Comentários ao Evangelho XXV Domingo do Tempo Comum – Ano B – Mc 9,30-37
Naquele tempo, 30 Jesus e seus discípulos atravessavam a Galileia. Ele
não queria que ninguém soubesse disso, 31 pois estava ensinando a seus
discípulos. E dizia-lhes: “O Filho do Homem vai ser entregue nas mãos dos
homens, e eles o matarão. Mas, três dias após sua morte, ele ressuscitará”.
32Os discípulos, porém, não compreendiam estas palavras e tinham medo
de perguntar. 33 Eles chegaram a Cafarnaum. Estando em casa, Jesus
perguntou-lhes: “O que discutíeis pelo caminho?”34 Eles, porém, ficaram calados,
pois pelo caminho tinham discutido quem era o maior.
35 Jesus sentou-se, chamou os doze e lhes disse: “Se alguém quiser ser
o primeiro, que seja o último de todos e aquele que serve a todos!”
36 Em seguida, pegou uma criança, colocou-a no meio deles e,
abraçando-a, disse: 37 “Quem acolher em meu nome uma destas crianças, é a mim
que estará acolhendo. E quem me acolher, está acolhendo, não a mim, mas àquele
que me enviou”. (Mc 9,30-37)
Uma
sociedade marcada pela inocência
A sociedade humana no Paraíso
Uma sociedade que se
desenvolvesse no Paraíso Terrestre, composta por uma humanidade em estado de
justiça original, seria regida pela graça divina e favorecida por dons
preternaturais e sobrenaturais concedidos por Deus. Nela reinariam a plena
harmonia e o total entendimento entre os homens, sem inveja nem rivalidades.
Cada qual admiraria a virtude dos outros, alegrando-se com eles e
desejando-lhes a maior santidade possível.
Aconteceu, contudo, que o homem
pecou e foi expulso do Paraíso. Despojada dos dons de que gozavam nossos
primeiros pais, a humanidade ficou sujeita à doença, à morte, ao desequilíbrio
psíquico e a tantas outras mazelas.
Mais grave ainda, a alma perdeu
o dom da integridade, pelo qual dominava a concupiscência e mantinha as paixões
em perfeita ordem.1 Sem este dom, elas entraram em ebulição, tornando
necessária ao ser humano uma contínua luta interior para poder governá-las. A
inocência entrou em estado de beligerância para se preservar do pecado.
A causa mais profunda das dissensões
Consequências dessa desordem
são a inveja e as rivalidades, principal causa, por sua vez, das rixas e
dissensões. Pois, como afirma o Apóstolo São Tiago na segunda leitura deste 25º
Domingo do Tempo Comum, “onde há inveja e rivalidade, aí estão as desordens e toda
espécie de obras más” (Tg 3, 16).
Com efeito, é a inveja um dos
vícios mais perniciosos. Quem por ela se deixa levar, não conhece a felicidade.
O invejoso está sempre se comparando com os outros, e quando se depara com quem
o supera em qualquer ponto, logo se pergunta: “Por que ele é mais e eu menos?
Por que ele tem e eu não?”. Essa atitude torna ácida e amargurada a sua vida,
causando toda espécie de dissabores e, por vezes, até de mal-estar físico.
Deste “por que” — proveniente
em última análise do orgulho — decorrem os males todos. Bem claramente o aponta
São Tiago: “De onde vêm as guerras? De onde vêm as brigas entre vós? Não vêm,
justamente, das paixões que estão em conflito dentro de vós?” (Tg 4, 1).
Quanta luta trava o homem hoje,
por exemplo, para obter mais dinheiro, mais poder ou mais prestígio, recorrendo
muitas vezes a meios ilícitos ou até criminosos! Em quantas misérias morais cai
ele, para atingir esse objetivo!
Contudo, mesmo tendo acumulado
imensa fortuna, ou galgado o suprassumo do poder, nunca estará satisfeito.
Sempre quererá mais, porque a alma humana é insaciável, por natureza, uma vez
que é feita para o infinito, para o absoluto, para o eterno.2 Daí conclui São
Tiago: “Cobiçais, mas não conseguis ter. Matais e cultivais inveja, mas não
conseguis êxito. Brigais e fazeis guerra, mas não conseguis possuir” (Tg 4, 2).
Enorme esforço faz o homem
ganancioso para obter algo que, em vez de trazer-lhe a felicidade, o fará
perder a paz de alma!
A santidade faz recuperar o equilíbrio perdido
Para vencer as paixões
desregradas e recuperar o equilíbrio de alma perdido por causa do pecado, há
apenas um caminho: abraçar as vias da santidade.
Na luta constante contra as
próprias paixões, procurando submetê-las à Lei Divina, irá o homem restaurando
a inocência primitiva, e, com isso, suas reações de alma se tornarão cada vez
mais semelhantes àquelas que teria no Paraíso. O que ali lhe seria fácil,
custa-lhe agora, nesta terra de exílio, grande esforço, dura luta interior e
muita ascese, acompanhados do indispensável auxílio da graça. Pois sem esta
nenhum homem é capaz de dominar a tremenda ebulição das próprias paixões.
Portanto, o Reino de Deus
prosperará nesta terra na medida em que houver entre os homens almas santas,
faróis de virtude e de inocência a iluminar o caminho da humanidade. Será o
Reino da inocência, à imagem do Inocente por excelência, Nosso Senhor Jesus
Cristo. Teremos, assim, a realização mais próxima possível da civilização
paradisíaca. É esta uma das importantes lições a tirar do rico Evangelho deste
domingo.
Naquele tempo, 30Jesus e seus discípulos atravessavam a Galileia. Ele
não queria que ninguém soubesse disso...
Após descer do monte Tabor e
exorcizar um menino possesso, diante de numerosa multidão, Jesus dirigiu-se à
Galileia.
Quis fazer a viagem discretamente,
só com os mais próximos, porque ao longo do caminho “ensinava os Seus
discípulos”.3 O Evangelista deixa aqui transparecer a divina pedagogia de
Jesus. Ele instruía os discípulos durante o trajeto, por meio do convívio. Não
lhes ensinava a filosofia dos gregos, nem a doutrina dos mestres de Israel.
Abria-lhes os segredos de Seu Divino Coração, dava-lhes a conhecer tudo quanto
ouvira do Pai (cf. Jo 15, 15).
Jesus prepara os Apóstolos para a provação
Do sublime episódio ocorrido no
Tabor — ao qual só assistiram Pedro, Tiago e João —, nada havia transpirado.
Entretanto, os outros Apóstolos, vendo aqueles três tão radiantes e cheios de
luz, muito provavelmente percebiam que algo de grandioso devia ter acontecido.
Sem dúvida, estavam curiosos, talvez aflitos, para saber o que sucedera.
Quiçá pensassem, segundo seus
critérios mundanos, que o Senhor tivesse revelado algum ousado plano para a
conquista do poder e havia, portanto, necessidade de se guardar rigoroso
segredo. A ideia da restauração de um reino temporal que desse aos israelitas
um domínio sobre os demais povos estava tão arraigada nos judeus daquele tempo
— portanto, também nos seguidores de Jesus —, que após a Ressurreição ainda
houve quem Lhe perguntasse: “Senhor, é agora que ides restaurar o reino de
Israel?” (At 1, 6).
Aos poucos, pacientemente, o
Mestre ia retificando essa visualização mundana e materialista de Seus
discípulos. O próprio fato de deslocar-Se com eles sem que ninguém o soubesse
correspondia a esse objetivo. Jesus desejava estar a sós com os Apóstolos para
formá-los e prepará-los para as difíceis provações futuras.
31pois estava ensinando a seus discípulos. E dizia-lhes: “O Filho do
Homem vai ser entregue nas mãos dos homens, e eles o matarão. Mas, três dias
após sua morte, ele ressuscitará”.
Anunciando Sua Paixão e morte,
Jesus punha diante dos Doze o amargor da prova e da perseguição.
Ora, “nada repugnava mais aos
judeus que a ideia de um Messias sofredor e vítima”, afirma Didon.4 Eles
esperavam com avidez a glória, o triunfo de Israel, uma paz e prosperidade de
séculos ou até de milênios... Ou seja, aspiravam a uma eternidade de gozo
terreno.
Davam-se conta os Apóstolos,
sem dúvida, de que Jesus estava criando uma instituição para dar continuidade à
Sua Obra. Percebiam também que Ele os ia formando para, em determinado momento,
cada qual exercer um importante papel. Continuavam, entretanto, tomados pela
ideia equivocada de um reino terreno, e sua preocupação era justamente saber
quem ocuparia os altos cargos nessa nova organização.
Assim o assinala Didon, ao comentar
as rivalidades que se levantavam entre eles: “Pedro tinha sido designado como
chefe; Tiago e João pareciam gozar de certa predileção. Ora, estas preferências
manifestas não deixavam de despertar entre os outros algum ciúme e inveja.
[...] Daí as disputas azedas, as rivalidades, as ofensas, as feridas de amor
próprio”.5
Nesse clima de ambição e de
delírio de mando dos Seus discípulos, Nosso Senhor os está pacientemente
preparando para não sucumbirem à terrível provação que se aproximava.
32Os discípulos, porém, não compreendiam estas palavras e tinham medo
de perguntar.
Não era a primeira vez que o
Messias anunciava Sua Paixão e Ressurreição aos Apóstolos. Estes, porém, tão
distantes estavam de tais cogitações, que nem sequer Pedro, Tiago e João,
testemunhas privilegiadas da Transfiguração, entenderam o que Ele lhes quis dizer.
Ao descer do Monte Tabor, o
Senhor já os havia alertado para nada contarem “até que o Filho do homem
tivesse ressurgido dos mortos” (Mc 9, 9). Entretanto, ignoravam o sentido
dessas palavras, pois discutiam entre si o que significaria “ser ressuscitado
dentre os mortos” (Mc 9, 10).
Bem aponta o Crisóstomo “quão
pouco compreendiam os discípulos o sentido da clara predição da morte do
Senhor. Inclusive depois de todos esses milagres reveladores, após essa
singular revelação de identidade de Jesus por parte da voz celeste, e depois da
predição explícita de Sua morte e Ressurreição, continuavam eles sem entender o
mais importante e estavam preocupados por sua própria ansiedade”.6
De sua parte, o padre Lagrange
assim analisa esta passagem: “Os discípulos continuam não compreendendo. O que
menos convinha ao Messias era a Paixão; o que menos se entendia da doutrina de
Jesus ainda era a necessidade do sofrimento. Quando o Mestre disto falou pela
primeira ve, Pedro protestou, mas foi vivamente repreendido (cf. Mc 8, 31); na
segunda, eles mudaram de assunto (cf. Mc 9, 11); agora eles não ousam sequer
perguntar”.7
Sua mentalidade estava em choque com Nosso Senhor
Ora, se os discípulos não
compreendiam o que o Mestre lhes dizia, qual a razão de terem medo de perguntar?
Jesus sempre os tratara com uma bondade inefável e a ocasião não podia ser mais
propícia, estando eles a sós com o Mestre. Era tão fácil, sobretudo naquele
momento de intimidade, pedir-Lhe um esclarecimento!
Havia para isso uma profunda
razão psicológica. A perspectiva da morte do seu Mestre ia contra todos os
planos de projeção social, de solução política e econômica que eles almejavam.
Significava a destruição do castelo de ilusões que os israelitas montaram a
respeito do Messias: o de um homem capacíssimo, cheio de dons para libertar do
domínio romano o Povo Eleito e projetá-lo acima dos outros povos.
Os Apóstolos percebiam que a
mentalidade deles estava em choque com a de Nosso Senhor. O Mestre ensinava uma
doutrina que eles, no fundo dos seus corações, não desejavam ouvir. A resposta
de Jesus podia tornar clara demais essa dissonância, colocando-os na obrigação
de mudar de mentalidade, o que de todo eles não queriam.
Bem observa o padre Tuya a este
propósito: “Eles sabem que as predições do Mestre se cumprem. Têm um
pressentimento em relação àquele programa sombrio — para Jesus e para eles — e
evitam insistir sobre ele”.8
O homem, segundo nos ensina a
filosofia tomista, nunca pratica o mal enquanto mal; sempre procura
justificá-lo, dando-lhe uma aparência de bem.9 E no espírito dos discípulos,
duas ideias contraditórias entravam em conflito: a do autêntico Messias, que
lhes falava de perseguições, morte e Ressurreição, e a de um Messias meramente
humano, restaurador do poder temporal de Israel. Eles então racionalizavam para
justificar a ideia errada na qual insistiam em acreditar.
O receio de romper os alicerces
dessa mentalidade política e terrena os fazia ter medo de perguntar.
33Eles chegaram a Cafarnaum. Estando em casa, Jesus perguntou-lhes: “O
que discutíeis pelo caminho?”34Eles, porém, ficaram calados, pois pelo caminho
tinham discutido quem era o maior.
Sabia Cristo perfeitamente de
qual assunto os Apóstolos trataram ao longo do percurso. À incômoda indagação, porém,
eles ficaram calados, envergonhados de dizer ao Mestre que o tema de sua
conversa havia sido uma egoística disputa de primazia pessoal.
O seu silêncio já era um meio
reconhecimento da falta cometida, da qual eles tinham certa consciência, como
afirma o Cardeal Gomá: “Sua conduta está em flagrante oposição com o sentir do
Mestre, e estão confusos diante dEle”.10
No mesmo sentido se pronunciam
comentaristas da Companhia de Jesus: “O silêncio dos discípulos perante a
pergunta do Mestre é muito psicológico. Sentem-se, sem dúvida, conscientes de
que suas aspirações não encontrariam aprovação”.11
Um novo conceito de autoridade
35Jesus sentou-se, chamou os doze e lhes disse: “Se alguém quiser ser
o primeiro, que seja o último de todos e aquele que serve a todos!”
O Mestre conhecia bem aqueles
que escolhera, pois, conforme comenta o padre Lagrange, Ele “não se espanta com
a preocupação dos discípulos, nem contesta o princípio da hierarquia, mas
insinua o espírito novo do qual deve estar animado quem tem cargo de direção.
Há certamente aqui a previsão de outra ordem de coisas”.12
Com Suas palavras, Jesus não
condena o desejo de obter a primazia, mas põe uma condição: para ser o
primeiro, é preciso ser “o último de todos e o servo de todos”. Essa afirmação
abria um panorama completamente novo para os Apóstolos, os quais compartilhavam
do conceito de autoridade comum e corrente naquela época: quem é mais forte,
mais capaz, mais inteligente, mais rico, ou mais esperto, esse manda e os
outros obedecem.
Perante essa visão, Nosso
Senhor declara qual é a regra de governo que deverá vigorar na Era Cristã: “O
novo Reino que quero instaurar não será como os reinos da terra. O que deve
animar Meus discípulos não é o espírito de ambição, a procura das grandezas.
Pelo contrário, a primeira condição, a condição fundamental, para almejar o
primeiro posto no Reino messiânico é a humildade, o menosprezo das honras, o
desinteresse de quem se esquece de si mesmo para dedicar-se ao serviço dos
irmãos”.13
Humildade, menosprezo das
honras, desinteresse por si mesmo e dedicação aos irmãos: são estas as
características de quem deve mandar de acordo com o espírito de Jesus. É a
precedência da virtude e da inocência na sociedade. Nada mais oposto à ira, à
inveja e às rivalidades que tanto atormentam o homem depois do pecado original!
A esse respeito, transcreve o
padre Maldonado expressivo comentário do Bispo e mártir São Cipriano: “Com Sua
resposta, cortou Jesus qualquer emulação e extirpou toda ocasião e pretexto da
mordaz inveja. Não é lícito ao discípulo de Cristo ter essas rivalidades e
invejas, nem pode existir entre nós peleja para sobressair-se, pois aprendemos
que o caminho para a primazia é a humildade”.14
Convém notar, por fim, que
Jesus “sentou-Se” antes de fazer esta solene declaração, “como para julgar no
Seu Tribunal e ensinar aos Apóstolos, da Sua Cátedra, algo grave e importante
que merecia ser dito não de pé e como que de passagem, mas sentado e de
propósito, com plena advertência e consideração”.15
Governar em função da inocência
36Em seguida, pegou uma criança, colocou-a no meio deles e,
abraçando-a,
Comentam extensamente os
exegetas este episódio no qual Jesus chama para junto de si uma criança,
relacionando-o com a narração de São Lucas, que no final do seu relato reproduz
estas palavras do Salvador: “Pois quem dentre vós for o menor, esse será
grande” (Lc 9, 48).
As crianças estão isentas de inveja e vanglória
Ressalta-se, em geral, como o
Divino Mestre serve-Se deste eloquente recurso pedagógico para fazer ver aos
discípulos, cegos pelo desejo de supremacia, a necessidade de serem simples e
humildes. Pois, como observa o Crisóstomo, “o menino está isento de inveja, de
vanglória e de qualquer ambição de primazia”.16
Por sua vez, Beda o Venerável
ressalta o quanto Deus tem em alta estima a virtude da humildade: “Pelo qual,
ou simplesmente aconselha aos que querem ser os primeiros que recebam, em honra
dEle, os pobres de Cristo, ou que sejam como meninos, a fim de conservarem a
simplicidade sem arrogância, a caridade sem inveja e a dedicação sem ira. O
fato de abraçar o menino significa que os humildes são dignos de Seu abraço e
de Seu amor”.17
Mostra assim Jesus, neste
episódio, quanto o verdadeiro discípulo não deve estar preocupado se será, ou
não, maltratado, esquecido, posto de lado. Ele precisa apresentar-se sem
qualquer pretensão, nem orgulho, mas, pelo contrário, admirando as qualidades
alheias. Quem assim age será o primeiro a receber a misericórdia de Deus.
Aquele que se tem por último e se considera o menor será quem mais recebe da
Divina Providência.
Pode-se conjecturar a profunda
perplexidade dos Doze naquele momento. Queriam eles ocupar posição de destaque,
Jesus aponta-lhes a necessidade de procurar o último lugar. Aspiravam a um
reino messiânico glorioso, Jesus alerta-os sobre Sua Paixão e morte na Cruz...
O choque de mentalidades vai-se tornando cada vez mais patente. Porém, tudo é
dito com doçura, sem acrimônia, no momento oportuno, de forma a que as divinas
palavras do Mestre penetrem beneficamente nos espíritos. Manifesta Ele aqui,
uma vez mais, a admirável e delicada arte de corrigir, que servirá de modelo a
todos quantos tiverem o encargo da direção das almas.
Jesus externa seu amor por quem jamais pecou
disse: 37“Quem acolher em meu nome uma destas crianças, é a mim que
estará acolhendo. E quem me acolher, está acolhendo, não a mim, mas àquele que
me enviou”. (Mc 9,30-37)
Embora os Evangelistas sejam muito sintéticos
ao narrar esta passagem, podemos bem imaginar o quanto Nosso Senhor deve ter-Se
demorado com esse menino, fazendo belíssimas considerações sobre a infância.
Podemos supor também com quanto ardor elogiou sua humildade e desprendimento,
pondo em realce as virtudes próprias a quem jamais pecou.
Transparece assim, neste último
versículo do Evangelho hoje comentado, todo o amor de Jesus pela inocência,
representada na criança por Ele abraçada. Esse menino — o futuro mártir Santo
Inácio de Antioquia, segundo refere Eusébio de Cesareia18 — simboliza a pessoa
que se entrega a Deus, sem reservas nem racionalizações, com reta intenção.
Cristo é modelo de inocente,
enquanto Homem, e a Inocência em essência, enquanto Deus. Ele chama para junto
a Si aquela criança porque, como ensina São Leão Magno, “ama a infância, mestra
de humildade, norma de inocência, modelo de mansidão. Cristo ama a infância,
sobre a qual quer modelados os costumes dos adultos, e à qual quer reconduzida
a idade senil; e leva a seguir seu humilde exemplo àqueles que depois eleva ao
Reino eterno”.19
Sobre este versículo, comenta o
Crisóstomo: “E acrescenta ‘em Meu nome’ para que os discípulos, guiados pela
razão, adquiram em nome de Cristo a virtude que o menino pratica guiado pela
natureza. Entretanto, para não se pensar que Ele se referia só àquele menino
quando ensinava que Ele era honrado nos meninos, acrescenta: ‘E todo o que
recebe a Mim, não Me recebe, mas Aquele que Me enviou’, etc., querendo ser
considerado em grau igual ao de Seu Pai”.20
“Todo o que recebe um destes
meninos em Meu nome, a Mim é que recebe”. Jesus mostra-se assim igual ao Pai,
indicando, ao mesmo tempo, que quem recebe o inocente, o afaga e o protege,
abraça na realidade ao próprio Deus.
Nessa perspectiva, lembra
Maldonado que São Marcos “aduz esta razão em lugar da conclusão posta por São
Mateus: Em verdade vos digo que, se não vos converterdes e vos tornardes como
crianças, não entrareis no Reino dos Céus. Prova-se implicitamente esta
conclusão com o que diz aqui São Marcos, que ninguém entrará no Reino de Deus
se não for semelhante a Deus. Nenhuma coisa manchada poderá entrar naquela
cidade (como escreve São João no Apocalipse, 21, 27). Não podeis ser
semelhantes a Deus se não O recebeis; e não O podeis receber se não Me
recebeis, a Mim que fui enviado pelo Pai. E não Me podeis receber se não
recebeis em Meu nome os meninos e não vos assemelhais a eles. Portanto, se não
vos converterdes e vos tornardes como meninos, não entrareis no Reino dos
Céus”.21
Uma nova forma de governar e se relacionar
De acordo com o espírito do
Evangelho, pouco antes declarado pelo Divino Mestre, quem quiser ter autoridade
deve estar disposto a servir. Jesus acaba de ensinar aos Apóstolos essa
verdade, chocando inteiramente a mentalidade pagã que dominava os seus
espíritos, segundo a qual se deve dominar os outros à base da força.
Em uma sociedade marcada pela
inocência, a autoridade deve governar o súdito como quem governa uma criança.
Ela não tem delírios de mando; é despretensiosa, flexível e humilde; está
sempre à disposição dos outros. Sendo ela tenra e frágil, pede ser conduzida
com carinho e afeto. E, para isso, o governante tem de se pôr ao serviço dos
seus subordinados, criando um regime que busque mais atrair do que impor,
procurando despertar neles o entusiasmo pela prática do bem.
O bem mais precioso que o homem pode receber
Preservar a inocência batismal
— ou recuperá-la, caso tenha tido a desgraça de perdê-la — deve ser a meta de
todo cristão. Porque quem a possui conserva na alma Nosso Senhor Jesus Cristo,
o Pai e o Espírito Santo.
A inocência é o bem mais
precioso que o homem pode receber. A união com a Santíssima Trindade de quem
jamais pecou outorga-lhe uma autoridade que nem o poder, nem o dinheiro, nem as
manobras diplomáticas são capazes de conceder.
Em sua primitiva inocência, o
homem era inerrante, pois como ensina São Tomás: “Não era possível, enquanto durasse
a inocência, que o intelecto humano desse sua aquiescência a algum erro como se
fosse verdade”.22 De forma análoga, o homem que mantém sua inocência batismal
será infalível na medida que em se deixe guiar pela graça, pelas virtudes
infusas e os dons do Espírito Santo. Assim o afirma o padre Garrigou-Lagrange:
“Na ordem da graça, a fé infusa faz-nos aderir à palavra divina e ao que esta
exprime. […] Enquanto os sábios dissertam longamente e levantam todo tipo de
hipóteses, Deus faz Sua obra naqueles que têm o coração puro”.23
Devemos, portanto, envidar
todos os esforços para manter sem pecado a nossa alma, ainda que seja
necessário, para isto, sacrificar a própria vida. E se, por infelicidade,
tivermos perdido a inocência batismal, empenhemo-nos ao máximo em recuperá-la,
como o fez Santa Maria Madalena, através de um ardente amor ao Divino Mestre. E
tanto amou que se assemelhou ao Amado a ponto de ser venerada como a primeira
das virgens na ladainha de todos os Santos.
1“Como toda a integridade
do estado harmônico de que acabamos de falar era produzida pela submissão da
vontade humana a Deus, resultou da subtração da vontade humana a essa submissão
divina uma alteração da submissão perfeita das potências inferiores à razão, e
do corpo à alma. Em consequência, o homem sentiu no apetite sensitivo inferior
os movimentos desordenados da concupiscência, da cólera e das outras paixões
estranhas à ordem da razão, e mesmo contrárias à razão, envolvendo-a nas
trevas, na maior parte das vezes, e perturbando-a em suas faculdades” (SÃO
TOMÁS DE AQUINO. Compêndio de Teologia. c. 192).
2Cf. AQUINO, São Tomás
de. Suma Teológica. I-II, q. 2 e 3.
3Cf. MALDONADO, SJ, Pe.
Juan de. Comentarios a los cuatro Evangelios – II San Marcos y San Lucas.
Madrid: BAC, 1951, p. 146.
4DIDON, Henri, OP. Jesus
Cristo. Porto: Liv. Int. de Ernesto Chardron, 1895, V. 2, p. 227.
5Idem, p. 228.
6Apud ODEN, Thomas C. e
HALL, Cristopher A. La Biblia comentada por los Padres de la Iglesia – Nuevo
Testamento 2 San Marcos. Madrid: Ciudad Nueva,
2000, p. 184. 7LAGRANGE, OP, P. M.J. Evangile selon Saint Marc. 5. ed. Paris: Gabalda et Fils,
1929, p. 244.
8TUYA, OP, Pe. Manuel de.
Biblia Comentada – II Evangelios. BAC: Madrid, 1964, p. 695.
9Cf. AQUINO, São Tomás
de. Suma Teológica. I-II q. 78, a. 1.
10GOMÁ Y TOMÁS, Card.
Isidro. El Evangelio explicado. Barcelona: Rafael Casulleras, 1930, V. 3, p.
83.
11La Sagrada Escritura.
Texto y comentarios por Profesores de la Compañía de Jesus. Nuevo Testamento.–
Evangelios. Madrid: BAC, 1961, Vol. 1, p. 450.
12LAGRANGE, OP, P. M.J.
Op. cit., p. 244-245.
13DEHAULT. L’Evangile
expliqué, défendu, médité – tome troisième. Paris: Lethielleux, 1867, p. 290.
14MALDONADO. Op. cit., p.
151.
15Idem, ibidem.
16JUAN CRISÓSTOMO, San.
Homilías sobre el Evangelio de Mateo, hom. 58, 3.
17BEDA, São. In Marci
Evangelium Expositio, l. 3, c. 9: PL 92, 0224.
18Cf. DEHAUT, Op. cit., p. 290.
19LEÃO MAGNO, São.
Sermones in præcupuis totius anni festivitatibus ad romanam plebem habiti.
Serm. 37, c. 3: PL 54, 0258.
20 BEDA, São. Op. cit.,
PL 92, 0225.
21MALDONADO. Op. cit., p.
152-153.
22AQUINO, São Tomás de.
Suma Teológica. I, q. 94, a. 4.
23GARRIGOU-LAGRANGE, OP,
P. Réginald Marie. El sentido común. La filosofía del ser y las fórmulas
dogmáticas. Buenos Aires: DEDEBEC y Ediciones Desclée, De Brouwer, 1945, p.
340-344.
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