infinita perfeição de nosso Redentor. As graças dispensadas pela Providência em cada um desses momentos históricos revivem, de certo modo, e se derramam sobre aqueles que devotamente participam dessas festividades.
Precedendo as solenidades mais importantes — o Nascimento do Salvador e sua Paixão, Morte e Ressurreição — a Igreja destina dois períodos de preparação: o Advento e a Quaresma, pois convém que, para celebrar tão elevados e sublimes mistérios, os fiéis purifiquem suas almas das misérias e apegos, tornando-as mais aptas a receber as dádivas celestes.
Na Quarta-Feira de Cinzas têm início os quarenta dias que antecedem a Semana Santa. As três leituras desse dia — uma passagem do Profeta Joel, um trecho de uma epístola de São Paulo e outro do Evangelho — nos falam da necessidade do jejum e da penitência como meios de melhor combater os vícios, pela mortificação do corpo, e propiciar a elevação da mente a Deus. Pois, segundo nos ensina o Papa São Leão Magno, “nós nos mortificamos para extinguir em nós a concupiscência. E o resultado da mortificação deve ser o abandono das ações desonestas e dos desejos injustos”.1
Como mais adiante veremos, os textos litúrgicos em questão fazem referência, sobretudo, a um tipo de penitência que agrada especialmente a Deus e que é essencial para nossa vida espiritual. Trata-se de evitar os exageros do amor próprio, procurando não atrair as atenções dos outros sobre si mesmo, de maneira que a alma, limpa e ornada da virtude da humildade, ofereça ao Senhor um sacrifício de agradável perfume.
“Lembra-te, homem, de que és pó”
De forma cogente, a liturgia da Quarta-Feira de Cinzas recorda-nos também nossa condição de mortais: “Memento homo quia pulvis es et in pulverem reverteris — Lembra-te, homem, de que és pó e ao pó hás de voltar”, diz, de modo categórico, uma das duas fórmulas usadas pela Igreja para a imposição das cinzas.2 Após a cerimônia, a fronte dos fiéis fica marcada por um traço escuro cujo aspecto trágico e carente de beleza parece proclamar: “De uma hora para outra, podemos ser levados pela morte, retornando ao pó!”.
A consideração da árdua passagem desta vida para a eternidade muitas vezes nos inquieta. Entretanto, tal pensamento é altamente benfazejo para compenetrar-nos da necessidade de evitar o pecado que, sem o arrependimento e o imerecido perdão, poderá fechar-nos, para sempre, as portas do Céu: “Lembra-te de teu fim, e jamais pecarás” (Eclo 7, 40). A esse propósito, com propriedade, Dom Próspero Gueranger recomenda: “Se quisermos perseverar no bem, onde a graça de Deus nos restabeleceu, sejamos humildes, aceitemos a sentença, e não consideremos a vida senão como uma caminhada mais ou menos longa que termina no túmulo”.3
“Deixai-vos reconciliar com Deus”
Na própria primeira leitura de hoje, incentiva-nos São Paulo a vivermos na graça de Deus: “Em nome de Cristo, vos rogamos: reconciliai-vos com Deus!” (II Cor, 5, 20). E com toda razão, pois o pecado nos afasta de Deus, tornando necessária a reconciliação. A Doutrina Católica nos ensina que nem mesmo os incomensuráveis méritos de Nossa Senhora somados aos dos Anjos e dos Bemaventurados, e aos de todos aqueles que poderiam ter sido criados e não o foram, seriam suficientes para reparar a ofensa de um só pecado venial. Quanto mais em se tratando de uma falta grave!
Só mesmo o Adorabilíssimo Sangue de Deus teria mérito infinito para redimir as ofensas cometidas pelos homens, desde Adão e Eva, como, com a elevação de linguagem de sempre, mostra-nos São Paulo: “Aquele que não conheceu o pecado, Deus O fez pecado por nós, para que n’Ele nós nos tornássemos justiça de Deus” (II Cor 5, 21). A Encarnação da Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, com sua Paixão e Morte na cruz, foi o meio escolhido para restituir à humanidade transviada a plena amizade com Deus. E, por serem insuperáveis as operações divinas, tal foi a superabundância de graça conquistada pelo sacrifício do Calvário que, mesmo a soma de todas as possíveis faltas dos homens jamais tornará insuficientes os méritos infinitos do Preciosíssimo Sangue de Cristo.4
Se Jesus não tivesse assumido sobre Si a dívida contraída por nossos primeiros pais, por meio da oblação de seu Corpo, impossível seria nossa reconciliação com Deus 5 e teríamos para sempre fechadas as portas do Céu.
Amor próprio, oração e jejum
Na passagem do Evangelho que hoje analisamos, vemos o Divino Mestre tomar como exemplo didático uma cena característica daqueles tempos. Sob uma perspectiva histórica, Ele censura uma atitude corrente, sobretudo entre os fariseus. Mas, sendo eterna a palavra de Deus, contém ela uma lição para os homens de todos os séculos.
O principal sorvedouro por onde se escoam os méritos
1“Guardai-vos de fazer as boas obras diante dos homens, com o fim de serdes vistos por eles. Do contrário não tereis direito à recompensa do vosso Pai que está nos Céus”.
Difícil era fariseus serem alheios à hipocrisia. Levados por um supino orgulho, voltavam-se para si mesmos a ponto de se esquecer de Deus, fazendo suas boas obras com o intuito de angariar prestígio “diante dos homens”.
O defeito apontado por Nosso Senhor neste versículo era comum entre eles, e infelizmente não é raro também em nossos dias. Trasbordam das Sagradas Escrituras conselhos sobre esse pecado capital, raiz de muitos vícios, principalmente no livro do Eclesiastes: “Vaidade das vaidades, tudo é vaidade” (Ecl 1, 2). É essa a preocupação do Divino Mestre.
A respeito dos atos humanos podemos afirmar que alguns são neutros, como por exemplo, cantar ou pintar. A substância e o mérito lhes advêm da intenção e da finalidade com as quais os executamos. Outros são bons de per se, por estarem ordenados pela razão a um objetivo honesto. Mas, segundo o Doutor Angélico, “pode acontecer que um ato em si mesmo virtuoso se torne, eventualmente, vicioso, devido a certas circunstâncias”.6
Ora, a vaidade macula muitas vezes nossos atos de virtude e nos rouba os méritos. Pois, como sublinha o Cardeal Gomá, ela é “um perniciosíssimo inimigo das boas obras: praticá-las com o escopo de ser visto e admirado pelos outros, é perder a recompensa que lhes corresponde quando são feitas com reta intenção”.7
Afirmam os mestres da vida espiritual ser a vaidade um vício tão arraigado no homem que, por assim dizer, somente o abandona meia hora depois de sua morte. Para vencêlo, requer-se muita oração, paciência e esforço. Oração, porque por meio dela se obtêm as graças para combatê-lo. Paciência e esforço, porque devemos lutar contra ele dia e noite, impedindo-o de instalar-se em nossa alma, como recomenda São João Crisóstomo: “É necessário prestar muita atenção em sua entrada, do mesmo modo como alguém põe-se em guarda contra uma fera prestes a atacar quem não está vigilante”.8
Poderíamos, então, usar uma expressão forte, mas muito verdadeira: a vaidade é o principal sorvedouro por onde se escoam os méritos das nossas orações e boas obras. Ela é também um veneno para a alma, porque a deixa desprovida de forças para enfrentar as tentações e, portanto, exposta a toda espécie de fraquezas e capitulações.
Convém notar, de outro lado, que ao dizernos: “Guardai-vos de fazer as boas obras diante dos homens, com o fim de serdes vistos por eles”, não nos convida o Mestre a sempre nos ocultarmos para fazer o bem, pois praticar a justiça diante dos homens pode ser motivo de edificação para o próximo e de glória para o Criador, como sublinha o grande Bossuet: “Ele não nos proíbe de praticar a justiça cristã em todas as oportunidades, para edificação do próximo; pelo contrário, disse Ele: ‘Brilhe vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem vosso Pai que está nos Céus’. [...] Edificai o próximo, por vossas ações externas, e tudo em vós, até mesmo um piscar de olhos, seja ordenado, mas tudo se faça com naturalidade e simplicidade, visando dar glória a Deus”.9
Dar esmola visando o aplauso
2 “Quando, pois, dás esmola, não faças tocar a trombeta diante de ti, como fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas, para serem louvados pelos homens. Em verdade vos digo que já receberam a sua recompensa”.
Não tendo recebido ainda a seiva regeneradora do Cristianismo, na humanidade daquela época imperava de tal modo o egoísmo, que o dar esmola era prática incomum. Quem o fazia, julgava-se merecedor do aplauso dos demais, por sua pretensa bondade. Daí ser costume dar esmola “com muita ostentação”.10
Mais ainda: “Parece que, para excitar a generosidade, estabeleceu-se o hábito de proclamar o nome dos doadores [...] e chegava-se mesmo a honrá-los, oferecendo-lhes os primeiros lugares na sinagoga”.11
Ora, ensina Nosso Senhor, nesta passagem do Evangelho, que quem dá esmola para obter a aprovação dos outros pode considerar-se bem pago pelos elogios assim obtidos. Não lhe cabe esperar um prêmio sobrenatural, pois, conforme acentua o padre Tuya, “Deus recompensa em justiça sobrenatural somente aquilo que se faz sobrenaturalmente por amor a Ele, assim como repugna-Lhe esse censurável procedimento que é a hipocrisia farisaica”.12
Quem, entretanto, dá esmola discretamente, apenas diante de Deus e por amor a Deus, este sim, d’Ele receberá a recompensa.
O prêmio, devemos esperá-lo apenas de Deus
3 “Mas, quando dás esmola, não saiba a tua mão esquerda o que faz a tua direita, 4 para que a tua esmola fique em segredo, e teu Pai, que vê o que fazes em segredo, te pagará”.
 No versículo anterior, Nosso Senhor recrimina aqueles que visam a vanglória na prática da esmola; neste, censura-nos o comprazimento vaidoso ao realizarmos as boas obras. Para combater esse defeito, precisamos esforçar-nos para não deter nossa atenção naquilo que fazemos de bom. “Se fosse possível — comenta Bossuet —, seria necessário esconder de vós mesmos o bem que fazeis; procurai ocultar a vossos olhos pelo menos o seu mérito; [...] empenhai-vos na prática da boa obra a ponto de jamais vos preocupar com o que dela vos resultará: deixai tudo por conta de Deus, assim só Ele vos verá, vos ocultareis de vós mesmos”.13
Na mesma linha opina o Cardeal Gomá: “Se possível fosse, até nós deveríamos ignorar nossas esmolas. A recompensa, devemos esperá-la somente de Deus”.14
Complementando essas afirmações, esclarece Maldonado: “Não há culpa em ser visto pelos outros quando se faz o bem, mas sim em desejar ser visto. Também não há culpa em querer ser visto, desde que não seja para conseguir o elogio dos homens. ‘Brilhe vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem vosso Pai que está nos Céus’”.15
É vã a oração de quem visa as exterioridades
5 “Quando orardes, não sejais como os hipócritas, que gostam de orar em pé nas sinagogas e nos cantos das praças, a fim de serem vistos pelos homens. Em verdade vos digo que já receberam a sua recompensa”.
Naquela época, era dever de todo varão judeu rezar três vezes por dia: de manhã, coincidindo com o sacrifício matutino, ao meio-dia e na hora do sacrifício vespertino. As preces eram feitas geralmente de pé, com os braços erguidos para o Céu, como a simbolizar o dom que se esperava receber.16
As pessoas costumavam orar no interior das próprias casas. Os fariseus, porém, escolhiam para tal os lugares mais visíveis nas sinagogas ou nas praças públicas. Ali gesticulavam e repetiam de cor grande número de orações, de forma a impressionar quem por lá passava. Inútil dizer que eram vãs essas preces, pois eles já tinham obtido o que almejavam: o aplauso dos transeuntes.
Não caiamos, entretanto, no erro de pensar que Nosso Senhor condena toda oração feita em público. O Divino Mestre recrimina neste versículo apenas a preocupação com as exterioridades, tão frequente nos homens daquele tempo, e a atitude genérica das pessoas que rezam com ostentação ou procurando unicamente o louvor dos semelhantes.
Na nossa vida de piedade, devemos procurar ser discretos
6 “Tu, porém, quando orares, entra no teu quarto, e, fechada a porta, ora a teu Pai; e teu Pai, que vê o que se passa em segredo, te dará a recompensa”.
A essência da oração, ensina o Catecismo, é a “elevação da mente a Deus”.17 Assim, é possível a qualquer um permanecer em oração inclusive durante os atos comuns da vida, realizando-os com o espírito voltado para o Céu.
Portanto, para rezar não é preciso tomar a atitude espalhafatosa dos fariseus. Devemos, pelo contrário, ser discretos nas manifestações externas de nossa piedade particular, evitando gestos ou palavras que ponham em realce nossa própria pessoa.
Mas se, apesar disso, nossa devoção for notada pelos outros, não devemos nos perturbar, tranquilizemo-nos com este ensinamento de Santo Agostinho: “Não há pecado em ser visto pelos homens, mas sim em proceder com a finalidade de por eles ser visto”.18
O jejum transformado em um ato de caráter social
16 “Quando jejuardes, não vos mostreis tristes como os hipócritas, que desfiguram o rosto para mostrar aos homens que jejuam. Na verdade vos digo que já receberam a sua recompensa”.
O espírito oriental, em sua riqueza de expressividade, é propenso a atitudes dramáticas, por vezes bonitas, mas que, nas práticas religiosas, podem extrapolar os padrões normais. Assim acontecia com os fariseus que, ao jejuar, colocavam cinza na cabeça, não penteavam a barba e até pintavam o rosto para dar ideia de tristeza, ostentando uma fisionomia de tragédia.19 Tinham transformado o jejum em um ato de caráter social, uma encenação, para convencer os outros de sua pretendida virtude. E não receavam recorrer a todos os meios disponíveis para atingir esse objetivo.
Uma vez mais, Nosso Senhor os reprova por se servirem da aparência de justiça para impressionar os outros, e afirma terem sido já recompensados pelo seu jejum.
A propósito deste versículo, cabe uma aplicação a nós: ao fazermos algo difícil, nunca procuremos atrair a atenção dos demais, mendigando alguns elogios. Assim procediam muitos santos que, ao praticar severos jejuns, mortificações e austeridades assustadoras, apresentavam-se, por meio de uma santa dissimulação, com uma aparência exterior alegre e jovial.
Alegria e asseio ao praticar a virtude
17 “Mas tu, quando jejuares, unge a tua cabeça e lava o teu rosto, 18 a fim de que não pareça aos homens que jejuas, mas sim a teu Pai, que está presente no oculto, e teu Pai, que vê no oculto, te dará a recompensa”.
Além de tornar claro o quanto todas as nossas ações devem ser realizadas em função de Deus, Jesus ressalta aqui a fundamental importância da limpeza para a criatura humana. Devemos primar pelo asseio corporal como reflexo da pureza que desejamos para nosso espírito. E aliando uma apresentação impecável às boas ações, ajudaremos a manifestar que a verdadeira felicidade se encontra na prática da virtude.
Quanto ao conselho de ungir a cabeça, explica São Jerônimo: “Trata-se aqui do costume que havia na Palestina, de se ungir a cabeça nos dias de festa”. E acrescenta que assim, “o Senhor nos ordena que nos manifestemos contentes e alegres quando jejuarmos”.20
A Quaresma nos convida a crescer em humildade
O Evangelho da Quarta-Feira de Cinzas nos apresenta o espírito com que se deve viver a Quaresma: não fazer boas obras com vistas a obter a aprovação dos outros, não ceder ao orgulho nem à vaidade, mas procurar em tudo agradar somente a Deus.
No jejum, na oração ou na prática de qualquer boa obra, não se pode erigir como fim último o benefício que daí possa nos advir, mas sim a glória d’Aquele que nos criou. Pois tudo quanto é nosso — exceção feita das imperfeições, misérias e pecados — pertence a Deus. E também nossos méritos, pois é o próprio Jesus quem afirma: “Sem Mim, nada podeis fazer”! (Jo 15, 5).
Assim, se tivermos a graça de praticar um ato bom, devemos imediatamente reportá-lo ao Criador, restituindo-Lhe os méritos, pois estes Lhe pertencem, e não a nós. “Quem se gloria, glorie-se no Senhor” (I Cor 1, 31), adverte-nos o Apóstolo.
Pelo sacerdócio comum a todos os batizados,21 cada fiel é chamado, em determinadas circunstâncias, a atuar como mediador das graças que vêm de Deus para benefício dos outros, e dos louvores que deles se elevam ao trono do Altíssimo. Nessa ocasião, cuidemos de não nos apropriarmos de nada, pois tudo quanto possuímos de virtude, bondade ou beleza — tanto as faculdades da alma quanto as qualidades corporais e o desenvolvimento de nosso ser físico, intelectual e moral —, tudo isso provém de Deus.
Santa Teresa de Jesus assim define a humildade: “Deus é a suma verdade, e a humildade consiste em andar na verdade, pois de grande importância é não ver coisa boa em si mesmo, mas sim a miséria e o nada”.22
Reconheçamos os benefícios que Deus nos dá e por eles rendamos-Lhe graças, não nos colocando jamais como objeto desse louvor, julgando sermos nós a fonte de qualquer virtude ou qualidade.
Neste início de Quaresma, procuremos, mais ainda do que a mortificação corporal, aceitar o convite que a Liturgia sabiamente nos faz, combatendo o amor próprio com todas as nossas forças. “Procurai o mérito, procurai a causa, procurai a justiça; e vede se encontrais outra coisa que não seja a graça de Deus”.23
Só estarão à direita de Nosso Senhor Jesus Cristo, no dia do Juízo Final, aqueles que tiverem vencido o orgulho e o egocentrismo, reconhecendo que “todo dom precioso e toda dádiva perfeita vêm do alto” (Tg 1, 17). Pois o homem tem diante de si apenas dois caminhos: ou amar a Deus sobre todas as coisas, até o esquecimento de si; ou amar-se a si próprio sobre todas as coisas, até o esquecimento de Deus.24 Não existe um terceiro amor.
Saibamos, portanto, aproveitar este Tempo da Quaresma para crescermos na humildade e tomarmos consciência clara da nossa limitação, uma vez que “o homem não pode receber coisa alguma, se não lhe for dada do Céu” (Jo 3, 27).
Sirvam-nos de estímulo estas confortadoras palavras de um célebre guia espiritual, o padre Reginald Garrigou-Lagrange, OP: “Quanto mais nossa alma progredir na vida divina da graça, mais ela será uma imagem viva da Santíssima Trindade. No início de nossa existência, o egoísmo nos faz pensar especialmente em nós e a nos amarmos, atribuindo tudo a nós. Se, porém, formos dóceis às inspirações do Alto, chegará o dia em que pensaremos sobretudo, não em nós mesmos, mas em Deus, e em que, a propósito de todas as coisas, agradáveis ou penosas, O amaremos mais do que a nós e quereremos constantemente levar as almas para Ele”25.
16 Cf. TUYA, OP, op. cit., p.129. Muito interessante é a proposta que fazem os professores de Salamanca, de traduzir a palavra grega hestótes por “com pose” (em lugar de “de pé”), observando, acertadamente, que “com pose” estaria mais de acordo com o contexto desta passagem.
17 Catecismo da Igreja Católica, n.2559.
18 SANTO AGOSTINHO. De sermone Domini, 2, 3.
19 Cf. TUYA, OP, op. cit., p.151152; GOMÁ Y TOMÁS, op. cit., p.191.
20 SÃO JERONIMO, apud SÃO TOMÁS DE AQUINO, Catena Aurea.
22 Cf. SANTA TERESA DE JESUS. Las Moradas. Morada sexta, c.10, § 6-7.
23 SANTO AGOSTINHO. Sermo 185: PL 38,999. In: Liturgia das Horas I. Segunda Leitura do dia 24 de dezembro.
24 SANTO AGOSTINHO. De Civitate Dei, XIV, 28: “Dois amores geraram duas cidades: a terrena, o amor de si até ao desprezo de Deus; a celeste, o amor de Deus até ao desprezo de si”.
25 GARRIGOU-LAGRANGE, OP, Reginald. La Sainte Trinité et le don de soi. In: Vie Spirituelle n.265, maio, 1942.