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sábado, 16 de fevereiro de 2013

Evangelho 2º Domingo da Quaresma Lc 9, 28b-36 - Ano C - 2013


Comentários à Liturgia do  2º Domingo da Quaresma Evangelho Lc 9, 28b-36 - Ano C - 2013

Naquele tempo, 28b Jesus levou consigo Pedro, João e Tiago, e subiu à montanha para rezar. 29 Enquanto rezava, seu rosto mudou de aparência e sua roupa ficou muito branca e brilhante.
30 Eis que dois homens estavam conversando com Jesus: eram Moisés e Elias. Eles apareceram revestidos de glória e conversavam sobre a morte que Jesus iria sofrer em Jerusalém.
32 Pedro e os companheiros estavam com muito sono. Ao despertarem, viram a glória de Jesus e os dois homens que estavam com ele.
33 E quando estes homens se iam afastando, Pedro disse a Jesus: “Mestre, é bom estarmos aqui. Vamos fazer três tendas: uma para Ti, outra para Moisés e outra para Elias”. Pedro não sabia o que estava dizendo. 34 Ele estava ainda falando, quando apareceu uma nuvem que os cobriu com sua sombra. Os discípulos ficaram com medo ao encontrarem dentro da nuvem.  35 Da nuvem, porém, saiu uma voz que dizia: “Este é o meu Filho, o Escolhido. Escutai o que Ele diz!”
36 Enquanto a voz ressoava, Jesus encontrou-Se sozinho. Os discípulos ficaram calados e naqueles dias não contaram a ninguém nada do que tinham visto (Lc 9, 28b-36).

Luta e glória nos são oferecidas por Deus

A vida do homem transcorre num vale de lágrimas, no qual o sofrimento sempre está presente. Para nos sustentar em meio à luta, Deus nos aponta, através de graças sensíveis, o grandioso fim ao qual estamos destinados.

Somos chamados “ad maiora

Ao formar o homem à sua imagem e semelhança (cf. Gn 1, 26), Deus destinou-o a ocupar um elevado lugar na criação, inferior apenas ao dos Anjos. O ser humano, como única criatura dotada de inteligência em todo o universo material, possui uma notável superioridade sobre as outras, além da capacidade de dominá-las, transformá-las e utilizar-se delas com sabedoria, tornando mais perfeita a obra do Criador. É ele o protagonista da História, conforme ressalta a Escritura: “Vosso saber o ser humano modelou, para ser rei da criação, que é vossa obra” (Sb 9, 2). Além dessa prerrogativa de ordem natural, há outro privilégio que lhe confere a mais excelsa dignidade: a filiação divina, concedida pelo Batismo. Com efeito, ao receber este Sacramento, a pessoa torna-se filha adotiva de Deus, participante da natureza divina, membro de Cristo e coerdeira com Ele e templo da Santíssima Trindade.

Devido ao pecado original e ao estado de prova em que nos encontramos, esses benefícios da natureza e da graça preparam-nos para as horas em que nos cabe dar mostras de fidelidade a Deus, de modo especial quando se abatem sobre nós as tentações, os dramas e as dificuldades. Se alimentarmos um desejo equivocado — quiçá, subconsciente — de fazer com que a glória terrena ou os gozos espirituais sensíveis se tornem uma constante em nossa existência, admitiremos o princípio de que a vida perfeita é a da estabilidade na consolação, sem a menor fímbria de sofrimento. Por seu divino exemplo, Nosso Senhor Jesus Cristo ensinou como o caminho para a felicidade difere daquele que conceberíamos com base em critérios humanos. Na verdade, só encontramos a perfeita alegria quando abraçamos a santidade, o que implica em transpor a porta estreita e carregar a cruz, por meio da qual se chega à luz.

A esse propósito, é legítimo perguntarmos: como se explica que na luta e no enfrentamento de toda espécie de empecilhos, em favor da glória de Deus, encontremos o sentido de nossa vida? Ou será possível experimentar neste mundo uma situação de fruição completa, tal como pedem as nossas inclinações? A resposta nos é oferecida pela Liturgia do 2º Domingo da Quaresma no conjunto de suas leituras, numa harmonia que se sintetiza em rumar para a bem-aventurança eterna passando pelas provações, pelo combate espiritual e pela dor.

A promessa de um grandioso futuro

Na primeira leitura é relatado o momento histórico em que Deus sela com Abraão uma aliança, na qual lhe faz grandes promessas. Tendo caído a noite nas longínquas paragens de Canaã, onde armara sua tenda, o patriarca já se havia recolhido quando o Senhor o chamou para fora a fim de contemplar o firmamento. Este, límpido, assemelhava-se a um manto iluminado por uma infinitude de astros reluzentes (cf. Gn 15, 5-12.17-18). Tudo nos leva a crer que ali se podia observar um cenário feérico, configurado pelo Divino Artífice com vistas a emoldurar uma das mais belas comunicações da história da salvação. Era o momento em que Deus reconhecia a retidão de Abraão e o considerava digno de acolher seu plano salvífico, para receber a fé que seria transmitida a toda a humanidade. Num diálogo cheio de poesia, Ele prometeu àquele varão avançado em anos o que as possibilidades humanas lhe haviam negado: descendência, terra e bênção.

Embora Abraão houvesse conservado, ao longo das décadas, o desejo de possuir herdeiros e pôr um fim às incertezas da vida errante, foi somente após uma longa espera que Deus determinou o cumprimento desses anseios com uma superabundância acima de qualquer expectativa. O patriarca, apesar de todas as aparências contrárias, aceitou e creu na promessa — “Levanta os olhos para os céus e conta as estrelas, se és capaz... Pois bem, assim será a tua descendência” (Gn 15, 5) —, e recebeu, por esse ato, uma recompensa muito maior do que esperava e podia conceber. “Deus, em seu modo de prometer, na certeza que possui de jamais decepcionar, revela sua grandeza única: ‘Deus não é homem para mentir, nem filho de Adão para Se retratar’ (Nm 23, 19). Para Ele, prometer já é dar, mas em primeiro lugar é dar a fé capaz de esperar que venha o dom; e é tornar, mediante esta graça, quem recebe capaz da ação de graças (cf. Rm 2, 20) e de reconhecer, no dom, o coração do doador”.1

Às almas eleitas, Deus pede oferecimentos

A partir daquela noite a conduta de Deus para com Abraão distinguiu-se por uma nova característica: ao sustentá-lo com a promessa, passou a pedir dele constantes provas de reciprocidade e entrega, com a intenção de experimentá-lo e de modelar sua existência em função da aliança: “Anda em minha presença e sê íntegro” (Gn 17, 1). Em um perplexitante paradoxo, transcorreriam ainda longos anos até o nascimento de Isaac (cf. Gn 21, 5), e só na quarta geração os descendentes de Abraão voltariam a ocupar a Terra Prometida (cf. Gn 15, 16). Contudo, mesmo caminhando nessa aparente contradição, até se tornar um homem centenário, ele creu firmemente que a promessa de Deus era ainda mais verdadeira que a própria obtenção dos frutos esperados: “não vacilou, não desconfiou, mas conservou-se forte na fé e deu glória a Deus” (Rm 4, 20). Era indispensável tal adesão de fundo de alma para que o povo eleito tivesse em suas origens um ato de fé tão excelente que o tornasse digno, na pessoa de seu patriarca, da predestinação que lhe estava reservada.

A circunstância que marcou o auge do período de prova de Abraão foi o holocausto de Isaac, pois a fé amadurecida deve ser “purificada pela prova do sacrifício”.2 Entretanto, outros oferecimentos o precederam, tendo sido um deles realizado logo no dia seguinte à cena acima recordada. Respeitando os costumes daqueles tempos, Deus determinou que Abraão fizesse a oblação de diversos animais cortados ao meio, com as metades postas umas defronte às outras. O versículo 11 denota um importante aspecto dessa passagem e mesmo do conjunto de leituras litúrgicas de hoje: “Aves de rapina se precipitaram sobre os cadáveres, mas Abraão as enxotou” (Gn 15, 11). A presença de animais ávidos por arrebatar as oferendas simboliza as lutas exigidas pela fidelidade à aliança. Para quem abraça o caminho da justiça, logo surge o inimigo infernal semeando tentações e obstáculos, sendo necessário combatê-lo para que não roube o mérito de nossas boas obras. A luta veio a ser uma constante na trajetória do povo de Israel, um elemento essencial dos episódios da História Sagrada, onde não existe vitória que não seja obtida senão pela peleja. Deus agradou-Se com a firmeza de Abraão, pois fez passar pelo meio das vítimas uma chama e uma tocha — símbolos, no Antigo Testamento, da sua presença  —, em sinal de aceitação da oferta. Esse combate, como veremos, se estende também ao Novo Testamento e pede dos cristãos uma vigilância que “deve exercitar-se dia após dia na luta contra o maligno; exige do discípulo oração e sobriedade contínua”.4

O combate do Apóstolo contra os falsos conversos

A segunda leitura (cf. Fl 3, 17-21; 4, 1) recolhe um importante trecho da epístola de São Paulo aos filipenses, em cuja comunidade alguns judeus, havia pouco convertidos, ainda se mantinham vinculados às tradições e concepções próprias ao culto antigo, propagando doutrinas erradas com o objetivo de fazer o que bem podemos qualificar de pseudoapostolado antipaulino. Enquanto São Paulo pregava o Redentor, a Boa-nova, os Sacramentos e as maravilhas da graça, os judaizantes queriam, a todo custo, fazer prevalecer os costumes mosaicos: “Eles se ocupam em exercitar sua inimizade contra a Cruz de Cristo, afirmando que ninguém pode salvar-se a não ser por meio das observâncias legais, e com isso reduzem a nada o poder ‘da Cruz de Cristo”.5 Um dos motivos que levou o Apóstolo a redigir essa carta foi a necessidade de alertar contra tal corrente nefanda, intenção bastante perceptível nos versículos hoje considerados: “Sede meus imitadores, irmãos, e observai os que vivem de acordo com o exemplo que nós damos. Já vos disse muitas vezes, e agora o repito, chorando: há muitos por aí que se comportam como inimigos da Cruz de Cristo. O fim deles é a perdição, o deus deles é o estômago, a glória deles está no que é vergonhoso e só pensam nas coisas terrenas” (Fi 3, 17-19).

Diante dos nocivos ensinamentos dos judaizantes, São Paulo não hesita em colocar-se como exemplo para aqueles que ele conduzira ao Salvador, recriminando-os, com autoridade, pelo fato de seguirem outros que não foram chamados a ser modelo na prática da Fé. Suas palavras denotam o sofrimento e a indignação causados pela controvérsia, a ponto de lhe correrem lágrimas pela face enquanto escrevia. A reação é compreensível em alguém de temperamento tão fogoso, impedido pelas circunstâncias de agir pessoalmente com a eficácia desejada, e que percebe o quanto a astúcia dos maus punha em risco a perseverança dos bons.

Por isso, ele também não vacila em denunciar os hipócritas que, por apreço a tradições antigas, insistiam no mero culto exterior já extinto, enquanto menosprezavam a vida da graça. É importante ressaltar que São Paulo, ao apontar para a divinização do estômago por eles propugnada, não se refere ao vício da gula, mas sim ao apego que tinham à Lei mosaica e aos costumes farisaicos a esse respeito. Afirma que o deus deles é o ventre porque a prática religiosa desses judaizantes resumia-se no controle de tudo quanto pudesse ser ingerido e sua glória naquilo que é vergonhoso, por concederem a primazia à circuncisão, outrora sinal precursor da fé na Paixão de Cristo e já então uma prescrição abolida. Ao praticar com exagerado rigorismo tais costumes, sentiam-se desobrigados de purificar o seu interior, no entanto tão corrompido. A linguagem utilizada por São Paulo é extremamente ousada, pois afronta os que se vangloriavam de seus odres velhos, a ponto de fazê-los rasgar as vestes e de se tornar, para eles, merecedor de um ódio de morte.

A esperança da vida eterna

Continua no próximo post



1)       RAMLOT, OP, Marie-Léon; GUILLET, SJ, Jacques. Promesas. In: LÉON-DUFOUR, SJ, Xavier (Org.). Vocabulario de teología bíblica. Barcelona: Herder, 1996, p.731.
2)       CCE 1819.
3)        Cf. COLUNGA, OP, Alberto; GARCÍA CORDERO, OP, Maximiliano. Biblia Comentada. Pentateuco. Madrid: BAC, 1960, v.1, p.192.
4)        MOLLAT, SJ, Donatien. Velar. In: LEON-DUFOUR, op. cit., p.925.
5)        SAO TOMAS DE AQUINO. Epistolam Sancti PauliApostoli ad Philippenses expositio. C.III, lect.3.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Evangelho 1º Domingo da Quaresma Lc 4, 1-13 Ano C - 2013


Continuação dos comentários ao Evangelho I Domingo da Quaresma  Lc 4, 1-13 Ano C - 2013

Diabólica exploração das revoluções

4 Jesus respondeu-lhe: “Está escrito: ‘Não só de pão vive o homem, mas de toda a palavra de Deus’”.

Jesus poderia ter transformado as pedras em pão, como depois multiplicaria por duas vezes os pães e os peixes. Mas não o fez. Nessa ocasião, não terá querido Ele, além de outros objetivos, ensinar-nos a ilegitimidade das revoltas por ter faltado alimento?

Quantas revoluções foram levadas a cabo, ao longo da História, por uma pura, malévola e — por que não dizer? — diabólica exploração da fome! Nas circunstâncias de penúria, por que não se voltam os homens para o mesmo Deus de Moisés, que não deixou sem alimento o seu povo durante quarenta anos no deserto?

Supremacia da vida espiritual sobre a corporal

Em sua resposta repassada de sabedoria divina, Jesus torna patente, ao demônio e à humanidade, a existência de uma vida muito mais nobre do que a corporal, ou seja, a espiritual. “A palavra de Deus” é constituída pelas ordens divinas, por tudo aquilo que reflete sua soberana vontade, como mais tarde Ele mesmo afirmaria: “Meu alimento é fazer a vontade d’Aquele que Me enviou” (Jo 4, 34).

É notável a diferença da reação de Jesus diante dessa proposta feita por Satanás, e diante da feita por Maria nas Bodas de Caná: à sua venerável Mãe, Ele atendeu, por saber o quanto era vontade do Pai confirmar o poder impetratório das súplicas de sua Filha bem-amada.
Na frase de Jesus retrucando ao demônio, torna-se claro não ser imprescindível o pão. Deus dispõe incontáveis meios para resolver o problema da fome. Jesus se alimentará como for da vontade do Pai. Se o desígnio d’Este é que a palavra O sustente, qual a necessidade do pão? E se este for indispensável, não tem o Pai o poder de o conceder?

Dupla tentação: medo e ambição

5 O demônio conduziu-O então a um alto monte, mostrou-Lhe, num momento, todos os reinos da terra, 6 e disse-Lhe: “Dar-Te-ei o poder de tudo isto, e a glória destes reinos, porque eles foram-me dados, e eu dou-os a quem quiser. 7 Portanto, se Tu me adorares, todos eles serão teus”.

As mais variadas hipóteses foram levantadas por alguns autores sobre qual teria sido esse alto monte, com vista para todos os reinos da terra. Para uns teria sido o Tabor, para outros o Nebo ou o Hermon. De qualquer deles, porém, é impossível contemplar os reinos deste mundo. Mais acertadamente opinam os que optam por afirmar ter-se servido o demônio de suas artes de magia, espelhismo ou fantasmagoria, para fazer transcorrer diante dos olhos de Jesus “num momento” as maravilhas dos reinos com seus palácios e esplendores; em síntese, todas as belezas das glórias exteriores de nossa terra de exílio.

Na sua inferioridade de anjo decaído, com muita ignorância, julgou haver atraído irresistivelmente Jesus e, por essa razão, propõe-Lhe logo um pecado de idolatria para, assim, entregar-Lhe a posse de tudo. Comentando essa passagem, São Jerônimo bem atribui ao demônio uma linguagem soberba, e sobretudo falsa, pois o espírito maligno não pode prometer nem, menos ainda, conceder reinos a ninguém, sem a permissão de Deus (14). Não obstante, ele é senhor dos vícios e dos pecados. Acreditava poder lisonjeá-Lo para açular uma irrefreável ambição ou, então, amedrontá-Lo, revelando-Lhe a poderosa oposição que enfrentaria, se contra Ele se levantassem aqueles reinos, caso não os aceitasse ao preço da idolatria. Não sofreu, porém, o Divino Redentor a atração da ambição nem o temor do poderio adverso.

Desde o Paraíso terrestre, nós, homens e mulheres, quando sem a graça e a virtude, somos fascinados pelo sonho de ser deuses. Essa é a desastrosa história de boa parte da humanidade. Felizes aqueles e aquelas que respondem a Satanás como o fez Jesus.

A grande tentação da humanidade decaída

8 Jesus respondeu-lhe: “Está escrito: ‘Adorarás o Senhor teu Deus, e só a Ele servirás’”.

Tornar-se o senhor do mundo, possuir todos os bens e todas as riquezas, ainda que deixando de adorar o verdadeiro Deus: eis a tentação diante da qual não poucos sucumbem, em nosso estado de prova; e, às vezes, até por preços muito menores.
Na resposta de Jesus, encontramos o divino exemplo a seguir. Reproduzindo o versículo 13 do capítulo 6 do Deuteronômio, faz um juramento de fidelidade ao Pai: a não ser Ele, ninguém, nem coisa alguma, merece homenagens e muito menos adoração.

Tentação de vanglória

9 Levou-O também a Jerusalém, colocou-O sobre o pináculo do Templo e disse-Lhe: “Se és Filho de Deus, lança-Te daqui abaixo; 10 porque está escrito que ‘Deus mandou aos seus anjos que Te guardem, 11 e que Te sustenham em suas mãos, para não magoares o teu pé em nenhuma pedra’”.

É um paradoxo imaginar o anjo caído dos Céus transportando seu Criador pelos ares. A isso se submeteu nosso Salvador, para benefício dos que foram expulsos do Paraíso.

É digna de nota a sutileza diabólica nesta tentação, pelo fato de se servir de citação da Escritura para conferir maior solidez à sua argumentação.

Aprendeu a lição do próprio Jesus, ao receber d’Ele sua primeira resposta.

Grande espetáculo causaria sua descida sensacional, amparado por anjos, em meio ao pátio do Templo. E, se isso acontecesse, provado estaria para Satanás a filiação divina de Jesus, objetivo ansiosamente desejado por seus ardis. Já não é mais a gula, nem a ambição, mas a vanglória, que a tantos leva para o inferno, o instrumento usado pelo demônio para tentar o Messias.

 12 Jesus respondeu-lhe: “Também  foi dito: ‘Não tentarás o Senhor  teu Deus’”.

Uma nova confusão inflige Jesus ao revoltado Satanás, também com palavras do Deuteronômio (6, 16). Colocar-se em perigo grave, obrigando Deus a intervir, é um pecado cheio de malícia.

13 Terminada toda esta espécie de tentação, o demônio retirou-se d’Ele até outra ocasião.

A maioria dos autores é partidária de ter, de fato, o demônio continuado a investir contra Cristo, ao longo de sua vida pública, propondo-Lhe, através destes ou daqueles, a aceitar a coroa ou a praticar milagres imprudentes.
Foi só no Horto, no Pretório e no Calvário que ele imaginou ter conseguido realizar seu sonho, todo feito de gaudium phantasticum. Entretanto, ali, Cristo triunfou sobre os infernos, o pecado e a própria morte!

1) Cf. São Tomás de Aquino, Suma Teológica III, q. 8, a. 6c.
2 ) Idem III, q. 41 a. 1.
3 ) Id. ibid.
4 ) Id. ibid.
5 ) Id. ibid.
6 ) Id. ibid.
7 ) Op.cit. III, q. 41, a. 3 ad. 2.
8 ) Cf. op. cit. III, q. 41 a. 1 ad. 3.
9 ) Cf. Francisco Suárez S.J.,Misterios de la Vida de Cristo, BAC, Madrid, t. 1, p. 825.
10) São Tomás de Aquino, Suma Teológica III, q. 41, a. 1, ad. 1.
11 ) Op. cit. BAC, Madrid, t. 1, p. 825.
12 ) Cf. op. cit. III, q. 41, a. 4.
13 ) Op. cit. III, q. 41, a. 4, ad. 1.
14 ) Cf. Comment. In Matth., h. 1.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Evangelho 1º Domingo da Quaresma Lc 4, 1-13 Ano C - 2013


Continuação dos comentários ao Evangelho I Domingo da Quaresma  Lc 4, 1-13 Ano C - 2013

Ensinamentos a tirar das tentações de Jesus Cristo Lc 4, 1-13

1 Jesus, cheio do Espírito Santo, partiu do Jordão e foi levado pelo Espírito ao deserto, 2 onde esteve quarenta dias, e foi tentado pelo demônio. Não comeu nada nestes dias; passados eles, teve fome.

Este início do capítulo 4 vem envolto num insondável mistério: “Cheio do Espírito Santo...” Ademais, “foi levado pelo Espírito...”. Por que “levado”? Outro Evangelista dirá “conduzido”, e um terceiro, “impelido”. São verbos categóricos que exprimem bem o poder empregado pelo Espírito Santo para agir em nossas almas quando eleitas para uma grande missão.

O batismo deve ter-se realizado à altura de Jericó. Dali saindo, provavelmente subiu as encostas agrestes do Monte Quarentena (Djebel Qarantal), composto de rochas avermelhadas, com cinco cristas muito características, separadas por consideráveis ravinas. Ainda hoje encontram-se por aquelas pedras escavações feitas à mão, que o zelo fervoroso de contemplativos trabalhou para favorecer a solidão procurada por eles. No seu ponto mais alto, um observador pode percorrer o lindo panorama circular: ao norte, o Hermon; a oeste, a terra de Judá; ao sul, o Mar Morto; a leste, o Monte Nebo (de onde Moisés avistou a Terra Prometida pouco antes de morrer), e os planaltos da Perea. Naqueles tempos, por lá deviam vagar animais selvagens, tornando o lugar muito inóspito para qualquer homem, ainda mais na situação de solidão em que se encontrava Jesus, conforme nos relata Marcos: “Esteve em companhia dos animais selvagens” (Mc 1, 13). Hoje, no cimo do monte, ergue-se o convento de São João, ocupado por monges gregos que solicitamente acompanham os peregrinos até a gruta que teria sido freqüentada pelo Salvador e chegam a indicar, até mesmo, as marcas de seus divinos pés sobre as pedras do caminho.

Jesus foi tentado durante quarenta dias

São Lucas nos fala de tentações ao longo de quarenta dias, entretanto só menciona as três últimas delas. Como entender este fato? São Tomás assim no-lo responde: “Segundo a explicação de Beda, o Senhor foi tentado durante quarenta dias e quarenta noites. Mas não se trata daquelas tentações visíveis mencionadas por Mateus e Lucas, as quais ocorreram evidentemente após o jejum, mas de outros assaltos que Cristo pôde sofrer do diabo durante aquele tempo do jejum” (7). São Tomás de Aquino é harmônico, neste seu parecer, com muitos outros autores como, por exemplo, São Justino, Orígenes, Santo Agostinho, se bem que outros tantos — como Suárez, Lagrange, Plummer — discordem deste ponto de vista.

São Mateus é ainda mais categórico ao dizer: “Jesus foi conduzido pelo Espírito ao deserto para ser tentado pelo demônio” (Mt 4, 1).

Na história da criação, os primeiros a padecerem a prova da tentação foram os Anjos, e nem todos permaneceram fiéis... A seguir foram os nossos primeiros pais, e de seu pecado sofrerão as consequências todos os homens, até o fim do mundo. Mas Jesus era impecável e, apesar disso, pôde efetivamente ser tentado. N’Ele não existia o fomes peccati nem sequer a mais leve inclinação ao pecado, quer fosse pela carne ou até mesmo pelas pompas e vaidades do mundo, por possuir, ademais, um juízo sereno e clarividente. Porém, quanto às sugestões diabólicas externas, não havia o menor inconveniente em que viesse submeter-Se a elas voluntariamente, pois, não sendo interiores e também por não haver a menor imperfeição em Quem as padeceu, deixam a exclusividade de toda a malícia ao tentador (8).

De acordo com os desígnios de Deus, “convinha [a Jesus] que Ele se tornasse em tudo semelhante aos seus irmãos” (Hb 2, 17), pois, para levar até os extremos limites seu amor por nós, ao “compadecer-Se de nossas fraquezas”, maior perfeição manifestaria quando passasse “pelas mesmas provações que nós, com exceção do pecado” (Hb 4, 15).

Sobre a razão da oração e do jejum, baste-nos lembrar que “esta espécie de demônio só se pode expulsar à força de oração e de jejum” (Mt 17, 20).

A dúvida do demônio

3 Então o demônio disse-Lhe: “Se és Filho de Deus, diz a esta pedra que se converta em pão”.

Os autores se conjugam no comentário deste versículo, e dentre eles se destaca Suárez (9), afirmando que, ao tentar Jesus, o demônio não visou principalmente fazê-Lo pecar, mas saber ao certo se Ele era ou não o Filho de Deus. Com uma habitual e sintética clareza, São Tomás assim nos explica esse particular: “Como diz Santo Agostinho, ‘Cristo Se fez conhecer dos demônios na medida que Lhe pareceu conveniente, não porque Ele é a vida eterna, mas por certos efeitos temporais de seu poder’, de onde podiam eles conjecturar que Jesus era o Filho de Deus. Mas como viam n’Ele sinais de debilidade humana, não sabiam com certeza que era Filho de Deus; por isso quiseram tentá-Lo. Esse é o sentido das palavras de Mateus (Mt 4, 2-3), quando se diz que, depois que teve fome, o tentador se aproximou d’Ele; pois, como diz Santo Hilário, ‘o demônio não teria ousado tentar Cristo se não tivesse observado n’Ele, pela debilidade da fome, a natureza humana’. Isso é evidente pelo próprio modo de tentar, quando ele fala: ‘Se és o Filho de Deus’. Santo Ambrósio explica tais palavras, dizendo: ‘O que denota essa maneira de se expressar, senão que ele sabia que o Filho de Deus haveria de vir, mas não acreditava que tivesse vindo na fraqueza da carne?’” (10).

Algo devia saber Satanás sobre aquele varão sui generis, o qual, apesar de nascido numa gruta, havia sido louvado por anjos, pastores e reis do Oriente. Pois, se assim não fosse, teria empregado menos sofisticação na elaboração das tentações, como adiante veremos.
O fato de o demônio começar pela suposição “se és o Filho de Deus” demonstra sua suspeita, não ainda inteiramente comprovada, de se tratar do Messias prometido, se bem que humano e não divino. E por isso procura seduzi-Lo e fazê-Lo abandonar as vias do Pai.

Como fez o demônio para tentar Jesus

Sobre a maneira de o demônio apresentar a Jesus suas seduções, divergem as opiniões dos autores. Uns poucos chegam a conferir-lhes um carácter meramente simbólico, ou seja, não passaram de invenções dos Evangelistas para ajudar os homens em suas lutas espirituais. Outros, apesar de aceitarem sua existência real, julgam não terem ocorrido senão por pura sugestão interna. Ambas as suposições não nos parecem cabíveis, tanto debaixo do prisma meramente histórico, como do teológico. Entre os que escolhem a via mais segura está Suárez, categórico em admitir a hipótese de o demônio ter assumido forma física para poder tentar Jesus:

“Satanás deve ter aparecido usando a figura humana, como o diálogo entre um e outro parece exigir. Talvez com a aparência de um santo varão ou alguma outra que julgasse mais própria para convencer. Não pôde tentar o Senhor a não ser pela palavra, do mesmo modo como fez com Adão, pois ambos careciam de paixões insubordinadas, e não era decoroso que o tentador pudesse atuar na imaginação ou potências internas de Cristo” (11).

Através das pequenas coisas, tenta o demônio as grandes vocações

Ainda dentro dos ensinamentos de São Tomás de Aquino (12), sabemos que os homens entregues às vias da perfeição, o demônio não procura tentá-los diretamente para os pecados mais graves. Sua aproximação inicial é através das imperfeições e faltas leves, até o momento de propor as graves. Essa metodologia, ele a empregou no Paraíso terrestre ao seduzir nossos primeiros pais. Começou esforçando-se por despertar a gula de Eva: “Por que não comeis?...” Depois sua vã curiosidade: “Vossos olhos se abrirão…” Por fim, apresentou-lhe o último grau de orgulho: “Sereis como deuses…”

No caso do presente versículo, serve-se Satanás de uma situação concreta. Depois de quarenta dias em completo jejum, fizeram-se presentes em Jesus as características de Filho do Homem: teve necessidade de repor suas energias, sentiu o ímpeto da fome. De todas as virtudes, uma das mais importantes é a fé. Sem uma direta revelação, assimilada por essa virtude, nenhuma criatura, humana ou angélica, é capaz de admitir a hipótese da união das duas naturezas em Cristo. Por isso o espírito maligno — que não possui a fé — aproxima-se d’Ele a fim de chamar-Lhe a atenção para as pedras do caminho que mais se assemelhavam às formas dos pães da época. Quiçá chegasse a Lhe fazer a proposta tendo nas mãos algumas delas.


Inversão da ordem: um ato revolucionário

Depois de insidiosamente procurar estimular o amor-próprio de sua suposta vítima, quis o demônio fazer Jesus utilizar-Se, com desobediência e abuso, dos poderes divinos, para satisfazer a fome e, assim, ser levado também à gula. Ardilosa a proposta, pois a necessidade era real; e que é o pão senão um alimento dos pobres? Conseguiria o demônio, por essa via, não só levar aquele Homem ao uso indevido do poder de fazer milagres, como, ademais, comprovar a messianidade d’Ele. Se Jesus tivesse caído nessa artimanha, sua natureza divina seria, nessa ocasião, subjugada à humana. No fundo, praticaria um ato revolucionário, ao inverter a verdadeira ordem e grau de importância dos seres, embora, absolutamente considerado, não seja nenhuma falta saciar a fome nem mesmo fazer um milagre.

Sobre este particular, ensina-nos o Doutor Angélico:

Usar do necessário para o sustento não constitui pecado de gula; mas pode pertencer a esse vício o fato de o homem agir de modo desordenado pelo desejo desse sustento. Ora, é desordenado querer obter o alimento por meio de um milagre, quando se pode recorrer a meios humanos para o sustento do corpo. Cristo podia satisfazer sua fome de outra maneira, sem necessidade de um milagre, fazendo como São João Batista (Mt 3, 4), ou mesmo indo a localidades vizinhas. Por isso o demônio pensava que Cristo pecaria se, sendo um homem como os outros, tentasse fazer milagres para aplacar a fome” (13).


Continua no próximo post.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Evangelho 1º Domingo da Quaresma Lc 4, 1-13 Ano C - 2013

Comentários de Mons João Clá Dias ao Evangelho 1º Domingo da Quaresma  Lc 4, 1-13 Ano C - 2013


Evangelho Lc 4, 1-13  Tentações de Jesus

1 Jesus, cheio do Espírito Santo, partiu do Jordão e foi levado pelo Espírito ao deserto, 2 onde esteve quarenta dias, e foi tentado pelo demônio. Não comeu nada nestes dias; passados eles, teve fome. 3 Então o demônio disse-Lhe: “Se és Filho de Deus, diz a esta pedra que se converta em pão”. 4 Jesus respondeu-lhe: “Está escrito: ‘Não só de pão vive o homem, mas de toda a palavra de Deus’”. 5 O demônio conduziu-O então a um alto monte, mostrou-Lhe, num momento, todos os reinos da terra, 6 e disse-Lhe: “Dar-Te-ei o poder de tudo isto, e a glória destes reinos, porque eles foram-me dados, e eu dou-os a quem quiser.

7 Portanto, se Tu me adorares, todos eles serão teus”. 8 Jesus respondeu-lhe: “Está escrito: ‘Adorarás o Senhor teu Deus, e só a Ele servirás’”.
9 Levou-O também a Jerusalém, colocou-O sobre o pináculo do Templo e disse-Lhe: “Se és Filho de Deus, lança-Te daqui abaixo; 10 porque está escrito que ‘Deus mandou aos seus anjos que Te guardem, 11 e que Te sustenham em suas mãos, para não magoares o teu pé em nenhuma pedra’”.

12 Jesus respondeu-lhe: “Também foi dito: ‘Não tentarás o Senhor teu Deus’”. 13 Terminada toda esta espécie de tentação, o demônio retirou-se d’Ele até outra ocasião (Lc 4, 1-13).


Comentários ao Evangelho Lc 4, 1-13

A luta dos dois generais

Pervadidos de mistério e propícios à meditação, o batismo do Senhor e a tentação no deserto constituem o pórtico de sua vida pública. Sobre essa matéria muito tem sido escrito ao longo dos séculos, procurando esclarecer seus mais profundos significados. Fixemos hoje nossa atenção nas tentações sofridas por Jesus.

Depois da teofania no Rio Jordão, encontramos no deserto dois sumos generais, Cristo e Satanás, num enfrentamento face a face. A guerra ali travada tornou-se o paradigma da luta de todo homem, durante sua existência terrena, a qual, por sua vez, recebe a influência de um e outro general. A aceitação de uma dessas influências determina sua vitória ou derrota pessoal.

Ação de Satanás sobre as almas

Sobre o supremo chefe dos maus e seus sequazes, o próprio Jesus diria mais tarde: “Vós tendes por pai o demônio e quereis fazer os desejos do vosso pai. Ele foi homicida desde o princípio e não permaneceu na verdade, por que a verdade não está nele. Quando ele diz a mentira, fala do que lhe é próprio, porque é mentiroso e pai da mentira” (Jo 8, 44). Características estas que tornam singular o modo de agir de Satanás Seu governo não é exercido no interior das almas, e nem sequer infunde nos seus um influxo vital. Ele consegue, isto sim, obscurecer o entendimento do pecador e apresentar-lhe maus desejos, através de tentações que lhe sugere. O demônio não tem outra intenção a não ser afastar os homens de Deus, seu Criador, e levá-los à revolta. Deseja que todos pequem o quanto possível, para assim perderem o uso da verdadeira liberdade. Na sua ação mais direta, o demônio explora nos homens a tríplice concupiscência.

De outro lado, ele odeia a verdadeira união que deve reinar no relacionamento entre os homens, e, atuando em sentido oposto, visa obter a desagregação da sociedade.

Modo de atuar de Jesus Cristo

Por sua vez, Cristo também exerce sobre os seus súditos uma influência externa, própria a qualquer rei, mas o faz com toda a perfeição e de maneira mais eficaz. Sua doutrina é clara e lógica; não só Ele a ensina com palavras, mas apresenta-Se a Si mesmo como seu exemplo insuperável e atraente. Quem puser em prática seus preceitos chegará infalivelmente à vitória.

Sua ação sobre os fiéis é incomparavelmente mais profunda do que a de Satanás sobre os seus respectivos seguidores. Jesus é a cabeça do Corpo Místico, e d’Ele deflui para os seus membros a graça santificante. Devido à união hipostática com Deus, a humanidade de Cristo tem virtude para santificar (1). É em função dela que São Paulo afirma: “Eu vivo, mas já não sou eu; é Cristo que vive em mim. A minha vida presente, na carne, eu a vivo na fé no Filho de Deus, que me amou e Se entregou por mim” (Gl 2, 20).

A vida divina do batizado

Essa vida, infundida por ocasião do Batismo, é tão necessária e superior que, sem sua seiva, nada pode realizar o cristão. “Sem Mim, nada podeis fazer” (Jo 15, 5). Por isso afirma São Paulo: “Tudo posso n’Aquele que me conforta” (Fl 4, 13).

Essa é a vida que nós, batizados, devemos buscar, na certeza da vitória, caso com ela estabeleçamos uma perfeita união. Assim como as portas do inferno não prevalecerão contra a Igreja (cf. Mt 16, 18), assim também cada um de nós — desde que unido pela fé e pelas obras a Cristo Jesus, nosso sumo general, Rei, Sacerdote e Profeta — não conhecerá o fracasso, e com toda a segurança chegará ao triunfo final, pois foi Ele quem nos mereceu o amparo e auxílio contra as tentações.

Por que Cristo Se dispôs a ser tentado

Essa perspectiva nos tornará claro o Evangelho de hoje, pois “Cristo quis ser tentado” e até mesmo “voluntariamente Se apresentou ao tentador” (2). Dispôs-Se Ele a ser nosso exemplo “para nos ensinar o modo de vencer as tentações do diabo. Por isso diz Santo Agostinho que Cristo Se deixou tentar pelo diabo a fim de ser nosso mediador e nos ajudar a triunfar sobre as tentações daquele, prestando-nos não apenas seu socorro, mas dando-nos também seu exemplo” (3). Da mesma forma como Jesus, pelo fato de ter abraçado sua própria morte, pôde dizer a esta: “Onde está teu aguilhão? Onde está tua vitória?”, assim também, em relação às nossas tentações, Ele as venceu no deserto. Pois, como ensina São Gregório, é compreensível que “Nosso Salvador, o qual viera para ser morto”, quisesse também “ser tentado, de tal modo que, por suas tentações, Ele pudesse vencer as nossas, assim como, por sua morte, Ele venceu a nossa” (4).

Melhor do que ninguém, Jesus sabia os riscos pelos quais passamos em nossa existência e quis, com o exemplo de sua própria vida, advertir-nos a respeito deles — sobretudo aqueles de nós mais chamados a uma via de maior entrega e perfeição. “De tal modo que ninguém, por mais santo que seja, pense estar seguro e imune à tentação. Por isso Cristo quis ser tentado após seu batismo, como diz Santo Hilário, porque ‘as tentações do diabo assaltam principalmente quem está santificado, pois ele deseja sobretudo triunfar sobre os santos’. Daí também estar escrito no Eclesiástico: ‘Meu filho, se entrares para o serviço de Deus, permanece firme na justiça e no temor, e prepara a tua alma para a provação’” (5).

Quem poderia nos ensinar eficazmente a vencer as tentações com firmeza, senão o próprio Cristo?
Por fim — ainda segundo São Tomás de Aquino —, Jesus permitiu que o demônio O tentasse “para dar-nos confiança em sua misericórdia, pelo que se diz: ‘Porque não temos n’Ele um pontífice incapaz de compadecer-Se das nossas fraquezas. Ao contrário, passou pelas mesmas provações que nós, com exceção do pecado’ (Heb 4, 15)” (6).

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segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Evangelho  Quarta-Feira de Cinzas  Mt 6, 1-6.16-18 - 2013


Final dos comentários ao Evangelho  Quarta-Feira de Cinzas  Mt 6, 1-6.16-18- 2013
A Quaresma nos convida a crescer em humildade
O Evangelho da Quarta-Feira de Cinzas nos apresenta o espírito com que se deve viver a Quaresma: não fazer boas obras com vistas a obter a aprovação dos outros, não ceder ao orgulho nem à vaidade, mas procurar em tudo agradar somente a Deus.
No jejum, na oração ou na prática de qualquer boa obra, não se pode erigir como fim último o benefício que daí possa nos advir, mas sim a glória d’Aquele que nos criou. Pois tudo quanto é nosso — exceção feita das imperfeições, misérias e pecados — pertence a Deus. E também nossos méritos, pois é o próprio Jesus quem afirma: “Sem Mim, nada podeis fazer”! (Jo 15, 5).
Assim, se tivermos a graça de praticar um ato bom, devemos imediatamente reportá-lo ao Criador, restituindo-Lhe os méritos, pois estes Lhe pertencem, e não a nós. “Quem se gloria, glorie-se no Senhor” (I Cor 1, 31), adverte-nos o Apóstolo.
Pelo sacerdócio comum a todos os batizados,21 cada fiel é chamado, em determinadas circunstâncias, a atuar como mediador das graças que vêm de Deus para benefício dos outros, e dos louvores que deles se elevam ao trono do Altíssimo. Nessa ocasião, cuidemos de não nos apropriarmos de nada, pois tudo quanto possuímos de virtude, bondade ou beleza — tanto as faculdades da alma quanto as qualidades corporais e o desenvolvimento de nosso ser físico, intelectual e moral —, tudo isso provém de Deus.
Santa Teresa de Jesus assim define a humildade: “Deus é a suma verdade, e a humildade consiste em andar na verdade, pois de grande importância é não ver coisa boa em si mesmo, mas sim a miséria e o nada”.22
Reconheçamos os benefícios que Deus nos dá e por eles rendamos-Lhe graças, não nos colocando jamais como objeto desse louvor, julgando sermos nós a fonte de qualquer virtude ou qualidade.
Neste início de Quaresma, procuremos, mais ainda do que a mortificação corporal, aceitar o convite que a Liturgia sabiamente nos faz, combatendo o amor próprio com todas as nossas forças. “Procurai o mérito, procurai a causa, procurai a justiça; e vede se encontrais outra coisa que não seja a graça de Deus”.23
Só estarão à direita de Nosso Senhor Jesus Cristo, no dia do Juízo Final, aqueles que tiverem vencido o orgulho e o egocentrismo, reconhecendo que “todo dom precioso e toda dádiva perfeita vêm do alto” (Tg 1, 17). Pois o homem tem diante de si apenas dois caminhos: ou amar a Deus sobre todas as coisas, até o esquecimento de si; ou amar-se a si próprio sobre todas as coisas, até o esquecimento de Deus.24 Não existe um terceiro amor.
Saibamos, portanto, aproveitar este Tempo da Quaresma para crescermos na humildade e tomarmos consciência clara da nossa limitação, uma vez que “o homem não pode receber coisa alguma, se não lhe for dada do Céu” (Jo 3, 27).
Sirvam-nos de estímulo estas confortadoras palavras de um célebre guia espiritual, o padre Reginald Garrigou-Lagrange, OP: “Quanto mais nossa alma progredir na vida divina da graça, mais ela será uma imagem viva da Santíssima Trindade. No início de nossa existência, o egoísmo nos faz pensar especialmente em nós e a nos amarmos, atribuindo tudo a nós. Se, porém, formos dóceis às inspirações do Alto, chegará o dia em que pensaremos sobretudo, não em nós mesmos, mas em Deus, e em que, a propósito de todas as coisas, agradáveis ou penosas, O amaremos mais do que a nós e quereremos constantemente levar as almas para Ele”25.


22 Cf. SANTA TERESA DE JESUS. Las Moradas. Morada sexta, c.10, § 6-7.

23 SANTO AGOSTINHO. Sermo 185: PL 38,999. In: Liturgia das Horas I. Segunda Leitura do dia 24 de dezembro.
24 SANTO AGOSTINHO. De Civitate Dei, XIV, 28: “Dois amores geraram duas cidades: a terrena, o amor de si até ao desprezo de Deus; a celeste, o amor de Deus até ao desprezo de si”.
25 GARRIGOU-LAGRANGE, OP, Reginald. La Sainte Trinité et le don de soi. In: Vie Spirituelle n.265, maio, 1942.

domingo, 10 de fevereiro de 2013

Evangelho  Quarta-Feira de Cinzas  Mt 6, 1-6.16-18 Ano C - 2013

Continuação dos comentários ao Evangelho  Quarta-Feira de Cinzas  Mt 6, 1-6.16-18 Ano C - 2013

É vã a oração de quem visa as exterioridades
5 “Quando orardes, não sejais como os hipócritas, que gostam de orar em pé nas sinagogas e nos cantos das praças, a fim de serem vistos pelos homens. Em verdade vos digo que já receberam a sua recompensa”.
Naquela época, era dever de todo varão judeu rezar três vezes por dia: de manhã, coincidindo com o sacrifício matutino, ao meio-dia e na hora do sacrifício vespertino. As preces eram feitas geralmente de pé, com os braços erguidos para o Céu, como a simbolizar o dom que se esperava receber.16
As pessoas costumavam orar no interior das próprias casas. Os fariseus, porém, escolhiam para tal os lugares mais visíveis nas sinagogas ou nas praças públicas. Ali gesticulavam e repetiam de cor grande número de orações, de forma a impressionar quem por lá passava. Inútil dizer que eram vãs essas preces, pois eles já tinham obtido o que almejavam: o aplauso dos transeuntes.
Não caiamos, entretanto, no erro de pensar que Nosso Senhor condena toda oração feita em público. O Divino Mestre recrimina neste versículo apenas a preocupação com as exterioridades, tão frequente nos homens daquele tempo, e a atitude genérica das pessoas que rezam com ostentação ou procurando unicamente o louvor dos semelhantes.
Na nossa vida de piedade, devemos procurar ser discretos
6 “Tu, porém, quando orares, entra no teu quarto, e, fechada a porta, ora a teu Pai; e teu Pai, que vê o que se passa em segredo, te dará a recompensa”.
A essência da oração, ensina o Catecismo, é a “elevação da mente a Deus”.17 Assim, é possível a qualquer um permanecer em oração inclusive durante os atos comuns da vida, realizando-os com o espírito voltado para o Céu.
Portanto, para rezar não é preciso tomar a atitude espalhafatosa dos fariseus. Devemos, pelo contrário, ser discretos nas manifestações externas de nossa piedade particular, evitando gestos ou palavras que ponham em realce nossa própria pessoa.
Mas se, apesar disso, nossa devoção for notada pelos outros, não devemos nos perturbar, tranquilizemo-nos com este ensinamento de Santo Agostinho: “Não há pecado em ser visto pelos homens, mas sim em proceder com a finalidade de por eles ser visto”.18
O jejum transformado em um ato de caráter social
16 “Quando jejuardes, não vos mostreis tristes como os hipócritas, que desfiguram o rosto para mostrar aos homens que jejuam. Na verdade vos digo que já receberam a sua recompensa”.
O espírito oriental, em sua riqueza de expressividade, é propenso a atitudes dramáticas, por vezes bonitas, mas que, nas práticas religiosas, podem extrapolar os padrões normais. Assim acontecia com os fariseus que, ao jejuar, colocavam cinza na cabeça, não penteavam a barba e até pintavam o rosto para dar ideia de tristeza, ostentando uma fisionomia de tragédia.19 Tinham transformado o jejum em um ato de caráter social, uma encenação, para convencer os outros de sua pretendida virtude. E não receavam recorrer a todos os meios disponíveis para atingir esse objetivo.
Uma vez mais, Nosso Senhor os reprova por se servirem da aparência de justiça para impressionar os outros, e afirma terem sido já recompensados pelo seu jejum.
A propósito deste versículo, cabe uma aplicação a nós: ao fazermos algo difícil, nunca procuremos atrair a atenção dos demais, mendigando alguns elogios. Assim procediam muitos santos que, ao praticar severos jejuns, mortificações e austeridades assustadoras, apresentavam-se, por meio de uma santa dissimulação, com uma aparência exterior alegre e jovial.
Alegria e asseio ao praticar a virtude
17 “Mas tu, quando jejuares, unge a tua cabeça e lava o teu rosto, 18 a fim de que não pareça aos homens que jejuas, mas sim a teu Pai, que está presente no oculto, e teu Pai, que vê no oculto, te dará a recompensa”.
Além de tornar claro o quanto todas as nossas ações devem ser realizadas em função de Deus, Jesus ressalta aqui a fundamental importância da limpeza para a criatura humana. Devemos primar pelo asseio corporal como reflexo da pureza que desejamos para nosso espírito. E aliando uma apresentação impecável às boas ações, ajudaremos a manifestar que a verdadeira felicidade se encontra na prática da virtude.
Quanto ao conselho de ungir a cabeça, explica São Jerônimo: “Trata-se aqui do costume que havia na Palestina, de se ungir a cabeça nos dias de festa”. E acrescenta que assim, “o Senhor nos ordena que nos manifestemos contentes e alegres quando jejuarmos”.20


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16 Cf. TUYA, OP, op. cit., p.129. Muito interessante é a proposta que fazem os professores de Salamanca, de traduzir a palavra grega hestótes por “com pose” (em lugar de “de pé”), observando, acertadamente, que “com pose” estaria mais de acordo com o contexto desta passagem.

17 Catecismo da Igreja Católica, n.2559.
18 SANTO AGOSTINHO. De sermone Domini, 2, 3.
19 Cf. TUYA, OP, op. cit., p.151152; GOMÁ Y TOMÁS, op. cit., p.191.
20 SÃO JERONIMO, apud SÃO TOMÁS DE AQUINO, Catena Aurea.