Comentários ao Evangelho
XXX Domingo do Tempo Comum - Ano B
- Mc 10, 46-52
Naquele tempo, 46Jesus saiu de Jericó, junto com seus discípulos e uma
grande multidão. O filho de Timeu, Bartimeu, cego e mendigo, estava sentado à
beira do caminho.
47Quando ouviu dizer que Jesus, o Nazareno, estava passando, começou a
gritar: “Jesus, filho de Davi, tem piedade de mim!” 48Muitos o repreendiam para
que se calasse. Mas ele gritava mais ainda: “Filho de Davi, tem piedade de
mim!” 49Então Jesus parou e disse: “Chamai-o”. Eles o chamaram e disseram:
“Coragem, levanta-te, Jesus te chama!” 50O cego jogou o manto, deu um pulo e
foi até Jesus. 51Então Jesus lhe perguntou: “O que queres que eu te faça?” O
cego respondeu: “Mestre, que eu veja!” 52Jesus disse: “Vai, a tua fé te curou”.
No mesmo instante, ele recuperou a vista e seguia Jesus pelo caminho.
O Sacrifício de Cristo Sacerdote
A Liturgia de hoje se apresenta
de forma simples, sintética e, entretanto, rica de substância, matizes e
significado. A segunda Leitura, por exemplo, nos oferece um elevado mirante
para apreciar as maravilhas selecionadas e extraídas da Escritura para o texto
deste domingo. Todos os seus versículos se fixam no supremo Sacerdócio de
Cristo.
Etimologia da palavra sacerdote
Duas são as origens
etimológicas da palavra “sacerdote” (sacerdos, do latim): “sacra dos”, ou seja,
quem “dá o sagrado”; ou “sacra dans”, aquele que é ungido com “um dote
sagrado”. As duas etimologias são válidas, pois o sacerdote é um embaixador de
Deus ante os homens e a estes confere as coisas sagradas, como são a verdadeira
doutrina e a caridade; muito mais ainda, diviniza a natureza, comunicando-lhe a
graça através dos sacramentos. Ademais, pertence também a ele a função de
representar a sociedade em suas relações com Deus. Neste caso, ele oferece a
Deus dons (orações, oblações, etc.) e sacrifícios pelos pecados. Nesse ofício
de “dar coisas sagradas”, evidentemente se exige de quem o exerce a posse de um
poder especial (“sacra dos”). Se esse poder não é comunicado por Deus, não há
sacerdócio.
Sacerdócio, sacrifício e redenção
Por outro lado, na obra
redentora, Deus quis servir-Se especialmente da via do sacrifício e, por este
motivo, a graça de Cristo é sacerdotal. Jesus é Sacerdote enquanto homem, e não
enquanto Deus. Esta afirmação é feita por São Paulo, na segunda Leitura de
hoje: “Porque todo Sumo Sacerdote escolhido de entre os homens é constituído a
favor dos homens, nas coisas concernentes a Deus, para oferecer dons e
sacrifícios pelos pecados” (Hb 5, 1).
São inseparáveis as figuras do
sacerdócio e do sacrifício. Essa realidade transparece tanto no Novo Testamento
quanto no Antigo. Se Deus escolheu a via do sacrifício para operar a Redenção,
quis que o Redentor fosse Sacerdote.
Jesus, Sacerdote cheio de compaixão
É ainda São Paulo quem nos
ensina: “Tendo, pois, um Sumo Sacerdote que penetrou nos Céus, Jesus, o Filho
de Deus, conservemos firme a fé que professamos. Porque não temos um Sumo
Sacerdote que não possa compadecer-Se das nossas fraquezas. Pelo contrário, Ele
mesmo foi provado em tudo, à nossa semelhança, exceto no pecado” (Hb 4, 14-15).
Além do oferecimento do
sacrifício, é também ofício do sacerdote interceder pelo povo, impetrando junto
a Deus o auxílio, proteção e perdão necessários. E Jesus, ao ter-Se sentado à
direita do Pai, continuamente está intercedendo por nós em sua oração
sacerdotal. Manifesta ao Pai seu desejo de nos salvar a todos,
apresentando-Lhe, ademais, sua humanidade assumida, a qual por si só constitui
já uma oração sacerdotal (1). Cristo quis assumir a humanidade com vistas ao
sacrifício da Cruz e, estando ressurrecto no Céu, perpetua o oferecimento de seu
holocausto. Essa é uma das diferenças entre o sacerdócio de Cristo e o dos
sacerdotes da Antiga Lei, conforme afirma São Paulo: “E isso não foi feito sem
juramento. Os outros foram instituídos sacerdotes sem juramento, mas Este o foi
com o juramento d’Aquele que disse: ‘O Senhor jurou e não se arrependerá : Tu
és sacerdote eternamente’. Por isso mesmo, Jesus tornou-Se o fiador de uma
aliança superior.
Além disso, existiram numerosos
sacerdotes, porque a morte não permitia que permanecessem. Mas Este, porque
permanece eternamente, possui um sacerdócio eterno. Por isso, pode salvar
perpetuamente os que por Ele se aproximam de Deus, vivendo sempre para
interceder em seu favor” (Hb 7, 20-25).
São Tomás de Aquino levanta
outros argumentos de peso para provar a grandeza divina do sacerdócio de Jesus
Cristo, demonstrando como n’Ele estão preenchidas todas as condições requeridas
para a plenitude do sacerdócio (2).
“Ele sabe ter compaixão dos que
estão na ignorância e no erro”, nos diz ainda São Paulo na segunda Leitura de
hoje (Hb 5, 2). E qual seriam nosso destino e sorte se, nascendo no pecado e a
ele inclinados, não tivéssemos um Sacerdote que, sendo homem, é inteiramente
Deus, para oferecer por nós um sacrifício salvífico que nos resgatasse?
Terríveis consequências do pecado
São Tomás, que nunca abandona
seu sereno equilíbrio, ultrapassa os limites que nós julgaríamos os do exagero
quando trata dos terríveis efeitos do pecado: “Pecando, o homem se afasta da
ordem racional. Decai, assim, da dignidade humana, que consiste em ser
naturalmente livre e existir para si mesmo. Ele cai, de certo modo, no estado
de escravidão dos animais, dispondo-se dele conforme convém à utilidade dos
outros. É o que se diz no Salmo: ‘Estando elevado em honra, o homem não
entendeu, viu-se nivelado aos animais sem razão e a eles se assemelhou’. E
também se lê no livro dos Provérbios: ‘O insensato estará a serviço do sábio’.
(...) Pois o homem mau é pior que um animal, e até mais nocivo, como afirma o
Filósofo” (3)
Guerra contra Deus
Transpostos para o campo da
espiritualidade mística, da grande Doutora da Igreja, Santa Teresa de Ávila, os
conceitos se harmonizam: “Oh! não entendemos que o pecado é uma guerra campal
de todos os nossos sentidos e potências da alma contra o nosso Deus! O que tem
mais poder é o que mais traições favorece contra o seu Rei… Confesso, Pai
Eterno, que guardei mal (a jóia preciosa de Cristo); mas ainda há remédio,
Senhor, há remédio enquanto vivamos neste desterro” (4).
Essa grande reformadora do
Carmelo, que aliás é rica em manifestar seus horrores ao pecado, dirá em outra
de suas obras: “Agora, façamos de conta que Deus é como uma morada ou palácio
muito grande e belo. Poderá, porventura, o pecador sair desse palácio para
praticar o mal? É certo que não. Mas é dentro desse próprio palácio — que é
Deus — que nós, pecadores, praticamos abominações, desonestidades e maldades.
Oh! como isso é terrível, digno de toda a atenção e muito proveitoso para quem
tem poucos conhecimentos e não entende inteiramente essas verdades! [Se
pensássemos nisso] não seria possível fazer desaforo tão irresponsável.
Consideremos, minhas irmãs, como Deus é enormemente misericordioso e paciente,
não nos castigando logo. Devemos dar-Lhe muitíssimas graças e ter vergonha de
ficar ressentidas por aquilo que façam ou digam contra nós. É uma enorme
maldade ver que Deus, nosso Criador, tem dentro de Si mesmo tanta paciência
para com suas criaturas, e ainda assim nós ficarmos ressentidas só porque,
alguma vez, alguém disse algo [sobre nós] em nossa ausência e, talvez, sem má
intenção” (5).
Cegueira de alma
Misterioso e causa de múltiplos
efeitos é o pecado, sendo um deles — e quão terrível! — a cegueira de alma, bem
simbolizada pela perda física da visão. A triste situação de quem não vê, move
o coração do Sumo Sacerdote: “Ele sabe ter compaixão dos que estão na
ignorância e no erro...” (Hb 5, 2); “dos extremos da terra hei de reuni-los;
entre eles, o cego e o aleijado” (Jr 31, 8). Esta é uma das nota a respeito do
Evangelho A cura de Bartimeu que será comentado nos próximos posts.
Naquele tempo, 46Jesus saiu de Jericó, junto com seus discípulos e uma
grande multidão. O filho de Timeu, Bartimeu, cego e mendigo, estava sentado à
beira do caminho. 47Quando ouviu dizer que Jesus, o Nazareno, estava passando,
começou a gritar: “Jesus, filho de Davi, tem piedade de mim!”
Segundo a narração de São
Marcos, Jesus encontra-se em viagem rumo a Jerusalém, deixando atrás de si
Cesaréia de Filipe, ao norte da Galiléia. Como nunca perdia um só segundo nem
oportunidade, Ele aproveitará esse percurso para ir instruindo seus discípulos,
a fim de torná-los aptos à grande missão que lhes caberá, uma vez fundada a
Igreja. Ao iniciar-se essa caminhada, uma grande multidão se junta aos
discípulos, sempre desejosa de assistir a mais algum milagre, ou de ouvir as
maravilhas transbordantes dos lábios do Mestre. Como primeiro ato desse
trajeto, está a cura de um cego. São Mateus (20, 29-34) narra o fato como tendo
se passado com dois cegos, e não somente um. São Marcos diz-lhe o nome:
Bartimeu, ou seja, “filho de Timeu”. Ademais, à diferença de São Mateus,
acrescenta outros dados muito interessantes: o empenho das pessoas do povo em
estimular o pobre cego a se aproximar de Jesus, logo após terem ouvido que o chamava.
Como também a prontidão deste, ao lançar fora seu manto e saltar procurando
acercar-se de Jesus. Mateus, por sua vez, afirma ter-se dado a cura quando
Jesus tocou os olhos do cego, e Lucas (18, 35-43) menciona uma forma imperiosa
empregada por Ele.
A conjugação das três
narrativas nos dá um quadro minucioso do acontecido. O título de “Filho de
Davi”, segundo bons autores, deve-se ao fato de já, a essa altura, estar
difundida entre todos a noção — e da parte de alguns até a crença — de que
Jesus era, verdadeiramente, o Messias. Descarta-se, portanto, a hipótese de que
o cego (ou, segundo Mateus, os dois cegos), usando essa expressão, desejasse
captar a benevolência de Jesus em favor de sua cura.
Há quem levante a hipótese de
serem três os milagres efetuados por Jesus naquela ocasião, inteiramente
distintos, cada um deles narrado por um desses três Evangelistas. Outros, porém
— e é a quase a totalidade — julgam que os dados em comum idênticos tornam
impossível não se tratar de um mesmo e único milagre.
E por que Marcos e Lucas fazem
referência a um só cego? Uma boa maioria dos exegetas opina ser provável que os
cegos eram dois, conforme Mateus indica, mas um deles devia ser muito
conhecido, a ponto de Marcos tê-lo posto em cena com seu nome próprio.
Quanto ao lugar onde se teria
dado o milagre, as explicações, se bem que diversas, visam fazer uma
aproximação entre os Evangelistas, concluindo em favor de um único
acontecimento.
48Muitos o repreendiam para que se calasse. Mas ele gritava mais ainda:
“Filho de Davi, tem piedade de mim!”
Quase nunca faltam a essas cenas evangélicas
os aspectos carregados de cores, característicos do Oriente. Os costumes,
marcados por um temperamento borbulhante e nada retraído, se refletem tanto na
atitude do cego Bartimeu como na reação da multidão contra os gritos dele. É
interessante percorrer os comentários tecidos a esse respeito pelos santos e
padres da Igreja, como São Beda, São Jerônimo, São João Crisóstomo e outros.
Este último, por exemplo, assim se exprime: “Permitia Cristo que o
repreendessem para que o desejo dele se acendesse mais. Daí podemos concluir
que, qualquer que seja a forma de desprezo que caia sobre nós, podemos alcançar
o que pedimos, desde que nos aproximemos de Cristo com autêntico desejo” (6).
Seja como for, essa disputa
entre os acompanhantes de Jesus e o cego tem um lado pitoresco, muito próprio a
uma sociedade orgânica, na qual nem se chegara a sonhar com um mundo dominado
pela máquina. Nela, o relacionamento humano é não só intenso, mas constitui até
a essência da vida comum e quotidiana. Todos querem tirar partido da presença
de um homem incomum, transbordante de sabedoria e que multiplica bondosamente
os milagres por onde passa. A multidão não deseja perder a menor oportunidade
de vê-lo e ouvi-lo. A comitiva, ao se deslocar, evita ao máximo os empecilhos,
para apanhar todos os comentários do Mestre, e a gritaria de um cego torna
difícil seguir o fio das exposições. Contudo, para Bartimeu, era a única e
exclusiva chance de sua vida. Assim, enquanto uns o repreendem, mais alto ainda
ele grita.
49Então Jesus parou e disse: “Chamai-o”. Eles o chamaram e disseram:
“Coragem, levanta-te, Jesus te chama!” 50O cego jogou o manto, deu um pulo e
foi até Jesus.
A certa altura, o Salvador interrompe a marcha
e manda chamar o cego. Segundo Mateus, Ele mesmo toma sobre si a iniciativa de
fazê-lo aproximar-se. Marcos é mais preciso: Jesus, dando ordem à multidão, ao
mesmo tempo impede, implicitamente, que continuem repreendendo o pobre Bartimeu.
Com tais e tantos gritos, era evidente que Cristo já o ouvira, porém
agradava-Lhe aquela insistência. É bem exatamente o que se passa conosco em
nossas orações. Deus quer nossa constância. A determinação de Jesus criou uma
expectativa na multidão, e essa reação psicológica transformou a anterior
acidez em empenho de estimular o cego a encher-se de ânimo. Este — como sói
acontecer com quem perde o sentido da visão — por instinto discerniu onde
estava Aquele que tinha o poder de curá-lo e, num salto, a Ele se dirigiu,
pouco se importando com seu próprio manto, lançando-o de lado.
51Então Jesus lhe perguntou: “O que queres que eu te faça?” O cego respondeu:
“Mestre, que eu veja!” 52Jesus disse: “Vai, a tua fé te curou”. No mesmo
instante, ele recuperou a vista e seguia Jesus pelo caminho.
Mais uma vez o Divino Mestre,
para robustecer a fé do cego, apesar de conhecer o grande desejo de sua alma,
pergunta-lhe qual era sua demanda. Bartimeu, que tanto clamara pelo Filho de
Davi sem obter a visão, responde chamando-O de “Senhor” (conforme dizem Mateus
e Lucas), fato suficiente para demonstrar o quanto ele acreditava na divindade
de Jesus, e recebe, além de um elogio à sua fé, a recuperação da vista.
Este acontecimento foi
extremamente didático e comprobatório da messianidade de Jesus. Justamente no
início da sua última subida a Jerusalém, quando Ele se dirigia para a morte, um
cego recupera a vista por proclamar o Filho de Davi como sendo seu Senhor...
Assim termina Orígenes os
comentários das últimas palavras do Evangelho de hoje: “Também a nós, que
estamos sentados próximo ao caminho das Escrituras e sabemos em que consiste
nossa cegueira, se pedirmos com todo o empenho, o Senhor nos tocará, abrirá os
olhos de nossas almas e afastará de nossos sentidos as trevas da ignorância, a
fim de que O vejamos e sigamos, única finalidade que Ele tinha ao nos conceder
a vista” (7).
O mal da cegueira espiritual
A cegueira, quer seja física,
quer espiritual, é um mal indolor. A primeira é involuntária quanto à origem, mas
o mesmo não se dá com a outra: nesta ingressamos por culpa própria, sempre que
damos largas às nossas paixões, não correspondendo às inspirações da graça e às
advertências de nossa consciência. É digno de comiseração alguém que perdeu a
vista, como o nosso pobre Bartimeu. Para ele, todas as belezas criadas por Deus
não são senão trevas. Muito mais digno de pena é quem sepultou seu coração na
obscuridade, rejeitando a luz de Deus. Para este, as verdades eternas não
existem. O fogo inextinguível do inferno, as inimagináveis glórias celestes, a
implacabilidade do Juízo Particular ou Final, jamais lhe passam pela mente e,
portanto, não o impressionam. Poderá assistir a alguma cerimônia representando
a Paixão de Nosso Senhor, de um Deus que se encarna e morre na Cruz para nos
redimir, sem ocorrer-lhe algum pensamento piedoso de contrição, confiança ou
gratidão. O sobrenatural não o comove, pois não passaria de uma invenção humana
submersa nas trevas de sua consciência.
A fé não é mais a luz de suas ações
A perda da vista, apesar de nos
impedir de nos guiarmos nos espaços físicos segundo nossas próprias
deliberações e usando de nossa autonomia, inclina-nos à humildade e submissão
aos outros, a confiar em seu auxílio. Por isso, quando bem aceita, ela pode ser
um excelente meio de santificação. Muito pelo contrário, a cegueira espiritual
priva-nos de elementos fundamentais para nossa salvação — como são as
misericórdias que desprezamos — e nos faz correr terríveis riscos, enquanto
acumulamos as iras de Deus.
Quantas vezes os mais cegos de
Deus são aqueles que se crêem cheios de luzes...
Um cego como este do Evangelho,
poderá fazer algo de útil, além de pedir esmolas? Mais uma razão de compaixão!
Entretanto, muitíssimo pior é a
situação de um cego espiritual, pois a fé já não é mais a luz de suas ações;
sua finalidade última apagou-se aos seus olhos. Ele se atira às inúmeras
atividades e projetos de seu dia-a-dia, esfalfando-se em busca de uma reputação
que não é senão fumaça, de uma riqueza que outros consumirão, de um prazer
ilícito que durará pouco e lhe fará merecer um castigo sem fim, de uma saúde
que terminará mal, pois seu corpo apodrecerá no fundo de uma sepultura.
Um cego de Deus ignora o poder de Jesus
A Bartimeu lhe faltava um dos
elementos essenciais para enriquecer-se, por isso caiu inevitavelmente na
pobreza passando a viver de esmolas. Ao cego de Deus, entretanto, é possível
fazer fortuna; porém, debaixo deste ponto de vista, é ele ainda mais digno de
pena: quando se fecharem definitivamente para a luz do dia seus olhos carnais,
os espirituais de imediato se abrirão, mas quão tarde será, para ele, ver a
grande dimensão de sua real miséria em todo o seu horror. E, tomara, não seja
essa a hora do desespero.
Como vemos pelo relato de
Marcos, o cego, ao saber que por ali passaria Jesus, pôs-se a gritar cheio de
alegria e esperança, pois acreditava no poder do Mestre de curá-lo. Um cego de
Deus ignora por completo esse poder. Mesmo o fato de, ao longo da História,
Jesus ter iluminado estes ou aqueles pecadores, dos mais inveterados,
levando-os à conversão, nada significa para as pessoas nas quais a luz da fé se
apagou.
“Senhor, que eu veja!”
Se me analisar, com toda a
honestidade de consciência, não encontrarei no fundo de minha alma alguma
sombra onde a luz do sobrenatural não chega, um ou outro refolho onde não
penetra a voz de Deus? Esse é o momento de eu imitar o pobre Bartimeu. O
próprio Jesus continua aqui, nos tabernáculos das igrejas. Por que não
aproveitar uma ocasião para d’Ele me aproximar e pedir-Lhe o milagre? Devo
temer a Jesus que passa e não volta, e bradar continuamente, porque Ele ouve
melhor os desejos abrasados...
Imitar a atitude de Bartimeu
Tenhamos por certo este
princípio: sempre que um cego de Deus abraça o caminho da conversão, “a
multidão” tenta dissuadi-lo de prosseguir, fazendo todo o possível para lhe
criar obstáculos. Infelizmente, a essa “multidão” de mundanos se associa a
multidão de seus próprios pecados e paixões, para fazê-lo silenciar. Também
aqui é oportuno imitar a atitude de Bartimeu, ou seja, não só não ceder às
pressões, como até, pelo contrário, redobrar em ardor, esperança e desejos.
Dessa forma, não tardará a comprovar a realidade da convicção do Apóstolo:
“Tudo posso n’Aquele que me conforta!” (Fl 4, 13).
“Senhor, que eu veja!”, deve
ser o pedido de quem esteja imerso na tibieza e, sobretudo, de quem é cego de
Deus. Bartimeu não pediu a fé, porque já a possuía. Sua cegueira era
simplesmente física. Examinemos nossas necessidades espirituais e peçamos tudo
a Jesus. Sem duvidar, aguardemos até mesmo o milagre, pois Ele nos assegura:
“Tudo quanto pedirdes ao Pai em meu nome, Eu o farei” (Jo 14, 13).
A fé vai-se tornando privilégio de minorias
O número dos que sofrem de
cegueira física, no mundo, é insignificante, em comparação com os cegos
espirituais. A cegueira de coração atinge uma quantidade assustadora de pessoas
em nossos dias. A fé vai se tornando privilégio de minorias. Há cegos não só
nos caminhos da salvação, mas até mesmo nas vias da piedade. Estes levam uma
vida pseudotranquila, submersos nos perigos da tibieza; cometem faltas, mas
conseguem muitas vezes, através de inúmeros sofismas, adormecer suas
consciências, não experimentando mais os benéficos remorsos. Confessam-se por
pura rotina, comungam sem dar o devido valor à substância do Sacramento
Eucarístico, rezam sem devoção...
E — quem diria? — há cegos
entre os que abraçaram o caminho da perfeição, mas deixaram de aspirar a ela,
contentando-se com uma espiritualidade medíocre, esquálida e infrutuosa. Eles
nada fazem para atingi-la, procurando-a onde ela jamais se encontra.
Pureza de coração
Enfim, para não ser cego de
Deus, é preciso ser puro de coração. Uma das principais causas da cegueira de
nossos dias é a impureza. Nosso Senhor diz no Sermão da Montanha:
“Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus” (Mt 5, 8). Não se
trata exclusivamente da virtude da castidade, mas, muito, da reta intenção de nossos
desejos. Tanto uma quanto a outra vão-se tornando raras a cada novo dia, nesta
era de progressiva cegueira de Deus...
São essas algumas das razões
pelas quais a humanidade necessita voltar-se urgentemente para a Mãe de Deus,
apresentando por meio d’Ela, ao Divino Redentor, o mesmo pedido de Bartimeu:
“Senhor, que eu veja!”
1 Cfr. São João Crisóstomo, Comment. in Epist. ad Hebraeos, c. 7, lect. 4.
2Cf. Suma Teológica III,
q. 22, a.1
3 Suma Teológica II-II
q. 64 a.2 ad 3
4 Cf. Exclamaciones del
alma a Dios, c. 14, in Obras completas de Santa Teresa de Jesús, Ed. Aguilar,
Madrid, 1942, pp. 459-460
5 Cf. Castillo interior
o las moradas — Moradas sextas c.10 in op. cit., p. 403
6 S. João Crisóstomo ,
Hom. 67, in Mt XX, 31 7 ) Apud São Tomás de Aquino, Catena Áurea.
7 Apud São Tomás de
Aquino, Catena Áurea.
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