Continuação dos comentários ao Evangelho – XIV Domingo do Tempo Comum – Ano B – Mc 6, 1-6
II – Reação do espírito humano diante
da Superioridade
“Naquele tempo, 1 Jesus foi a Nazaré, sua
terra, e seus discípulos O acompanharam. 2 Quando chegou o sábado, começou a
ensinar na sinagoga”.
Em
Nazaré, Nosso Senhor viveu por cerca de trinta anos, desde a volta do Egito,
após a morte de Herodes (cf. Mt 2, 15.23), até o início de sua vida pública com
o Batismo no Jordão (cf. Mt 3, 13-17). Nessa cidade, nunca Se manifestara
enquanto Deus, mas apenas como o filho de José e de Maria; uma pessoa comum,
portanto.
Ora, em
certo momento, Ele desapareceu e nessa Nazaré apenas chegavam os ecos de seus
grandiosos milagres. A Galileia estava certamente em alvoroço pelas repercussões
relativas aos feitos de Jesus, como a ressurreição da filha de Jairo e a cura
da hemorroíssa, realizadas havia pouco conforme relata São Marcos (5, 22-42), e
tantas outras ações extraordinárias. E deveriam também ouvir falar das
maravilhosas doutrinas inéditas pregadas pelo Divino Mestre, bem como das
encantadoras parábolas que tanto entusiasmavam os homens de boa fé.
Não
obstante, podemos supor, por um lado, ser o ceticismo uma reação não incomum
diante desses relatos, pois à natureza humana custa a dar crédito a algo de
notável relacionado com quem participa de nosso convívio diário. Mas, por outro
lado, os habitantes de Nazaré sentiam um certo orgulho, porque sua cidadezinha
ia adquirindo celebridade em razão do Nazareno.
Nessas
circunstâncias, chega Jesus à sua terra. Podemos imaginar o burburinho
provocado ao verem-No entrar na sinagoga, onde nunca havia pregado, e começar a
comentar a Escritura de um modo jamais ouvido.
Admiração, primeiro movimento
diante da superioridade
2b “Muitos que O escutavam ficavam
admirados...”.
São
Lucas acrescenta importantes pormenores relativos a este episódio. Convidado a
falar, Jesus abriu o livro do profeta Isaías onde está escrito: “O Espírito do
Senhor está sobre Mim, pois Ele Me ungiu, para anunciar a Boa Nova aos pobres”.
A seguir, afirmou: “Hoje se cumpriu esta passagem da Escritura que acabastes de
ouvir”. E o Evangelista conclui: “Todos testemunharam a favor d’Ele,
maravilhados com as palavras cheias de graça que saíam de sua boca” (cf. Lc 4,
18-22).
A
primeira reação, portanto, foi de admiração geral, tão ricas, densas e
originais devem ter sido as palavras proferidas pelo Salvador, certamente não
registradas em sua totalidade pelo Evangelista. De fato, é este o primeiro
movimento de toda criatura humana no seu relacionamento social, ao encontrar
alguém que se sobressai a algum título. Em seguida, contudo, em razão do
instinto de sociabilidade que nos impele a entrarmos em contato com os demais,
a inevitável tendência natural é a comparação: “Seríamos também capazes de
realizar o mesmo?”. O teor afirmativo ou negativo da resposta determinará como
consequência imediata uma reação interna de alegria ou de tristeza.
No caso
afirmativo, ficamos satisfeitos por nos julgarmos aptos para igualar, ou até
superar, o outro. E podemos tomar duas atitudes. Uma boa, de compreender que se
trata de dom gratuito de Deus — pois o Espírito Santo “distribui a cada um seus
dons conforme quer” (I Cor 12, 11) —, e temos o dever de utilizá-lo para ajudar
os outros a se santificarem, conforme ensina o Apóstolo: “A cada um é dada a
manifestação do Espírito em vista do bem de todos” (I Cor 12, 7). E uma outra
ruim, de orgulho, desprezando aquilo que os outros possuem.
No caso
negativo, sentiremos tristeza ao constatar nossa inferioridade. E aqui também
são possíveis duas atitudes. A primeira, boa, consiste em passar por cima dessa
instintiva tristeza e admirar a qualidade do outro, nos encantando com a sua
superioridade. A segunda, má, de ter um certo ressentimento, consequência da
inveja perante o valor alheio.
As duas
atitudes boas nos trazem paz de alma, pois propiciam reconhecer a grandeza do
Criador através de seus reflexos nas pessoas. Assim procede quem se habitua a
considerar os aspectos da vida cotidiana elevando-se a partir deles a
superiores cogitações. São aqueles que, no passo seguinte à admiração, sempre
estão desejosos de louvar, estimar e servir aquilo que é bom, verdadeiro e
belo.
Ora,
dada a natureza humana decaída, sem auxílio da graça, as reações posteriores à
comparação são ordinariamente ruins. Arquetípico exemplo disto, encontramos nos
versículos seguintes, nos quais o Evangelista resume a reação dos nazarenos
diante da pregação de Jesus.
A consequência do egoísmo
2b “... e diziam: ‘De onde recebeu Ele tudo
isto? Como conseguiu tanta sabedoria? E esses grandes milagres que são
realizados por suas mãos? 3 Este homem não é o carpinteiro, filho de Maria e
irmão de Tiago, de José, de Judas e de Simão? Suas irmãs não moram aqui
conosco?’. E ficaram escandalizados por causa d’Ele”.
Na
cidade de Nazaré, excetuando Nossa Senhora, não houve provavelmente quem
tomasse a atitude correta de admirar a superioridade de Jesus. Depois da
primeira reação boa, passaram eles a considerar apenas os aspectos humanos, e
logo surgiram as dúvidas de má fé, seguidas de inveja.
Uns se
perguntavam de onde vinha tanto conhecimento, uma vez que o Pregador não estudara
com nenhum dos mestres conhecidos na região. Dentre estes, alguns até poderiam
estar presentes na sinagoga naquele momento, e considerassem intolerável Jesus
sobrepujá-los no saber, justamente eles que tanto haviam estudado.
E,
quiçá, se perguntavam quais as artimanhas empregadas pelo jovem Mestre para
adquirir tão grande conhecimento em tão breve espaço de tempo.
Misturava-se
neles a inveja com um fundo de falta de fé, ao quererem julgar as coisas pelas
suas aparências primeiras. Não souberam transcender a figura do filho do
carpinteiro, que ali havia vivido tantos anos exercendo um trabalho artesanal,
numa situação inteiramente ordinária e que, de repente, surge como Sábio,
Taumaturgo e Exorcista.
Ao
mesmo tempo, não podiam negar serem verdadeiros os retumbantes milagres
atribuídos ao Redentor, mas, em sua cegueira espiritual, preferiam fechar os
olhos para a realidade superior, e se refugiar numa explicação natural, que não
lhes cobrava uma mudança de vida.
Assim,
“ficaram escandalizados por causa d’Ele”. É o desprezo a consequência
necessária da falta de amor e da inveja. Com severidade, São Basílio invectiva
esse defeito de alma: “A inveja é um gênero de ódio, o mais feroz, porque os
benefícios aplacam quem por alguma outra causa é inimigo nosso, mas o bem que
se faz ao invejoso irrita-o mais; e quanto mais ele recebe, mais se indigna, se
entristece e se exacerba. Isso porque o desgosto que sente pelo poder do
benfeitor é maior que a gratidão pelos bens que dele recebe. [...] Os cães
tornam-se mansos se alguém lhes dá de comer; os leões se domesticam, quando se
cuida deles; mas os invejosos se enfurecem mais com os benefícios”.3
O perigo de não ver o sublime
4 “Jesus lhes dizia: ‘Um profeta só não é
estimado em sua pátria, entre seus parentes e familiares’”.
Anteriormente,
relata São Marcos estarem alguns parentes de Jesus envergonhados d’Ele, a ponto
de, em certa ocasião, irem à sua procura “para detê-Lo, pois diziam: ‘Está
ficando louco’” (Mc 3, 21).
Sem
dúvida, encontravam-se na assembleia vários de seus familiares, máxime
considerando ser pequenina a cidade. E talvez eles próprios se comparassem com
Jesus, imaginando serem a Ele equivalentes dada a consanguinidade. Constatando,
porém, sua evidente inferioridade, nascia a inveja e o desejo de destruir o bem
visto no outro, por julgar que este lhes fazia sombra. Tal é a natureza humana
que, em geral, a pessoa não tem inveja de um desconhecido, mas sim do amigo,
daquele com quem convive.
Por
isso, à semelhança de Nosso Senhor, quem abraça as vias da virtude pode ser
muito bem considerado em alguns ambientes, mas nem sempre o será entre os seus
íntimos.
A divindade de Nosso Senhor
deveria transparecer
Assueta vilescunt — a
rotina pode acabar envilecendo até as coisas mais grandiosas. Ora, Jesus, Deus
e Homem verdadeiro, encontrava-Se onde vivera tanto tempo como pessoa comum,
desejoso de fazer bem a seus mais próximos.
Não
podemos crer, entretanto, que o convívio com Ele não tivesse dado margem a transparecer
algo de incomum em incontáveis ocasiões. Em virtude da íntima união entre a
natureza humana e a divina em Cristo, por debaixo dos véus de sua Perfeitíssima
Humanidade, deveria com frequência transluzir de alguma forma a Segunda Pessoa
da Santíssima Trindade, ultrapassando em tudo qualquer capacidade humana de
perfeição, de modo a ficar patente tratar-Se Jesus de um Ente completamente
fora do comum. “Enquanto em seu puríssimo Corpo a natureza evoluía devagar para
a plenitude, ‘a sabedoria divina enchia sua santa alma e a graça aí esgotava
todos os seus dons’. [...] Ele temperava as manifestações exteriores de suas
perfeições ocultas, como a árvore nova que desdobra pouco a pouco seus brotos,
suas folhas e flores antes de formar seus frutos; como o Sol que, depois de
clarear ligeiramente o horizonte, colore-o com os vermelhos crescentes da
aurora antes de inundar o espaço com seus raios vitoriosos e mostrar sua face
resplandecente” 4, comenta Monsabré.
Nosso
Senhor deveria ser a perfeição nos gestos, nas atitudes e até no caminhar. E o
que dizer de sua voz incomparável? A beleza de sua alma espelhava-se
maravilhosamente em sua face e, sobretudo, em seu olhar. Dotado de todas as
qualidades humanas possíveis, Ele era belo, nobre e distinto no mais alto grau.
Tudo n’Ele transluzia uma misteriosa e inefável superioridade.
Por que não viram: egoísmo e
mediocridade
Continua no próximo post
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