Comentário ao
Evangelho – Missa da Ceia do Senhor Quinta -feira Santa
Amar aos outros
como Deus nos amou! Eis uma das mais belas formas de preparar-nos para a
Eucaristia no Tempo da Páscoa. Desse modo, estaremos imitando, em nossas vidas,
o divino Mestre no sublime ato do lava-pés.
I – Deus é amor
Um
insuperável clímax de plenitude de amor atinge o Sagrado Coração de Jesus
naquelas últimas horas de convívio com os Seus. Transcorrem ali, naquele
histórico recinto, os momentos finais de Sua vida terrena. São os derradeiros
episódios que constituem o grande pórtico dos sagrados mistérios da Redenção
prestes a realizarem-se. Os inimigos se agitam e se entre-estimulam a perpetrar
o mais grave homicídio de todos os tempos. Encontram-se eles na dependência de
um guia possuído por Satanás, aguardando o momento propício para agarrar o
Messias e conduzi-Lo aos tormentos da Cruz. Não há minuto a perder, é
indispensável o Salvador externar ao Pai e aos discípulos o transbordante amor
a borbulhar no interior de Seu Sagrado Peito.
As
primeiras manifestações desse amor já haviam se dado na própria obra da
Criação. Desfrutando de perfeita felicidade em Si mesmo, desde toda a
eternidade, não necessitava Deus de nenhum ser que O completasse. Entretanto,
por amor, quis Ele comunicar Suas infinitas perfeições às criaturas, de maneira
que estas Lhe rendessem a glória extrínseca. Com especial benevolência,
concebeu os Anjos e os homens à Sua imagem, destinando-os a participar da vida
e da natureza divinas, pela Graça. E eles, seres racionais, encontram sua
felicidade em glorificar seu Criador, pois “o mundo foi criado para a Glória de
Deus”.
A Criação
foi, portanto, o início ad extra da demonstração de Seu amor divino. “Se Deus
produziu as criaturas — afirma São Tomás — não é porque delas necessite, nem
por nenhuma outra causa exterior, mas por amor de sua bondade”. E Royo Marín,
citando Chaine, acrescenta: “O amor é o atributo que melhor nos dá a conhecer a
natureza de Deus [...]. É de tal maneira representativo, que São João não o
considera como atributo, mas como a expressão da própria natureza de Deus”.
Deus
caritas est (I Jo 4, 16), e “na história de amor que a Bíblia nos narra —
ensina Bento XVI na encíclica assim intitulada — Ele vem ao nosso encontro,
procura atrair-nos, chegando até a Última Ceia, até o Coração trespassado na
Cruz, até as aparições do Ressuscitado e as grandes obras pelas quais Ele,
através da ação dos Apóstolos, guiou o caminho da Igreja nascente”.
Eis
algumas considerações que nos levam a ver no Cenáculo, um símbolo e lição da
perfeita Caridade. Na Antiga Lei, o amor não era universal. Limitava-se ao
benfeitor, ao amigo, ao conacional. Ademais, a medida do amor era, então, o
empregado a nós mesmos. A partir de Cristo, trata-se de um mandamento novo, tal
qual encontramos na aclamação do Evangelho de hoje: “Amai-vos uns aos outros, como
Eu vos tenho amado” (Jo 15, 12).
1
“Antes da festa da Páscoa, Jesus sabia que tinha chegado Sua hora de passar
deste mundo para o Pai; tendo amado os Seus que estavam no mundo, amou-os até o
fim”.
Alguns
comentaristas afirmam que a expressão “até o fim” significa que Ele amou Seus
discípulos até a hora da morte, mas esta interpretação nos parece incompleta.
Num plano mais profundo, as palavras de Jesus refletem o desejo de levar Seu
amor pelos homens até um limite inimaginável: “até a perfeição”, escreve
Fillion, baseando-se em São João Crisóstomo e vários outros autores.6 O próprio
Deus vai entregar-Se como vítima expiatória. O Inocente imolar-Se-á pelos
culpados. Impossível demonstração maior de amor! Neste afeto estamos todos
concernidos. Cada um de nós, portanto, foi amado “até o fim”.
Sabendo
perfeitamente que iria passar por todos os inenarráveis tormentos da Paixão, o
Divino Mestre os quis, quase diríamos, com sofreguidão. Assim, começa Ele a
Ceia dizendo: “Há muito que Eu desejei comer esta Páscoa convosco” (Lc 22, 15).
Era
aquele o derradeiro momento de convívio com os Seus. A partir dali, tudo não
seria senão sofrimento, humilhação e dor. Por isso Jesus, “cuja ternura para
Seus discípulos não conhece limites, vai multiplicar as demonstrações dela,
antes de morrer. A todos os benefícios com os quais os cumulou, acrescentará
novos, que superam os anteriores. Ele os reservou para o fim, como seu supremo
legado”.
Judas estava determinado a cometer o crime
2
“Estavam tomando a ceia. O diabo já tinha posto no coração de Judas, filho de
Simão Iscariotes, o propósito de entregar Jesus”.
Estava
presente Judas Iscariotes, que já resolvera participar do horroroso crime de
deicídio. A esse respeito, assim se refere Santo Agostinho: “Judas tinha já
decidido em seu coração ceder às sugestões diabólicas e trair um Mestre em quem
não aprendera a conhecer a Deus. Viera ao banquete já com essa disposição, como
explorador do Pastor, como armador de insídias ao Salvador, como vendedor do
Redentor”.8
São João
Crisóstomo nota ter sido intenção do Evangelista “deixar claro que Cristo lavou
os pés do homem que havia já decidido traí-Lo”,9 ressaltando, assim, a
paciência e clemência de Jesus. Logo a seguir, porém, aponta como o Discípulo
Amado visava também acentuar “a enorme maldade daquele homem, porque não o
levavam a desistir nem o fato de compartilhar a hospitalidade de Cristo, embora
fosse este o mais eficaz freio para a maldade, nem sequer o de que Cristo
continuava sendo seu mestre, suportando-o até o último dia”.
O Mestre lava os pés dos discípulos
3
“Jesus, sabendo que o Pai tinha posto tudo em Suas mãos e que de Deus tinha
saído e para Deus voltava, 4 levantou-Se da mesa, tirou o manto, pegou uma
toalha e amarrou-a na cintura. 5 Derramou água numa bacia e começou a lavar os
pés dos discípulos, enxugando-os com a toalha com que estava cingido”.
Comentando
essa afirmação de São João, “Sabendo que o Pai tinha posto tudo em Suas mãos”,
explicita Santo Agostinho: “Portanto, também o próprio traidor, pois se não o
houvesse tido em suas mãos, não teria podido servir-Se dele à vontade. Estava
já, portanto, entregue ao traidor, precisamente ao que desejava entregá-Lo, de
modo que quando O entregasse para o mal, saísse de sua traição um bem que ele
ignorava. Sabia muito bem o que estava fazendo por seus amigos esse Senhor que
Se servia pacientemente de seus inimigos”.11
Para
entender estes versículos, devemos levar em consideração os costumes orientais
de há dois mil anos, bem distintos dos nossos. Naquele tempo, era praxe, para
manifestar deferência, os servos lavarem os pés dos convidados, com água, perfumes
e unguentos, nos banquetes e jantares solenes. Ora, isso jamais era feito pelo
próprio anfitrião. Tratava-se de serviço próprio aos escravos.
Nesta
Ceia, quem era o Anfitrião? Nada mais nada menos que o próprio Deus feito
homem. Aquele em cujas mãos “o Pai tinha posto tudo” e que “de Deus tinha saído
e para Deus voltava”, vai fazer papel de servo, lavando os pés dos que O
reverenciavam como Mestre e Senhor. Belamente interpreta os pormenores desta
cena o gênio de Santo Agostinho, ao afirmar: “Tirou Seu manto Aquele que, sendo
Deus, aniquilou-Se a Si mesmo; cingiu-Se com uma toalha Aquele que recebeu a
forma de servo; derramou água numa bacia para lavar os pés de Seus discípulos
Aquele que verteu Seu Sangue para com ele lavar as manchas do pecado”
Gesto tão
inusitado não podia deixar de causar perplexidade nos Apóstolos, como bem
comenta o mesmo santo: “Quem não se encheria de estupor se o Filho de Deus lhe
lavasse os pés?”
Cristo dava em tudo prioridade a Pedro
6 “Chegou, assim, a Simão Pedro”.
Alguns comentaristas antigos — como Orígenes, Leôncio,
Crisóstomo, Teofilacto e Eutímio — opinam que Nosso Senhor começou por lavar os
pés de Judas “para pagar ao traidor o mal com o bem e comovê-lo por meio de um
benefício singular, bem como advertir-nos de que devemos agir semelhantemente
com nossos inimigos”.
Mas Santo Agostinho, São Beda e muitos outros autores
afirmam ter Ele começado por Pedro. “Primeiro, porque é certo que em tudo
Cristo dava prioridade a Pedro, como cabeça dos demais Apóstolos; segundo, por
não se poder acreditar que os outros Apóstolos não protestassem caso Cristo
começasse por eles”.
Nunca devemos rejeitar uma Graça
6“Pedro disse: ‘Senhor, tu me lavas os pés?’. 7 Respondeu
Jesus: ‘Agora, não entendes o que estou fazendo; mais tarde compreenderás’. 8
Disse-lhe Pedro: ‘Tu nunca me lavarás os pés!’. Mas Jesus respondeu: ‘Se Eu não
te lavar, não terás parte comigo’. 9 Simão Pedro disse: ‘Senhor, então lava não
somente os meus pés, mas também as mãos e a cabeça’. 10 Jesus respondeu: ‘Quem
já se banhou não precisa lavar senão os pés, porque já está todo limpo. Também
vós estais limpos, mas não todos’”.
Ao ver Cristo Se aproximar para lavar-lhe os pés, São
Pedro, sempre impulsivo, teve um verdadeiro sobressalto. Como os demais Apóstolos,
não podia compreender naquele momento a transcendência do gesto do Divino
Mestre. Mas Nosso Senhor lhe adverte que se não o permitisse, não teria parte
com Ele.
Podemos imaginar o que deve ter sido sentir os próprios
pés sendo lavados pela Segunda Pessoa da Santíssima Trindade! Não terá ele
experimentado também, à medida que as sagradas e adorabilíssimas mãos de Jesus
retiravam a poeira do caminho, que todos os passos dados por esses pés, que não
foram bons, ou foram quiçá pecaminosos, estavam sendo perdoados e uma alvura
divina penetrava em sua alma?
E nós? Se quisermos ter parte com Jesus, devemos pedir,
como São Pedro, a Graça de sermos purificados por inteiro, ou seja, que o
preciosíssimo Sangue do Redentor limpe todas as nossas faltas. Pois, como
sublinha Maldonado, “na pessoa de Pedro, o Senhor fala a todo o gênero humano,
e nos ensina que ninguém terá parte com Ele se não se deixar lavar por Ele. Com
efeito, quem poderá salvar-se sem ser lavado e purificado pelo Sangue de
Jesus?”
Ora, o exemplo do Príncipe dos Apóstolos ensina-nos
também que, para participarmos do Divino Banquete, precisamos ter em relação a
Jesus uma atitude de total aceitação, nunca rejeitando alguma graça que Ele
queira nos conceder, por mais inexplicável, ou até imerecida, que ela nos possa
parecer. A esse respeito, sublinha um piedoso comentarista: “Quão importante é
não se opor à vontade de Deus nem à dos superiores que O representam, mesmo sob
o falacioso pretexto da piedade ou da humildade! São Basílio tira desta
passagem do Evangelho duas regras de conduta cheias de sabedoria: desagrada a
Deus quem se opõe à sua vontade, mesmo se o faz com boa intenção; deve-se
aceitar com a maior docilidade possível tudo quanto quer o Senhor”.17 Santo
Agostinho assim comenta o diálogo entre o Salvador e Pedro: “‘Agora, não
entendes o que estou fazendo; mais tarde compreenderás’. Assustado pela
profundidade daquela ação do Senhor, não permite que se lhe faça aquilo cujo
motivo ignora; não pode ver, não pode resistir a Cristo humilhado aos seus pés.
‘Tu nunca me lavarás os pés!’. “
‘Se Eu não te lavar, não terás parte comigo.’ Então,
angustiado entre o amor e o temor, e mais inquieto por ser negado por Cristo do
que por vê-Lo assim humilhado, replicou: ‘Senhor, então lava não somente os
meus pés, mas também as mãos e a cabeça’. Se assim ameaças, aqui tens meus
membros e, além de não tirar o mais baixo, entrego-Te o mais alto”.
Quanto ao simbolismo do gesto de lavar a cabeça e as
mãos, lembremos ainda o comentário do grande São Bernardo: “Está lavado quem
não tem pecados graves; aquele cuja cabeça, isto é, sua intenção, e cujas mãos,
ou seja, sua conduta e suas obras, estão limpas”.
Entretanto, nem todos estavam limpos para o Banquete
Eucarístico que iria, em seguida, se realizar.
Eis o que a esse propósito nos diz Luís de Granada:
“Contempla, pois, nesta Ceia, ó minha alma, teu doce e benigno Jesus, e observa
o exemplo de inestimável humildade que Ele aqui te dá, levantando-Se da mesa e
lavando os pés de Seus discípulos. Ó bom Jesus, o que fazes?! Ó doce Jesus, por
que tanto Se humilha tua majestade?! O que sentirias, minha alma, se visses
Deus ali ajoelhado aos pés dos homens, aos pés de Judas? Oh, cruel, como não se
abranda teu coração ante tão grande humildade? Como tamanha mansidão não é
capaz de partir tuas entranhas? É possível que tenhas decidido vender esse
mansíssimo Cordeiro? É possível que esse exemplo não te cause agora
compunção?”.
Também nós devemos estar dispostos a fazer o papel de servo
“Jesus sabia quem O ia entregar; por isso disse: ‘Nem
todos estais limpos’”.
Está
claramente afirmado neste versículo que todos, menos um, estavam na graça de
Deus. Um ali era traidor, mas, mesmo a este, Jesus estava disposto a perdoar!
Daí esta insinuação, que era, como bem a propósito sublinha o padre Truyols,
“uma delicada alusão a Judas, um último convite do Bom Pastor à ovelha
desgarrada”. Se, naquele momento, ele tivesse tido pelo menos um movimento de
alma de arrependimento, e pedido interiormente perdão, sua história teria sido
outra. “Como, porém, estava já muito endurecido no mal, permaneceu insensível à
advertência”, observa Fillion.
Desde
toda a eternidade tinha visto Nosso Senhor essa recusa de Judas, e naquele
momento estava comprovando-a enquanto homem. Pelo discernimento dos espíritos,
que possuía em sumo grau, penetrava na alma do traidor e via aquela
determinação horrorosa. Apesar disso, ajoelhou-Se diante dele e lavou-lhe os
pés.
Jesus nos
deu essa lição para compreendermos quanto Ele nos ama e até que ponto deseja
perdoar a todos e a cada um. Mas também para nos ensinar a suportar todas as
misérias, dificuldades e contratempos causados pelo convívio humano. Comenta,
com muito senso psicológico, São Bernardo: “Vós talvez enrubesceríeis por
imitar a humildade de um homem; imitai pelo menos a humildade de um Deus, pois
aqui está o que torna a humildade tão recomendável”.
Por mais
que possamos encontrar dificuldades temperamentais ou inconveniências no
relacionamento com os outros, devemos imitar Jesus, tratando cada um de nossos
irmãos como Ele tratou Judas no lava-pés.
As
relações humanas podem ser, no princípio, repletas de alegria e de suavidade,
mas logo depois costumam aparecer os percalços, as rusgas, as dificuldades. São
as contingências deste vale de lágrimas. Nesses momentos, devemos lembrar-nos
da Santa Ceia, estando dispostos a fazer o papel de servo uns em relação aos
outros, a perdoar o irmão a ponto de esquecer qualquer desgosto que nos tenha
dado; em suma, a estimá-lo como se víssemos nele a própria figura de Jesus.
Figura da caridade fraterna
12
“Depois de ter lavado os pés dos discípulos, Jesus vestiu o manto e sentou-Se
de novo. E disse aos discípulos: ‘Compreendeis o que acabo de fazer? 13 Vós Me
chamais de Mestre e Senhor, e dizeis bem, pois Eu o sou. 14 Portanto, se Eu, o
Senhor e Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns dos
outros. 15 Dei-vos o exemplo, para que façais a mesma coisa que Eu fiz’”.
Santo
Agostinho, com seu voo de águia nos céus da teologia e da piedade, nos deixou
esta bela consideração a respeito dos presentes versículos: “Ó bem-aventurado
São Pedro! Isso é o que ignoravas quando não permitias que te lavasse; isso é o
que teu Senhor e Mestre prometeu que haverias de saber depois, quando te
assustou para que Lhe permitisses lavar-te. Aprendamos, irmãos, a humildade do
Altíssimo; façamos uns aos outros, humildes, o que o Altíssimo fez
humildemente. Grande é este sermão sobre a humildade. Alguns irmãos o põem em
prática com obras visíveis, quando recebem outros hospitaleiramente,
conservando esses costumes humildes (I Tm 5, 10). Contudo, onde não mais
existem esses costumes, os santos executam com o coração aquilo que não fazem
com as mãos, se realmente podem ser contados no número daqueles dos quais diz o
hino dos três santos varões: ‘Santos e humildes de coração, bendizei o Senhor’”
(Dn 3, 87).24
A
afirmação de Nosso Senhor nesse versículo 13 — “Eu o sou” — evoca poderosamente
o “Eu sou Aquele que é”, do Antigo Testamento, bem como a resposta com a qual
Ele prostrará por terra os soldados, no Horto das Oliveiras: “Ego sum – Sou Eu”
(Jo 18, 5).
Cristo
faz o papel de servo, salienta Fillion, “com pleno conhecimento e convicção de
Sua divindade”.25 Sabia que “o Pai tinha posto tudo em Suas mãos” e — como bem
pondera o padre Truyols — “tendo perfeita consciência do ilimitado poder que o
Pai lhe conferira, de ter sido engendrado pelo mesmo Pai e de que brevemente
subiria aos Céus para sentar-Se à Sua direita, apesar de conhecer muito bem
esta Sua excelsa grandeza e infinita dignidade, quis Jesus abaixar-Se a ponto
de lavar os pés de Seus discípulos”.26
Esclarece
o mesmo Fillion: “Claro que Jesus não tencionava fazer do lava-pés uma
instituição durável e um rito obrigatório; Seu ato era, antes de tudo, figura
da caridade fraterna que os cristãos devem exercer mutuamente”.27 Na mesma
linha, observa o Cardeal Gomá: “Jesus nos apresenta a espécie como gênero, um
caso particular como lei geral: pelo lava-pés, devemos entender todos os
exemplos de humildade e de caridade”.28
A lição
dada por Nosso Senhor representava uma monumental quebra dos padrões vigentes.
Ele queria dar o exemplo de quanto devemos nos interessar pelos outros,
sobretudo no que diz respeito à salvação da alma, preocupando-nos de que cada
um dos nossos irmãos progrida cada vez mais na vida espiritual, tal como
pondera, de modo admirável, Santo Agostinho: “Além dessas considerações morais,
podemos entender que o Senhor nos recomenda lavar-nos uns aos outros —
purificando nossos afetos — esses pecados que aderem a nós quando caminhamos
pelo mundo. Como será isso? Podemos acaso dizer que alguém tem possibilidade de
limpar seu irmão do contágio dos delitos? Claro que sim! E disso somos
advertidos também por esses assombrosos atos do Senhor, ou seja, que,
confessando-nos mutuamente nossos delitos, oremos por nós como Cristo intercede
por nós (cf. Rm 8, 34). Ouçamos o Apóstolo São Tiago que nos ordena isso,
dizendo com toda clareza: ‘Confessai mutuamente vossos pecados e orai uns pelos
outros para serdes salvos’ (Tg 5, 16). […]
“Portanto,
perdoemo-nos mutuamente nossos pecados, oremos mutuamente por nossos delitos, e
assim, de certo modo, nos lavaremos os pés uns aos outros. A nós cabe, por sua
Graça, esse ministério da caridade e da humildade, enquanto a Ele corresponde
escutar-nos e limpar-nos de toda mancha de pecado, por Cristo e em Cristo, para
que aquilo que perdoemos, isto é, aquilo que desliguemos na terra, seja
desligado no Céu’”.29
III - Preparação para a Eucaristia
A
instituição da Eucaristia sucedeu imediatamente ao lava-pés, com o qual tem ela
íntima relação. “Cristo executou tal ação ou cerimônia com o objetivo de
ensinar, por meio desse simbolismo externo, que os homens não devem
aproximar-se da sacrossanta e divina Eucaristia impuros e manchados”, afirma
Maldonado.30
A
Eucaristia é um Sacramento insuperável, porque não há outro cuja substância
seja o próprio Deus. No Batismo, que nos abre as portas para a participação da
vida divina, Nosso Senhor Jesus Cristo está como Autor, não como substância.
Mas no Sacramento da Eucaristia, Ele está como Autor e como Substância, em
Corpo, Sangue, Alma e Divindade. Essa é a principal razão pela qual São Tomás a
considera o mais importante dos Sacramentos, em termos absolutos.31
Na
Sagrada Hóstia, o Criador Se doa à criatura e, ao mesmo tempo, assume-a e transforma,
tornando-a mais semelhante a Ele. E, se ela corresponde ao seu amor, estabelece
com ela uma “comunhão de vontade” que, conforme ensina o Papa Bento XVI,
“cresce em comunhão de pensamento e sentimento”.
Logo
adiante, esclarece o Pontífice como daí floresce o amor ao próximo: “Revela-se,
assim, como possível o amor ao próximo no sentido enunciado por Jesus, na
Bíblia. Consiste precisamente no fato de que eu amo, em Deus e com Deus, a
pessoa que não me agrada ou que nem conheço sequer. Isto só é possível
realizar-se a partir do encontro íntimo com Deus, um encontro que se tornou
comunhão de vontade, chegando mesmo a tocar o sentimento. Então aprendo a ver
aquela pessoa já não somente com os meus olhos e sentimentos, mas segundo a
perspectiva de Jesus Cristo”.32
Quem
participa do Sagrado Banquete sem ter pelos seus irmãos esse amor do qual nos
deu exemplo Nosso Senhor, está ainda, por assim dizer, com “os pés sujos”. Mas
quando nos aproximamos da Mesa Eucarística tão cheios de preocupação pelos
outros quanto por nós mesmos, ou até mais ainda, agradamos a Deus de tal forma
que Ele derrama sobre nossas almas abundantíssimas e renovadas Graças.
Amar aos
outros como Deus nos amou! Eis uma das mais belas formas de preparar-se para a
Eucaristia no tempo da Páscoa que agora começa. Se assim fizermos, estaremos
imitando, de fato, em nossas vidas, o Divino Mestre no sublime ato do lava-pés.
E ninguém melhor para interceder por nós e promover a limpeza de nossas almas
para acercar-nos do Pão dos Anjos, do que Maria Santíssima. Recorramos a Ela,
sempre.
1Cf. ROYO MARÍN, OP, Antonio. Teología de la Perfección Cristiana. Madrid:
BAC, 2001, p.48.
2 Catecismo da Igreja
Católica, n.293.
3 SÃO TOMÁS DE AQUINO.
Suma Teológica, I, q.32, a.1, ad 3. Consideremos também que Deus tinha
possibilidade de criar infinitos seres humanos e angélicos. Foi, portanto, um
ato de amor, de eleição, que O levou a criar cada um de nós.
4 CHAINE, apud ROYO MARÍN, OP, Antonio. Teología de la caridad. Madrid:
BAC, 1963, p.6.
5 BENTO XVI, Deus Caritas
est, n.17.
6 Cf. FILLION, Louis-Claude. La sainte Bible commentée.
Paris: Letouzey, 1912, t.VII, p.556.
7 Explication des Évangiles. Hong-Kong: Imprimerie de la Société des
Mission-Étrangères, 1940, t.II, p. 296.
8 SANTO AGOSTINHO. In Evangelium Ioannis,
tr. 55, 4: PL 35, 1786.
9 SAN JUAN CRISÓSTOMO. Homilías sobre el Evangelio de San Juan/III
(61-88). Madrid: Ciudad Nueva, s/d. p.104.
10 Idem, ibidem.
11 SANTO AGOSTINHO. Op.
cit., tr. 55, 5: PL 35, 1786.
12 SAN AGUSTÍN, apud SANTO TOMÁS DE AQUINO. Catena
aurea.
13SANTO AGOSTINHO. In
Evangelium Ioannis, tr. 56, 1: PL 35, 1787.
14 MALDONADO, SJ, Juan de. Comentarios a
los cuatro Evangelios – III Evangelio de San Juan. Madrid:
BAC, 1954, p.753.
15 Idem, p.754.
16Idem, p.758.
17 Explication des
Évangiles. Hong-Kong: Imprimerie de la Société des Mission-Étrangères, 1940,
t.II, p.301.
18 SANTO AGOSTINHO. Op. cit., tr. 56, 2: PL 34, 1788.
19 SAN BERNARDO. Obras completas. Madrid: BAC, 1953,
v.I, p.496.
20 LUIS DE GRANADA. Obra selecta c. 26 p. 811
Oración y meditación p. 1ª c. 3.
21 FERNÁNDEZ TRUYOLS, SJ, Andrés. Vida de
Nuestro Señor Jesucristo. Madrid: BAC, 1954,
p.577.
22 FILLION, Louis-Claude. Vida de Nuestro Señor
Jesucristo. Pasión, Muerte y Resurrección. Madrid: Rialp, s/d., v.III, p.111.
23 SÃO BERNARDO apud
Explication des Évangiles. HongKong: Imprimerie de la Société des Mission
Étrangères, 1940, t.II, p. 305.
24 SANTO AGOSTINHO, op.
cit., tr. 58, 4. PL 35, 1794.
25 FILLION, op. cit., p.110.
26 FERNÁNDEZ TRUYOLS, SJ, op. cit., p.576.
27 FILLION,
op. cit., p.112.
28 GOMÁ Y TOMÁS, Isidro. El Evangelio explicado. Barcelona:
Casulleras, 1930, v.IV, p.179.
29 SANTO AGOSTINHO, op.
cit., tr. 58, 5. PL 35, 1794.
30 MALDONADO, SJ, op. cit., p.747-748.
31 Cf. SÃO TOMÁS DE
AQUINO. Suma Teológica, III, q. 65, a. 3.
32 BENTO XVI, Deus Caritas
est, n.18.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Escreva seus comentarios e sugerencias