Continuação dos comentários ao Evangelho – II Domingo do Advento
Mons. João Scognamiglio Clá Dias, EP
Mensagem central da pregação de São Pedro
1 “Início do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus”.
Vivaz e direto como
seu mestre, São Marcos começa o relato mostrando já na primeira linha a ideia
central que vai orientar e pervadir seu Evangelho: Cristo é verdadeiro Homem e
verdadeiro Deus.
Com o intuito de
defender diante de seus ouvintes a personalidade divina de Jesus, São Pedro
ressaltava em sua pregação o domínio supremo do Filho de Deus sobre as forças
da natureza, sobre os corações e sobre os próprios demônios, os quais tantas
vezes os gentios cultuavam como deuses. É esse o motivo de São Marcos citar
muitos milagres não relatados nos outros sinópticos, a ponto de seu livro ser
conhecido como o Evangelho dos milagres.10
Cumpre-se a antiga profecia
2 “Está escrito no Livro do profeta Isaías: ‘Eis que
envio meu mensageiro à tua frente, para preparar o teu caminho. 3 Esta é a voz
daquele que clama no deserto: Preparai o caminho do Senhor, endireitai suas
estradas!’”.
São João inicia seu
Evangelho remontando-se à geração eterna do Verbo. São Mateus dedica os
primeiros versículos do seu, a enumerar os antepassados do Messias segundo a
carne. E São Lucas abre o respectivo sinótico narrando extensamente a
miraculosa concepção de João Batista, prelúdio da Encarnação de Cristo no seio
da Virgem Santíssima, por obra do Espírito Santo.
O de São Marcos,
porém, o mais breve dos quatro, abre-se com as preliminares do ministério
público de Jesus. “Era natural que o discípulo preferido de São Pedro começasse
seu relato no ponto onde o Príncipe dos Apóstolos colocava o início da pregação
evangélica”, observa Fillion.11
Para introduzir o
tema ele proclama com solenidade uma das frases de Isaías relembradas na
primeira leitura.12 Nela, o Antigo e o Novo Testamento, por assim dizer, se
osculam reverentes. A “voz daquele que clama no deserto” toma vida concreta na
pessoa do Precursor. A profecia anunciadora da libertação do jugo babilônico
reveste-se de um sentido muito mais atual e profundo: a necessidade da
conversão e da emenda de vida diante do anúncio da Boa Nova que vai começar.
O maior dos homens e dos profetas
4 “Foi assim que João Batista apareceu no deserto,
pregando um batismo de conversão para o perdão dos pecados. 5 Toda a região da
Judeia e todos os moradores de Jerusalém iam ao seu encontro. Confessavam seus
pecados e João os batizava no rio Jordão. 6 João andava vestido de pelo de
camelo e comia gafanhotos e mel do campo”.
A vestimenta e os
hábitos do Batista destoavam muito dos costumes daquela sociedade. Ele
“representava a penitência; representava, portanto, o jejum, a flagelação, a
solidão no deserto, a mortificação. E por causa disso seu corpo tinha a pele
bronzeada por mil sóis ardentes do Oriente Médio. Ele era forte e, entretanto,
muito magro, de tal maneira os jejuns o haviam consumido. Era também a própria
representação da severidade cheia de bondade”.13
Deambular por regiões
despovoadas, vestido com o áspero pelo de camelo, alimentando-se de gafanhotos
e mel silvestre, constituíam sinais inequívocos de vida ascética. Antes já
tinham se espalhado “por toda a região montanhosa da Judeia” (Lc 1, 65) as
miraculosas circunstâncias do seu nascimento. Tudo isso contribuiu para fixar
na opinião pública a figura de uma pessoa completamente incomum.
Não por acaso,
retirou-se ele para o deserto, lugar tantas vezes escolhido por Deus para Se
comunicar com os homens. O isolamento proporciona uma perspectiva de eternidade
muito difícil de alcançar no meio das agitações da vida social. Bem sabiam
disso os anacoretas, como Santo Antão, os quais fugiam do convívio humano e se
instalavam em lugares ermos, em busca de condições mais favoráveis para o
contato com o sobrenatural.
A nobreza de alma e o
desprendimento do Precursor são postos em realce por essa escolha. Sendo
parente do Messias — a Virgem Maria era prima de sua mãe, Santa Isabel —,
podia
ele perfeitamente ter permanecido na casa de seus pais, beneficiando-se de um
convívio mais próximo com Jesus. Mas, dócil ao sopro do Espírito Santo, tomou o
caminho do deserto, dando extraordinário exemplo de flexibilidade à voz da
graça.
São João Batista foi,
em suma, uma figura ímpar na história de Israel. O tetrarca Herodes o
considerava homem justo e santo, e o protegia. Temia-o e gostava de ouvi-lo,
embora suas palavras o deixassem desconcertado. Seus ouvintes chegaram a se
perguntar interiormente se ele não era o Cristo. Mas o maior dos elogios feitos
ao Precursor saiu dos lábios divinos de Nosso Senhor: “Entre todos os nascidos
de mulher não há ninguém maior do que João” (Lc 7, 28).
Com efeito, dentre
todos os profetas do Antigo Testamento, só ele teve a incomparável glória de
encontrar-se pessoalmente com o Divino Salvador e apontá-Lo em termos
inteiramente claros: “Eis o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” (Jo 1,
29).
A alma desse
mensageiro tinha de estar à altura da sua missão. Superior a Abraão, a Moisés e
ao próprio Isaías, a Divina Providência quis fazer dele o arauto por
antonomásia. “Deus quer que ele seja grande porque sua missão é grande, porque
foi escolhido para preceder tão de perto Aquele que deve vir”.14
Uma nação convulsionada pela pregação de João
Ao encontro do
Batista acudiam, como vimos em São Marcos, habitantes de “toda a região da
Judeia e todos os moradores de Jerusalém” (Mc 1, 5). A esses se somaram pessoas
“de toda a região do Jordão” (Mt 3, 5) e até galileus, como André, o irmão de
Simão (cf. Jo 1, 35-42).
“Podemos imaginar —
observa Bento XVI — a impressão extraordinária que a figura e a mensagem de
João Batista deviam provocar na efervescente atmosfera de Jerusalém daquela
época. Finalmente estava de novo ali um profeta, cuja própria vida o
identificava como tal. Finalmente se anuncia de novo a ação de Deus na
História”.15
Movido por um impulso
sobrenatural, o povo judeu sentia haver naquela figura austera o prenúncio de
algo grandioso. Por isso acorriam todos a confessar-lhe suas faltas e receber o
batismo de suas mãos. A pregação de João convulsionara essa nação que há cerca
de duzentos anos não ouvia a voz de um profeta e precisava ser preparada para
receber o Messias.
O Precursor produzia
um verdadeiro choque naquelas pessoas acostumadas a se preocupar exclusivamente
com as coisas da Terra, adoradoras do conforto e da vida agradável. Ao
contrário da maioria dos seus ouvintes, comenta o Prof. Plinio Corrêa de
Oliveira, “ele é desprendido, é um facho ardente de amor de Deus. Só vive para
a realização da missão que ele tem. Só tem Deus diante dos olhos”. 16
E o mesmo autor
acrescenta: “Àquele povo que esperava um Messias temporal, um rei poderoso,
João aparecia falando do Messias. De um Messias que era anunciado não por um
guerreiro, nem por um potentado, mas por um penitente.
“O contraste dos
homens impuros e gananciosos, com aquele homem reto, simples, eloquente, e que
bradava: ‘Fazei penitência!’, deixava as consciências profundamente abaladas.
São João Batista
despertava um enorme sentimento de vergonha. No contato com ele, as pessoas
compreendiam que não podiam ser assim. E o Precursor completava o efeito,
dizendo: ‘Endireitai os caminhos do Senhor… Aí vem o Messias… O dia de Deus
está próximo’”.17
Entreabrem-se as portas da Revelação
7 “E pregava, dizendo: ‘Depois de mim virá alguém mais
forte do que eu. Eu nem sou digno de me abaixar para desamarrar suas sandálias.
8 Eu vos batizei com água, mas Ele vos batizará com o Espírito Santo’”.
Ao fazer tal
afirmação, o Batista dá ideia da força moral, espiritual e sobrenatural
d’Aquele que haveria de vir. E mostra, ao mesmo tempo, a humildade de sua alma,
pois competia aos servos “desamarrar as sandálias” e lavar os pés dos
visitantes.
Podemos imaginar o
impacto produzido por semelhante asserção nos seus ouvintes, acostumados a
vê-lo enfrentar com energia fariseus e saduceus. “O machado já está posto à
raiz das árvores. Toda árvore que não der bom fruto será cortada e arrojada ao
fogo” (Mt 3, 10) — ameaçava-os sem temor. Maravilhados, sem dúvida, com seus
ensinamentos, procuravam os discípulos do Precursor imaginar a grandeza desse
outro personagem de tal forma superior a ele.
Mas, enquanto
preparava o povo judeu para seu encontro com o Messias, São João Batista foi
entreabrindo as portas da Revelação que o próprio Filho de Deus vinha trazer.
Já nesses versículos (Mc, 1, 7-8) transparece o dogma da Santíssima Trindade.
Neles estão de algum modo presentes o Pai, Deus do Povo Eleito, o Filho, que
estava sendo anunciado, e o Espírito Santo, aqui mencionado junto com o anúncio
do Batismo sacramental. São João revela-se assim como um homem realmente
inspirado por Deus, pois demonstra conhecer um dos principais mistérios da Fé,
antes mesmo da pregação do Divino Mestre.
Ao dar início a vida
pública de Jesus, o Precursor vai paulatinamente desaparecer: “Esta é a minha
alegria que agora se completa. É necessário que Ele cresça, e eu diminua” (Jo
3, 30), vai afirmar. E, logo após, deixará como derradeiro ensinamento um dos
mais belos reconhecimentos da divindade de Cristo:
“Aquele que vem do
alto, está acima de todos. Quem é da Terra, pertence à Terra e fala as coisas
da Terra. Aquele que vem do Céu está acima de todos. Ele dá testemunho do que
viu e ouviu, mas ninguém aceita o seu testemunho. Quem aceita o seu testemunho
atesta que Deus é verdadeiro. De fato, Aquele que Deus enviou fala as palavras
de Deus, pois Ele dá o Espírito sem medida. O Pai ama o Filho e entregou tudo
em suas mãos. Aquele que crê no Filho tem a vida eterna. Aquele, porém, que se
recusa a crer no Filho não verá a vida, mas a ira de Deus permanece sobre ele”
(Jo 3, 31-36).
Continua no próximo post
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