Continuação dos comentários ao Evangelho da Festa da Exaltação da Santa Cruz - Jo 3, 13-17
Um fariseu simpático ao Messias
Toda essa doutrina
está bastante vincada na conversa noturna de Nosso Senhor com Nicodemos, da
qual este Evangelho recolhe um curto trecho que se conjuga de maneira
extraordinária com a primeira leitura. Além de suculentíssima em conteúdo, essa
conversa deve ter durado várias horas. Infelizmente São João a sintetiza em
escassos parágrafos, de per si repletos de maravilhas.
Segundo São João
Crisóstomo, Nicodemos “estava já bem disposto em relação a Cristo, se bem que
sua fé fosse ainda débil e tão rude como a de todos os judeus”.9 Sendo fariseu
e membro do Sinédrio, ele sabia do mau conceito que este tinha acerca de Jesus,
e não queria manifestar sua adesão a Ele para não ter de enfrentar o próprio
ambiente. E por tal razão “foi ter com Jesus, de noite” (Jo 3, 2), deslocando-se
de modo sorrateiro pelas ruas, as quais, naquela época, eram iluminadas somente
pelo brilho da Lua e das estrelas. Talvez ele tenha esperado uma noite de Lua
nova ou de céu enevoado, a fim de evitar que sua silhueta se projetasse nos
caminhos e, aproveitando-se da queda noturna da temperatura, tenha se
acobertado bem, até a cabeça.
Este bom fariseu vai
à procura de Nosso Senhor não só pela curiosidade de ver de perto aquele
Mestre, cuja fama se espalhava por todos os recantos de Israel, como também
porque desejava descobrir de onde vinha o poder de operar milagres, a força de
expressividade de Jesus e a capacidade de penetração de seus ensinamentos, e se
perguntava se não seria Ele um profeta precursor do Messias. Nicodemos tinha a
mente repleta de interrogações, pois era um homem de espírito lógico, de
princípios doutrinários muito sólidos e exímio conhecedor da Lei e das
Escrituras, constante objeto de seu estudo. E ele queria conferir seu saber com
a novidade trazida por Cristo. Aos poucos, no decorrer da conversa, o Divino Mestre
irá trabalhando sua alma e abrindo-lhe os olhos para a Fé.
Uma alusão à união hipostática
“Naquele tempo, disse Jesus a Nicodemos: 13 ‘Ninguém
subiu ao Céu, a não ser Aquele que desceu do Céu, o Filho do Homem’”.
Como Nicodemos era
fariseu convicto, o Divino Mestre usa um método muito didático e prudente para
lhe falar da Encarnação. Se Ele lhe revelasse o mistério da união hipostática, dizendo:
“Eu sou Deus, sou a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade e assumi a natureza humana”,
seu interlocutor não entenderia e até julgaria tal afirmação uma blasfêmia. É
por meio de uma linguagem figurada que Jesus conversa a esse respeito, de forma
a permitir que a graça, criada por Ele próprio, atue na alma de Nicodemos. Eis
um princípio para o apostolado: quando nos encontramos num ambiente hostil à Fé
ou despreparado para receber a Boa-nova, o melhor modo de evangelizar é através
de figuras. Por isso, a arte, toda feita de símbolos, é um estupendo meio de
tirar do pecado as gerações mais pervertidas e levá-las à santidade.
De início, Nosso
Senhor diz que “ninguém subiu ao Céu”, referindo-Se à situação dos homens depois
do pecado original, que ali estavam impedidos de entrar. Todos os justos do Antigo
Testamento se encontravam no Limbo, onde não havia fogo, nem escuridão ou
tormentos, mas o anseio de felicidade eterna, inerente a toda criatura humana,
permanecia insaciado.10 Entretanto, quando o Filho “desceu do Céu”, encarnando-Se,
Ele não abandonou o Céu, pois é Deus. E como sua Alma humana foi criada na
visão beatífica desde o primeiro instante de sua existência, Jesus podia dizer
com propriedade que “subiu ao Céu”. Logo, “ninguém” subiu ao Céu antes da
Redenção, a não ser Nosso Senhor Jesus Cristo. Esta afirmação levanta uma interrogação
na cabeça de Nicodemos, enquanto Nosso Senhor prosseguia o discurso, remontando
ao episódio das serpentes no deserto.
A realização da pré-figura
14 “Do mesmo modo como Moisés levantou a serpente no
deserto, assim é necessário que o Filho do Homem seja levantado, 15 para que
todos os que n’Ele crerem tenham a vida eterna”.
Assim como aqueles
animais peçonhentos se propagaram pelo acampamento dos hebreus, o mal penetrou
na face da Terra com o pecado de Adão. E não há outra salvação para os homens senão
olhar para a verdadeira serpente de bronze, Nosso Senhor Jesus Cristo
crucificado.
A pré-figura da
serpente, porém, é nada em comparação com o que se verificou de fato, porque a
realidade sempre é muito mais rica do que o símbolo. Nosso Senhor poderia
perdoar apenas nossa culpa, de maneira que, com a alma em ordem, tivéssemos uma
eternidade feliz do ponto de vista natural. Mas Ele, além de nos curar do
pecado, oferece a possibilidade de participarmos de sua própria vida divina,
que jamais obteríamos pelos nossos esforços. Somos convidados a crer n’Ele, acolhendo
tudo quanto nos trouxe ao vir ao mundo, quer sua doutrina, quer sua graça,
recebida, sobretudo, através dos Sacramentos. Numa palavra, aceitar a Igreja e
viver em união com ela. Para isso, era necessário que o Filho do Homem fosse levantado
no Madeiro, como Jesus revela aqui a Nicodemos. Nesta afirmação também
transparece a divina didática de Nosso Senhor, que toma o cuidado de não usar o
termo crucifixão, mas emprega a expressão “ser levantado”, que poderia
significar também sua Ascensão aos Céus, dependendo de como Nicodemos a
interpretasse. No apostolado, muitas vezes, devemos agir desta forma, de proche en proche, a fim de predispor as
almas a aceitar a verdade plena, sem lhe pôr obstáculos.
O infinito amor do Pai pelos homens
16 “Pois Deus amou tanto o mundo, que deu o seu Filho
Unigênito, para que não morra todo o que n’Ele crer, mas tenha a vida eterna”.
Para aproveitarmos a
imensa riqueza teológica deste versículo, pensemos, em primeiro lugar, que o
Pai celeste não pode Se esquecer de nenhuma de suas criaturas. Se, por absurdo,
isso acontecesse, elas voltariam ao nada no mesmo instante, pois é Ele quem
tudo sustenta no ser. Lembremo-nos também de que Deus não pode criar algo que
não seja para Si, para seu proveito e sua glória. Sendo assim, Ele nunca deixará
de ter apreço pelos seres aos quais deu a existência. E tão grande é esse amor
que Ele dá ao mundo seu Filho Unigênito, para que todos tenham vida e “a tenham
em abundância” (Jo 10, 10).
Sem essa oblação, nós
— na melhor das hipóteses — estaríamos destinados a passar a eternidade no
Limbo, à luz de nossa própria inteligência, o que não pode ser chamado de
verdadeira vida. Nosso Senhor Jesus Cristo nos oferece a vida eterna no Céu,
onde receberemos a luz do próprio Deus para contemplá-Lo por todo o sempre,
como diz o Salmo: “in lumine tuo videbimus lumen — na vossa luz veremos a luz”
(35,10), a luz da visão beatífica.
Continua no próximo post
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