COMENTÁRIO AO EVANGELHO – SOLENIDADE DA ASCENSÃO DO SENHOR
Naquele tempo, Jesus Se manifestou aos onze discípulos,
15 e disse-lhes: “Ide pelo mundo inteiro e anunciai o Evangelho a toda
criatura! 16 Quem crer e for batizado será salvo. Quem não crer será condenado.
17 Os sinais que acompanharão aqueles que crerem serão estes: expulsarão
demônios em meu nome, falarão novas línguas; 18 se pegarem em serpentes ou
beberem algum veneno mortal, não lhes fará mal algum; quando impuserem as mãos
sobre os doentes, eles ficarão curados”. 19 Depois de falar com os discípulos,
o Senhor Jesus foi levado ao Céu, e sentou-Se à direita de Deus. 20 Os
discípulos então saíram e pregaram por toda parte. O Senhor os ajudava e
confirmava sua palavra por meio dos sinais que a acompanhavam (Mc 16, 15-20)
Subiremos ao Céu em virtude da Ascensão!
A
Ascensão de Jesus nos dá a certeza de que teremos o mesmo destino se seguirmos
o mandato que Ele nos deu neste dia.
Mons. João Scognamiglio Clá Dias,
EP
I – A MISSÃO DE TRANSMITIR O INTRANSMISSÍVEL...
O Papa São Pio X,
mesmo em meio às inúmeras ocupações inerentes à sua condição de Pastor
Universal da Santa Igreja, empenhava-se em dar aulas de catecismo, todas as
semanas, a crianças das paróquias de Roma que se preparavam para a Primeira Comunhão,
das quais participavam também incontáveis fiéis.1 E afirmava algo
impressionante: para lecionar uma hora de catecismo são necessárias duas de
estudo. De modo análogo, um bom pregador, incumbido de dirigir exercícios
espirituais pelo período de cinco dias, precisa dedicar cerca de quinze para
organizá-los, selecionar matéria adequada e se adaptar à psicologia do público,
a fim de obter os frutos desejados. Idêntico processo compete a professores,
conferencistas e todos os que têm a missão de ensinar, dado que o princípio
geral é invariável: sempre que nos cabe formar outros, devemos aprender muito
além do que vamos transmitir e nos embebermos de seu conteúdo.
Foi o que sucedeu aos
Apóstolos: Deus os escolheu para serem testemunhas e difusores do Evangelho no
mundo inteiro, e para isso era indispensável que se tornassem profundos
conhecedores de tudo quanto haviam sido chamados a comunicar. No entanto, o que
escreveram ou disseram era uma porcentagem ínfima em comparação com o que viram
e viveram.
O fogo do Apóstolo: fruto da experiência mística
Exemplo cogente disto
é a figura de São Paulo. De onde hauriu ele tudo quanto declara em suas densas
cartas? Em primeiro lugar, recebeu uma graça de conversão — aquela que produz
os efeitos para o que foi criada (cf. At 9, 1-19; 22, 4-16; 26, 10-18; Gal 1,
13-17). Ia ele capturar cristãos na região de Damasco quando, ainda a caminho,
Nosso Senhor o fez “cair do cavalo” e perguntou: “‘Saulo, Saulo, por que Me
persegues?’. Saulo disse: ‘Quem és, Senhor?’. Respondeu Ele: ‘Eu sou Jesus, a
quem tu persegues. Duro te é recalcitrar contra o aguilhão’. Então, trêmulo e
atônito, disse ele: ‘Senhor, que queres que eu faça?’” (At 9, 4-6). Nesta hora
foi-lhe concedido o dom da fé, para crer na voz que o interpelava; caso contrário,
teria se levantado arrogante, desafiando a Deus.
A partir daí, o
Divino Mestre trabalhou a fundo sua alma e começou a prepará-lo para ser o
propagador do Evangelho por excelência. O retiro feito por ele no deserto da
Arábia (cf. Gal 1, 17-18) teve enorme papel nesta transformação, pois ao longo
deste período, segundo revelações particulares, gozou da companhia do
Homem-Deus em Corpo glorioso.
E quiçá mais
assinalável tenha sido o êxtase no qual São Paulo, sendo arrebatado ao terceiro
Céu, “ouviu palavras inefáveis, que não é permitido a um homem repetir” (II Cor
12, 4). Tais prerrogativas levaram-no a empreender um anúncio da Boa-nova mais
eficaz que o dos Doze (cf. I Cor 15, 10). Poderíamos comparar a pregação do
Apóstolo à situação de alguém que fosse contar às pessoas de uma civilização
hipotética existente debaixo da terra o que se passa à luz do Sol. Neste caso
talvez houvesse certa proporção entre um mundo e outro, mas o que foi dado a
São Paulo vislumbrar está tão acima daquilo que conhecemos, que ele apenas
conseguiu dizer: “os olhos não viram, nem os ouvidos ouviram, nem o coração
humano imaginou, tais são os bens que Deus tem preparado para aqueles que O
amam” (I Cor 2, 9).
Semelhante
dificuldade enfrentam os que, contemplados com graças místicas que lhes fazem
sentir em seu interior quem é Deus, não encontram termos adequados no
vocabulário humano para explicar sua experiência: “A razão humana desfalece
ante tão incompreensíveis mistérios, mas os corações iluminados sentem e
experimentam, já nesta vida, tal realidade inefável que não pode caber em
palavras nem em conceitos e, menos ainda, em sistemas humanos. O que estas
almas conseguem balbuciar desconcerta as nossas débeis apreciações: elas
multiplicam os termos que parecem mais exagerados, sem ainda estar satisfeitas
com isso, pois sempre veem que ficam aquém, que a realidade é incomparavelmente
maior de quanto possa ser dito”.2
O segredo da profundidade dos escritos paulinos
A Epístola aos
Efésios — da qual a Liturgia recolhe um trecho para uma das opções de segunda
leitura (Ef 1, 17-23) — é ilustrativa neste sentido. Mais que uma missiva, ela
é quase um tratado no qual São Paulo se empenha em transmitir o que lhe foi
manifestado a respeito de Nosso Senhor e da glória eterna que nos está reservada.
Suas afirmações demonstram de sobejo que ele viu mais do que aquilo que
escreveu: “O Deus de Nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai a quem pertence a glória,
vos dê um espírito de sabedoria que vo-Lo revele e faça verdadeiramente
conhecer” (Ef 1, 17). São Paulo deseja instruir sobre algo, que a tal ponto
foge aos interesses humanos, materiais e imediatos, que sem o espírito da
sabedoria de Deus não pode ser assimilado. Afinal, como é possível discorrer
sobre o que ninguém vê? De que maneira tratar de uma realidade acima de toda e
qualquer cogitação humana? Como falar daquilo que depende de um fenômeno
místico? Para entender é preciso uma revelação vinda do Céu, e é a isto que ele
se refere, como indica a construção de sua frase em grego: “os dois genitivos
‘de sabedoria e de revelação’ [...], dependentes do substantivo ‘espírito’, se
complementam mutuamente e aqui significam um conhecimento íntimo e profundo de
Deus e de seus planos de salvação, ao qual o homem, por suas próprias forças,
não pode chegar”.3 Por este motivo insiste, pedindo a Nosso Senhor que “abra o
vosso coração à sua luz para que saibais qual é a esperança que o seu
chamamento vos dá, qual a riqueza da glória que está na vossa herança com os
Santos” (Ef 1, 18).
Nossa esperança se fundamenta no poder de Deus
A esperança! Esta
virtude teologal nos faz possuir, por antecipação, as maravilhas inimagináveis
que receberemos em plenitude no fim do estado de prova e para as quais o
Apóstolo aponta em sua carta.
Deus nos predestinou
à salvação desde toda a eternidade e, antes mesmo de sermos criados, já havia
determinado a via de santificação de cada um, antegozando o momento em que
nasceríamos e começaríamos a trilhá-la. Alimentando nossa esperança em meio às
dores da vida, Ele age conosco como alguém que, tendo construído um palácio
para nós em local de difícil acesso, nos conduz a ele por um caminho no meio de
um matagal, cheio de espinheiros e charcos próprios a causar apreensão. E
anseia por nos levar quanto antes até uma clareira de onde possa mostrar, à
distância, o edifício, a fim de nos encorajar a continuar o caminho.
Mais adiante,
menciona São Paulo o “imenso poder que Ele exerceu em favor de nós que cremos,
de acordo com sua ação e força onipotente” (Ef 1, 19). Com efeito, se a salvação
estivesse sujeita aos nossos esforços nós não iríamos para o Céu, como mostra o
episódio do moço rico que, ao ser chamado por Nosso Senhor, negou-se a
abandonar tudo para segui-Lo, o que levou Jesus a dizer: “É mais fácil passar o
camelo pelo fundo de uma agulha do que entrar o rico no Reino de Deus” (Mc 10,
25). A afirmação surpreendeu os Apóstolos, que “se admiravam, dizendo a si
próprios: ‘Quem pode então salvar-se?’. Olhando Jesus para eles, disse: ‘Aos
homens isso é impossível, mas não a Deus; pois a Deus tudo é possível’” (Mc 10,
26-27). Sim, graças ao seu poder progredimos nas veredas da perfeição e,
sobretudo, perseveramos até o término de nossa peregrinação terrena. Eis a
principal razão que deve nos mover a depositar n’Ele toda a nossa esperança.
Entretanto, haverá alguma garantia de que ela será recompensada?
A Ascensão de Jesus é fonte de esperança
São Paulo responde a
esta questão nos versículos seguintes, aludindo ao acontecimento grandioso
comemorado nesta Solenidade: Deus “manifestou sua força em Cristo, quando O
ressuscitou dos mortos e O fez sentar-Se à sua direita nos Céus, bem acima de
toda a autoridade, poder, potência, soberania ou qualquer título que se possa
nomear não somente neste mundo, mas ainda no mundo futuro” (Ef 1, 20-21).
Com a Ascensão,
magnífico mistério de nossa Fé recordado num dos artigos do Credo — “subiu aos
Céus e está sentado à direita do Pai” —, Nosso Senhor Jesus Cristo passou a
ocupar seu lugar à destra do Pai como Homem, pois enquanto Deus já Se
encontrava junto d’Ele desde toda a eternidade.4 Tendo-Se unido à natureza
humana pela Encarnação, desejava que esta natureza, por Ele representada, fosse
introduzida na glória. Até então ninguém havia transposto os umbrais do Céu,
inacessível aos homens em consequência do pecado original; só Deus Pai, Deus
Filho, Deus Espírito Santo e seus Anjos lá habitavam. As almas dos justos
permaneciam no Limbo à espera da Redenção e ali mesmo gozaram da visão
beatífica, ao serem visitados por Nosso Senhor no instante de sua Morte.5 Mas
só quando Jesus ascendeu ao Céu estes eleitos lá penetraram,6 preenchendo os
lugares vazios deixados por Lúcifer e seus sequazes. Precedida por Nosso Senhor
Jesus Cristo, aquela plêiade de almas santas entrou na glória, a começar por
São José, seu pai adotivo, seguido por Adão e Eva, pelos profetas, patriarcas,
mártires da Antiga Lei e uma milícia de homens e mulheres, constituindo “um
povo tão numeroso entre esta raça justamente condenada, que vem ocupar a
vacância deixada pelos anjos [decaídos]. E, assim, esta Cidade amada e
soberana, longe de se ver defraudada no número de seus cidadãos, se regozija em
reunir um número talvez maior”.7
Sendo Jesus Cristo a
“Cabeça da Igreja, que é o seu Corpo” (Ef 1, 22) — como declara o Apóstolo, com
muita clareza e senso teológico —, e uma vez que o Corpo não pode subsistir
destacado da Cabeça, nós, enquanto seus membros, também ingressaremos na Morada
Celeste.8 Sua Ascensão é para nós penhor de que seguiremos o mesmo caminho: no
dia do Juízo Final retomaremos nosso corpo em estado glorioso e subiremos ao
Céu, “ao encontro do Senhor nos ares” (I Tes 4, 17). A realização desta
promessa é uma questão de tempo. No entanto, se o tempo existe para nós na vida
presente e nos faz sentir a demora, ele desaparece depois da morte e, em face
da eternidade, tal intervalo não significa nem sequer um “esfregar de olhos”.
Seja este destino motivo de contentamento e entusiasmo para nós, conforme o
pedido da Oração do Dia: “Fazei-nos exultar de alegria e fervorosa ação de
graças, pois, membros de seu Corpo, somos chamados na esperança a participar da
sua glória”.9
II – A ASCENSÃO INDICA O NOSSO FIM E OS MEIOS PARA ALCANÇÁ-LO
Muitos seriam os
aspectos dignos de análise na rica Liturgia desta Solenidade, mas fixemos a
atenção em alguns deles ainda não comentados em outras ocasiões.10 No trecho
dos Atos dos Apóstolos escolhido para a primeira leitura (At 1, 1-11), São
Lucas, tendo já narrado a vida pública de Jesus em seu Evangelho, se dispõe a
historiar o desenvolvimento da Igreja nascente, começando por alguns episódios
ocorridos no período de quarenta dias que Jesus passou na Terra após a
Ressurreição. De suas aparições restaram-nos os relatos feitos pelos
evangelistas, entre estes os do próprio São Lucas; todavia, é certo que não
foram as únicas, pois não seria razoável que Ele ressurgisse com tamanha glória
e Se manifestasse apenas as escassas vezes consignadas na Escritura.
São conhecidas as
narrações contidas em revelações particulares — às quais, apesar de não
pertencerem ao depósito da Fé, se pode dar crédito, pois ilustram legitimamente
a nossa piedade —, como as da Venerável Sóror Maria de Jesus de Ágreda ou as da
Beata Ana Catarina Emmerick.11 Segundo esta última, o Divino Mestre apareceu
refulgente e silencioso a Simão de Cirene, que o merecia por tê-Lo ajudado a
carregar a Cruz, e a diversas pessoas de Belém e Nazaré, com quem Ele ou sua
Mãe Santíssima tiveram alguma proximidade. Jesus também esteve longo tempo com
os Apóstolos, os discípulos e as Santas Mulheres — os quais se entristeciam por
perceberem estar próximo o instante da separação —, para transmitir os
derradeiros ensinamentos antes de partir.
De acordo com São
Lucas, alguns Apóstolos perguntaram se havia chegado a hora da restauração do
reino de Israel (cf. At 1, 6). Embora fossem testemunhas de um milagre
portentoso como a Ressurreição, insistiam numa visão política e naturalista de
Nosso Senhor, querendo saber se, por fim, veriam a conquista da supremacia do
povo judeu sobre todos os outros. E Jesus respondeu: “Não vos cabe saber os
tempos e os momentos que o Pai determinou com a sua própria autoridade. Mas
recebereis o poder do Espírito Santo que descerá sobre vós” (At 1, 7-8). Em
seguida, elevou-Se à vista deles, provavelmente circundado de uma luz
extraordinária.
E depois da Ascensão?
Imaginemos a alegria
no Céu, a grande homenagem da Santíssima Trindade a Cristo-Homem e a todos os
justos do Antigo Testamento que, pelos méritos infinitos da Paixão, entravam na
Pátria Celeste. Enquanto as coortes angélicas se tomavam de júbilo, entoando
cânticos, na Terra os discípulos mantinham os olhos fixos naquele ponto que ia
desaparecendo, até que uma nuvem encobriu Nosso Senhor (cf. At 1, 9). Surgiram
então dois Anjos, portadores de uma mensagem: “Homens da Galileia, por que ficais
aqui, parados, olhando para o Céu? Esse Jesus que vos foi levado para o Céu
virá do mesmo modo como O vistes partir para o Céu” (At 1, 11).
A promessa — “virá” —
talvez lhes tenha dado ideia de que o retorno seria no dia seguinte ou dali a
uma semana. Porém já se somam quase dois mil anos que Jesus Cristo subiu
envolto em glória e ainda não regressou... Santo Agostinho explica como isso sucederá,
no dia do Juízo: “‘Este Jesus virá como o haveis visto ir ao Céu’. O que
significa virá como? Que será Juiz da mesma forma como foi julgado. Visível não
só para os justos, visível também para os perversos, virá para ser visto por
justos e malvados. Os maus poderão vê-Lo, mas não poderão reinar com Ele”.12
Nesta perspectiva, cabe-nos estar com a atenção centrada nos últimos
acontecimentos de nossa vida — morte, juízo, inferno ou Paraíso —, conforme o
conselho do Eclesiástico: “Em todas as tuas obras lembra-te dos teus
Novíssimos, e nunca jamais pecarás” (7, 40).
Se hoje recebêssemos
a notícia de que viajaremos para algum país distante dentro de um mês, passaríamos
a organizar a partida com antecedência, tomando providências com relação ao
vestuário, remédios, dinheiro, documentos... Contudo, a viagem que faremos é
mais longa! Dela não voltaremos! Portanto, torna-se indispensável prepará-la de
maneira adequada. Agimos como insensatos quando nos preocupamos tão só com os
problemas concretos que terminam nesta vida e não nos interessamos em obter um
bom lugar na outra. É normal que quem empreende viagem queira conhecer o hotel
no qual se hospedará. Lembremo-nos, sem embargo, de que existe um alojamento
eterno chamado inferno, muito mais incômodo que qualquer situação terrível pela
qual possamos atravessar na Terra. Assim, ao contemplar a Ascensão de Jesus, tenhamos
descortino de horizontes e procuremos merecer uma eternidade feliz, como admoesta
o Papa Bento XVI: “Durante o ‘tempo intermediário’, requer-se dos cristãos, como
atitude fundamental, a vigilância. Essa vigilância significa que o homem não se
fecha no momento presente, entregando-se às coisas sensíveis, mas levanta o
olhar para além do momentâneo e da sua urgência”.13 Em consequência, abramos a
alma aos últimos ensinamentos do Filho de Deus registrados por São Marcos e
recolhidos pela Liturgia de hoje.
O que é evangelizar?
15b “Ide pelo mundo inteiro e anunciai o Evangelho a toda
criatura!”
O que entendemos por
“anunciai o Evangelho”? Sabemos que Nosso Senhor Jesus Cristo nada deixou
escrito, nem sequer um bilhete, quando poderia ter redigido textos de extraordinário
valor. Que seria a obra de um Dante Alighieri, um Camões ou um Calderón de la
Barca perto de sua divina literatura? Nos Evangelhos consta que Ele só escreveu
uma vez e sobre a areia (cf. Jo 8, 6.8), pois um de seus objetivos era
constituir uma obra e, muito além de qualquer livro, ter modelos, tipos humanos
para realizar uma ação direta, de pessoa a pessoa. Foi o que Ele fez: fundou a
Igreja, instituição imortal que se baseia muito mais no apostolado pessoal e na
ação de presença do que numa produção intelectual. É importante a doutrina, mas
ela, de si, não é suficiente para converter as almas, porque “a letra mata, mas
o Espírito vivifica” (II Cor 3, 6). Logo, ela precisa ser difundida “pelo mundo
inteiro”, mediante o invólucro do Evangelho, isto é, os princípios tornados
vida.
Mais ainda, São
Marcos é o único dentre os evangelistas a afirmar que Nosso Senhor deu o
mandato de levar a Boa-nova “a toda criatura”, o que abrange não só os homens,
mas também os minerais, vegetais, animais e inclusive os Anjos. À primeira
vista julgaríamos que o Evangelho se destina apenas aos seres humanos, pois
como pregá-lo, por exemplo, a uma grade, a um panorama ou a um bando de aves? A
universalidade do anúncio se prende a que tudo foi concebido em função do
Homem-Deus. O Verbo é a causa eficiente, a causa exemplar e a causa final de
toda a criação (cf. Col 1, 16-17). D’Ele parte e para Ele tem de voltar-se sua
obra. Deste modo, a nossa atuação, enquanto batizados, deve visar a disposição
de todas as coisas tendo-O como centro. Pregar, então, o Evangelho a uma grade
implica em fazê-la bela e ao mesmo tempo funcional, a fim de que dê glória a
Deus pelo fato de existir. A beleza é um dos reflexos mais salientes e
penetrantes da existência de Deus, e quem contempla algo esplendoroso
facilmente se eleva até Ele. Para levar o Evangelho a toda criatura é
necessário abraçar a via pulchritudinis, um dos meios mais eficazes de propagar
as maravilhas trazidas ao mundo por Cristo. Isto significa sacralizar os
gestos, o modo de se comportar ou de executar qualquer tarefa, desde cultivar a
terra de maneira a obter frutos de aspecto atraente até erigir prédios de
acordo com padrões inspirados no Evangelho. Numa palavra, é querer que a Terra
se transforme num verdadeiro Paraíso.
Chamados a ser modelo para o próximo
A Solenidade da
Ascensão nos coloca diante da responsabilidade recebida no dia do Batismo: a de
sermos verdadeiros apóstolos, pois não somos criaturas independentes da ordem
do universo, mas “fomos entregues em espetáculo ao mundo, aos Anjos e aos
homens” (I Cor 4, 9). Vivemos em sociedade, num relacionamento constante com
outras pessoas, com a nossa família e amigos, no ambiente de trabalho e onde
nos movemos. Por isso, tanto no lar como numa comunidade religiosa, acompanha-nos
a obrigação seríssima, sublime e grandiosa de sermos modelo para os outros.
Cada um é chamado a representar algo de Deus que não cabe a nenhuma outra
criatura, seja ela Anjo ou homem. Pregar o Evangelho não é só ensinar, é também
dar bom exemplo, muito mais eloquente do que qualquer palavra. Na vida
religiosa ou no seio da família, todos devem procurar vencer suas más
inclinações e edificar o próximo, buscando sua santificação.
Assim como São Paulo
desejava despertar nos efésios a esperança de um dia atingirem a glória, a
Igreja, através da Liturgia, quer que sintamos no fundo da alma o que Deus
preparou para gozarmos na eternidade, conquistado por Nosso Senhor Jesus Cristo
no dia da Ascensão. De que valem as aflições terrenas sobre coisas
transitórias? De que vale gozar os prazeres que o mundo pode oferecer? Acumular
honras, aplausos, benefícios, e ao chegar a hora de partir deixar tudo, e
apresentarmo-nos com as mãos vazias diante de Deus? Aproveitemos esta Solenidade
para firmar o propósito de abandonar todo e qualquer apego ao pecado que nos
afaste deste objetivo e nos tire “a esperança que o seu chamamento vos dá,
[...] a riqueza da glória que está na vossa herança com os Santos”. A este
respeito, convém recordar o conselho de Santo Agostinho: “Pensa em Cristo
sentado à direita do Pai; pensa que virá para julgar os vivos e os mortos. É o
que indica a fé; a fé se radica na mente, a fé está nos alicerces do coração.
Olha para quem morreu por ti; olha-O quando ascende e ama-O quando sofre;
olha-O ascender e aferra-te a Ele em sua Morte. Tens uma garantia de tão grande
promessa feita por Cristo: o que Ele fez hoje — a sua Ascensão — é uma promessa
para ti. Devemos ter a esperança de que ressuscitaremos e ascenderemos ao Reino
de Deus, e ali estaremos para sempre com Ele, numa vida sem fim, alegrando-nos
sem nenhuma tristeza e vivendo sem qualquer enfermidade”.14
Que a fé e a
esperança alimentem a nossa alma no árduo caminho do cristão de nossos dias, e
com esta chama sempre acesa enfrentaremos as adversidades. O mandato de
evangelizar nos convida a subir misticamente com Nosso Senhor à Pátria Eterna,
para onde iremos em corpo e alma depois da ressurreição. Peçamos por meio
d’Aquela que foi assunta aos Céus, Maria Santíssima, que sejamos para lá
conduzidos, celebrando exultantes este mistério.
1 Cf. DAL GAL,
OFMCap, Girolamo. Beato Pio X, Papa. Padova: Il Messaggero di S. Antonio, 1951,
p.402.
2 GONZÁLEZ ARINTERO, OP, Juan. Evolución mística.
Salamanca: San Esteban, 1989, p.4142.
3 TURRADO, Lorenzo. Biblia Comentada. Hechos de los
Apóstoles y Epístolas paulinas. Madrid: BAC, 1965,
v.VI, p.569.
4 Cf. SÃO TOMÁS DE
AQUINO. Suma Teológica. III, q.57, a.2.
5 Cf. Idem, q.52, a.4, ad 1; a.5, ad 3.
6 Cf. Idem, q.57, a.6.
7 SANTO AGOSTINHO. De
Civitate Dei. L.XXII, c.1, n.2. In: Obras. Madrid: BAC, 1958, v.XVI-XVII,
p.1627.
8 Cf. SÃO TOMÁS DE
AQUINO, op. cit., q.57, a.6.
9 SOLENIDADE DA
ASCENSÃO DO SENHOR. Oração do Dia. In: MISSAL ROMANO. Trad. Portuguesa da 2a.
edição típica para o Brasil realizada e publicada pela CNBB com acréscimos
aprovados pela Sé Apostólica. 9.ed. São Paulo: Paulus, 2004, p.313.
10 Para outros
comentários acerca deste tema, ver: CLÁ DIAS, EP, João Scognamiglio. A Ascensão
do Senhor. In: Arautos do Evangelho. São Paulo. N.65 (Maio, 2007); p.12-19;
Comentário ao Evangelho da Solenidade da Ascensão – Anos A e C, respectivamente
nos Volumes I e V da coleção O inédito sobre os Evangelhos.
11 Cf. MARIA DE JESUS
DE ÁGREDA. Mística
Ciudad de Dios. Vida de María. P.II, l.VI, c.28, n.1496. Madrid: Fareso, 1992,
p.1088; BEATA ANA CATARINA EMMERICK. Visiones y revelaciones completas.
Visiones del Antiguo Testamento. Visiones de la vida de Jesucristo y de su
Madre Santísima. Buenos Aires: Guadalupe, 1954, t.IV,
p.242.
12 SANTO AGOSTINHO.
Sermo CCLXV/F, n.3. In:
Obras. Madrid: BAC, 1983, v.XXIV, p.720.
13 BENTO XVI. Jesus de Nazaré. Da
entrada em Jerusalém até a Ressurreição. São Paulo: Planeta, 2011, p.257.
14 SANTO AGOSTINHO.
Sermo CCLXV/C, n.2. In: Obras, op. cit., v.XXIV, p.704.
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