Comentário ao Evangelho – XXXII Domingo do Tempo Comum – Ano B
Mons. João
Scognamiglio Clá Dias, EP
“Naquele tempo, 38 Jesus dizia, no seu ensinamento a uma grande
multidão: ‘Tomai cuidado com os doutores da Lei! Eles gostam de andar com
roupas vistosas, de ser cumprimentados nas praças públicas; 39 gostam das
primeiras cadeiras nas Sinagogas e dos melhores lugares nos banquetes. 40 Eles
devoram as casas das viúvas, fingindo fazer longas orações. Por isso eles receberão
a pior condenação’.
41 Jesus estava sentado no Templo, diante do cofre das esmolas, e
observava como a multidão depositava suas moedas no cofre. Muitos ricos
depositavam grandes quantias. 42 Então chegou uma pobre viúva que deu duas
pequenas moedas, que não valiam quase nada. 43 Jesus chamou os discípulos e
disse: ‘Em verdade vos digo, esta pobre viúva deu mais do que todos os outros
que ofereceram esmolas. 44 Todos deram do que tinham de sobra, enquanto ela, na
sua pobreza, ofereceu tudo aquilo que possuía para viver’” (Mc 12, 38-44).
Dar, dar de si, dar-se por inteiro!
Em face das mentirosas
aparências derivadas do orgulho, manifestadas na hipocrisia dos doutores da
Lei, Nosso Senhor nos exorta a sermos sinceramente generosos como a pobre
viúva, dando tudo de nós mesmos por amor a Ele.
I – A alegria de dar
Ao analisarmos a natureza,
encontramos um fenômeno difundido por toda a criação, desde o reino mineral até
o mundo dos seres angélicos. O Sol está sempre espalhando sua luz e seu calor
sobre a Terra, beneficiando todos os seres que precisam dessa irradiação. As
águas, no seu constante movimento, se evaporam e constituem nuvens que, depois
de carregadas, despejam sobre o solo elementos indispensáveis para a vida.
Constatamos a extraordinária variedade e a superabundância de peixes que povoam
os mares e os rios para alimentar o homem, ou a riqueza de frutos que a terra
lhe oferece ao longo de todo o ano. Vemos por aí como a natureza, por assim
dizer, procura dar de si. Se seus elementos fossem passíveis de felicidade, a
árvore frutífera, por exemplo, teria um júbilo enorme pelo fato de produzir
frutas e ofertá-las ao homem; o mar se sentiria feliz em entregar-lhe os
peixes; e a alegria do Sol consistiria em estar constantemente iluminando e
aquecendo a Terra e os que nela habitam. Pois bem, essa generosidade que se
verifica no universo inteiro é o princípio sobre o qual se funda a Liturgia de
hoje: dar, dar de si, dar-se por inteiro!
CONTRASTE ENTRE EGOÍSMO E GENEROSIDADE
Para entendermos bem o trecho
evangélico recolhido pela Igreja para este domingo, de vemos levar em
consideração que os Sagrados Evangelhos não foram escritos apenas como um livro
comum, uma história para fazer bem às almas piedosas dos primeiros tempos do
Cristianismo. Antes de tudo, eram eles uma convocação à culminância espiritual,
a uma perfeição como a do Pai do Céu. Mas não só isso: eram também elemento de
polêmica, uma vez que os primeiros divulgadores da Boa-nova, na sua ação
apostólica, encontravam diante de si obstáculos a vencer. Quando São Marcos
elaborou seu Evangelho, um desses entraves provinha de homens versados na Lei
de Moisés e nas Escrituras do Antigo Testamento.
Tenhamos em vista também o
seguinte: o Evangelista viveu em Roma durante muito tempo, como auxiliar de São
Paulo e de São Pedro, e escrevia visando alcançar o público romano, como é
opinião comum dos exegetas. Ora, nesse tempo muitos judeus residiam na capital
do Império, e bom número deles estava ingressando nas fileiras cristãs. Ora,
tanto os que permaneciam na sinagoga quanto os neoconvertidos (antes de terem
uma conversão plena, o que não era fácil) queriam a todo o custo fazer
prevalecer seus costumes e a Lei de Moisés entre os cristãos, inclusive no meio
daqueles provenientes da gentilidade. Podemos comprová-lo pela leitura da
Epístola de São Paulo aos Romanos, na qual ele exproba longamente os judeus da
Cidade Eterna por tal postura.
Enquanto São Lucas e São Mateus
não se mostram tão contundentes perante essa situação, São Marcos polemiza
incansavelmente, de modo particular contra os doutores da Lei, pois estes
atrapalhavam sua ação apostólica, como fica patente pelas frequentes menções
feitas a eles no seu Evangelho.1
Não lhes poupando merecidas
críticas, São Marcos dá destaque às discussões que tiveram com Nosso Senhor, e
delas tira riquíssimas lições morais para os cristãos de todos os tempos.
Alertando as multidões contra a hipocrisia
“Naquele tempo,
38 Jesus dizia, no seu ensinamento a uma grande multidão: ‘Tomai cuidado com os
doutores da Lei! eles gostam de andar com roupas vistosas, de ser
cumprimentados nas praças públicas; gostam
das primeiras cadeiras nas Sinagogas e dos melhores lugares nos banquetes.
É importante
destacar o detalhe apontado pelo evangelista: Jesus falava a “uma grande
multidão”. Portanto, foi um ensinamento destinado a todos e dado sem rodeios,
alertando o povo contra os doutores da Lei, pelas razões expostas a seguir.
Segundo os costumes
da época, era natural que todo mundo fizesse vênias especiais quando passava um
doutor da Lei, aos quais estavam reservados os lugares de preeminência nos atos
públicos. Conforme faz notar o padre Tuya, a praça pública, ou ágora, era o
centro comercial e social da cidade. Por isso, os escribas e fariseus gostavam
de, com seus vistosos trajes, passear lenta e gravemente nesse local, para
receber os cumprimentos do povo. Cobiçavam de modo especial o título de Rabi
(meu Mestre). “Nas assembleias, os lugares eram determinados não só em razão da
idade, mas também da dignidade do personagem, por exemplo, de sua sabedoria.
Como os lugares designados em razão da dignidade eram muito menos numerosos que
os destinados a pessoas por motivo da idade, queriam os fariseus, por
ostentação e vaidade, que nos banquetes lhes fossem dados esses primeiros
lugares, para destacar assim sua dignidade. [...J Era uma ânsia desmedida,
infantil e quase patológica de vaidade e soberba” 2
Uma leitura
superficial dos dois versículos acima transcritos poderia levar a crer que não
se deve usar roupas belas, cumprimentar com cortesia ou favorecer a hierarquia
no relacionamento social. Aliás, as roupas nobres e decorosas estão sendo
abandonadas, em razão da mentalidade dos dias nos quais vivemos. Predomina o
feio pelo feio, e o igualitário pelo igualitário. Vai se generalizando o gosto
de vestir-se o mais negligentemente possível, de modo a poder sentar-se no
chão; entram na moda o feio, o velho, o rasgado e o imoral, enquanto se simplificam
ao máximo os costumes, tal como nem seres irracionais o fariam. Não é isso o
que Nosso Senhor queria para seus seguidores.
O problema não está
na roupa vistosa ou na honraria, mas em querer chamar a atenção sobre si, isto
é, em ter a intenção, não de louvar a Deus, mas de louvar-se a si mesmo. Os
costumes enumerados por Nosso Senhor, de si legítimos em algumas
circunstâncias, eram do gosto dos doutores, mais por soberba do que por
admiração pelas coisas belas, pelo desejo de glorificar a Deus ou pelo intuito
de fazer bem ao próximo. Seu objetivo era vangloriar-se, ostentar
superioridade, no fundo, serem “adorados”, incensados pelos outros. Usurpavam,
pois, o lugar central pertencente a Deus. Aquele aparato de dignidade, aquela
aparência de honra, respeito e sabedoria deveria corresponder à realidade; ou
seja, a vida de tais doutores é que deveria torná-los credores dessas
homenagens.
Entretanto, a
realidade era bem diferente, e Nosso Senhor vai denunciá-la.
A aparência, manto de uma realidade pecaminosa
40 “Eles devoram as casas das viúvas, fingindo fazer longas
orações. Por isso eles receberão a pior condenação”.
No Antigo
Testamento, a viúva tinha muito pouca proteção, e, assim sendo, homens
inescrupulosos procuravam arrancar delas o quanto podiam. Comum era o caso de
viúvas sem filhos adultos, às quais tocava a responsabilidade de administrar a
fortuna da família. Nessa situação de desamparo, conforme aponta Nosso Senhor,
introduzia-se um mestre da Lei que, sob a escusa de rezar, terminava por
rapinar seus haveres.
Ao denunciar esse
tipo de ações, o Divino Mestre deixava patente aos seus ouvintes o quanto os
doutores da Lei representavam exteriormente aquilo que de fato não eram.
Conheciam todos os meandros da Lei, sem praticá-la... Na realidade, portavam-se
como vorazes devoradores de fortunas alheias. Ainda mais, sendo legistas,
sabiam bem conduzir os processos jurídicos que rodeavam cada pleito de sucessão
e, com isso, tinham maior facilidade em terminar apossando-se do dinheiro.
Portanto, sob
aparência de virtude ocultava-se uma mentalidade de vampiro, cujo fim era
arrancar dos outros, de forma injusta e inescrupulosa, tudo quanto fosse
possível.
As funestas consequências do orgulho
Sirva-nos isto de
alerta contra os perigos do orgulho. Toda vaidade — quando aceita com
indulgência, como acontecia com esses doutores — acaba levando à desobediência
aos Mandamentos de Deus. Condição essencial para manter-se fiel à Lei é a
humildade; a chave da prática duradoura de todos os preceitos divinos é esta
virtude.
No caso dos
doutores da Lei, o egoísmo orgulhoso, agravado pela duplicidade de espírito, a
hipocrisia de representar de maneira aparatosa aquilo que não se é, torna-os
merecedores da “pior condenação”, segundo a enérgica expressão do próprio
Homem-Deus: a danação eterna, no inferno, castigo adequado para quem, tomando
as vias do orgulho, embrenha-se na desonestidade e em outros pecados. Fujamos,
pois, de toda e qualquer vanglória, para não terminarmos por romper com os
demais Mandamentos da Lei de Deus. E tenhamos a certeza desta verdade: na raiz
de todo pecado grave está sempre o orgulho.
Fazer
o bem por ostentação
41 “Jesus estava sentado no Templo, diante d0 cofre das esmolas,
e observava como a multidão depositava suas moedas no cofre. Muitos ricos
depositavam grandes quantias”.
Ao exemplo dado
sobre o comportamento dos legistas, Nosso Senhor vai contrapor a cena que se
segue. Existiam no Templo treze cofres para o depósito de esmolas. “O
gazofilácio, ou tesouro do Templo”, informa-nos o padre Tuya, “estava situado
no átrio das mulheres. Provavelmente havia várias câmaras para a conservação
desses tesouros. Na parte anterior, segundo a Mishna, havia treze alçapões em
forma de trombeta, de abertura muito grande no exterior, por onde se atiravam
as oferendas”.3
Naquela pequena
sociedade — ao contrário dos aglomerados de pessoas anônimas das grandes
cidades modernas — todos se conheciam e, portanto, quem dava esmolas muito
atraía a atenção.
Lembremos também
que naquele tempo não existia o papel-moeda, mas apenas as peças cunhadas em
metal nobre como o ouro e a prata, ou em metais de menor valor. Assim, esses
cofres favoreciam muito o desejo de ostentação. Quem possuía grande fortuna
podia com facilidade despejar neles enormes quantidades de moedas, de maneira
aparatosa e barulhenta, alardeando perante os circundantes sua suposta
generosidade. Como Nosso Senhor denunciara em outra ocasião (cf. Mt 6, 2), com
frequência a ação desses hipócritas era precedida por toques de trombeta que
anunciavam a esmola a ser dada. Feito isto, um novo toque indicava a saída do
doador. Este se retirava coberto de glória, alvo da admiração das pessoas
presentes, que cochichavam elogios.., calculando, sem dúvida, qual o montante
depositado no cofre.
Sentado no Templo
“diante do cofre das esmolas”, o Divino Mestre observava em silêncio essa cena
tão comum para os conhecedores do local.
Um desmedido contraste
42 “Então chegou uma pobre viúva que deu duas pequenas moedas,
que não valiam quase nada .
É importante
ressaltar o contraste das duas atitudes. Podemos imaginar a viúva, já de certa
idade, arrastando os pés, meio curvada pelos achaques do tempo. Segundo o padre
Tuya, ela atirou dois “leptos”, o equivalente a dezesseis avos de um denário,
ou seja, uma insignificância, pois “o denário era considerado como o salário
diário de um trabalhador”.4
Comparado com o
espalhafatoso barulho das moedas lançadas pelos ricos, reduzia-se a quase nada
o leve ruído produzido pelas duas moedinhas da pobre mulher. Sem dúvida, pouca
impressão causou nos circunstantes, muito preocupados em calcular o valor
aproximado das esmolas que iam sendo depositadas. Como veremos depois, nada
mais tinha ela para ofertar, talvez pelo fato de sua antiga fortuna ter sido
dilapidada por algum rapinador, segundo a denúncia feita por Jesus pouco antes.
Perante essa cena,
Nosso Senhor rompe o silêncio para dela tirar um salutar ensinamento.
A
verdadeira generosidade
43 “Jesus chamou
os discípulos e disse: ‘Em verdade vos digo, esta pobre viúva deu mais do que
todos os outros que ofereceram esmolas. 44 Todos deram do que tinham de sobra,
enquanto ela, na sua pobreza, ofereceu tudo aquilo que possuía para viver’”.
Grande deve ter
sido a impressão produzida por essas primeiras palavras do Mestre. Como podia a
pobre viúva ter dado “mais do que todos os outros”, se estes despejaram grande
quantidade de moedas de ouro, enquanto ela depositou apenas duas moedinhas de
valor insignificante?
Para esclarecer seu
ensinamento, Jesus explica: a viúva jogou no cofre tudo quanto “possuía para
viver”, enquanto os ricos deram do que lhes sobrava. Ao fazer essa comparação,
Cristo não visava condenar os ricos, mas elogiar aquela mulher pelo fato de
nada ter guardado para si. Com efeito, quando um rico entrega a integridade de
seus bens, ele dá mais do que quem faz o mesmo, mas dispõe de pouco. Era o
caso, por exemplo, de Lázaro, Marta e Maria, membros de uma abastada família de
Israel, os quais se entregaram por inteiro a Nosso Senhor.
Aquela viúva dera
tudo, pondo-se nas mãos de Deus. É muito de se crer que o próprio Jesus lhe
outorgara a graça de assim proceder, propondo-Se ampará-la. Sem esta o saber,
Ele oferecia à pobre mulher um bem superior a qualquer outro: a glória de ser
elogiada pelo Verbo Encarnado. Nessa complacência de Nosso Senhor para com ela,
entrava uma predestinação para a glória eterna.
No extremo oposto
estavam os mestres da Lei: estes “devoram as casas das viúvas, fingindo fazer
longas orações”, motivo pelo qual “receberão a pior condenação” (Mc 12, 40).
Deus conhece as intenções do coração
Nestes versículos,
Nosso Senhor contrapõe o episódio das esmolas à denúncia antes feita contra os
doutores da Lei. Em ambos os casos, vemos nas atitudes dos personagens a
exterioridade, mas não o íntimo. No entanto, “o olhar de Deus não é como o do
homem, pois o homem olha para a aparência, enquanto Deus olha para o coração”
(I Sm 16, 7). Esse divino olhar sempre nos acompanha, nada lhe escapa. Nossa
vida, nossos atos, nosso comportamento, são julgados com uma precisão absoluta
pelo olhar de Deus, o qual penetra no interior de todos e analisa o fundo das
almas, sabendo perfeitamente o que se passa em cada uma.
Comparando a
disposição de espírito dos mestres da Lei com a da viúva, Jesus queria deixar
patente a existência de dois extremos: o da generosidade, em contraste com o do
egoísmo e do amor desordenado a si mesmo.
O apego, que num
rico se distribui entre suas milhares de moedas, no caso do pobre se concentra
em umas poucas. Renunciar a elas exige um sacrifício não pequeno, ainda mais se
forem só duas. Mas aquela senhora as ofertou generosamente, depositando sua
inteira confiança em Deus. É a mesma atitude assumida por outra viúva, esta da
cidade de Sarepta na Sidônia, contemplada na primeira leitura deste domingo (I
Rs 17, 10-16). Quando recebeu o Profeta Elias em sua casa, tinha ela apenas um
punhado de farinha e um pouco de azeite para fazer um último pão para si e seu
filho. No entanto, solicitada pelo homem de Deus, concordou em dar-lhe esse
único alimento. Por ter agido assim, o azeite e a farinha se multiplicaram indefinidamente
em sua despensa, até voltar a cair a chuva sobre a terra. Assim é a recompensa
de Deus para todo aquele que dá com agrado e generosidade.
Os dois polos
Também nós devemos
ser generosos para com Deus, tanto quanto Ele é generoso para conosco. Temos de
entregar-Lhe tudo! Entretanto, isto não pode ser interpretado como uma
obrigação de nos desfazermos de tudo quanto nos pertence e passarmos a viver de
esmolas. Algumas poucas pessoas recebem essa sublime vocação. Trata-se, isto
sim, de compreender que todos os nossos bens — e inclusive nós mesmos — são
propriedade de Deus.
A Liturgia de hoje
nos apresenta uma opção entre dois polos: o da generosidade total ou o do
egoísmo total. Ou escolhemos um e odiamos o outro, ou vice-versa. Ou somos de
Deus inteiramente, ou somos inteiramente de nós mesmos. No meio termo ninguém
fica.
Se temos uma
vocação de vida consagrada, precisamos estar a cada momento dispostos a dar
tudo, não apenas por causa de um compromisso assumido numa cerimônia, mas pela
convicção de que nossa vida está confiscada por Deus.
No entanto, como
aplicar esse princípio à vida de quem é chamado a constituir família e tem,
portanto, o dever de estado de prover da melhor maneira possível os seus? A
resposta é simples. Esse “dar tudo” não significa desfazer-se literalmente das
próprias posses, mas sim ter em relação a elas uma atitude de tal
desprendimento que elas não se constituam em amarras que impeçam a elevação de
nossas almas até as coisas celestes. Se não for assim, acaba-se por cair no
desvio dos doutores da Lei, denunciado por Nosso Senhor neste trecho do
Evangelho de São Marcos.
Na generosidade, a perfeita alegria
O exemplo supremo
do dar, dar de si e dar-se por inteiro, nós o encontramos na segunda leitura
deste domingo, tirada da epístola de São Paulo aos Hebreus (Hb 9, 24-28). O Pai
tinha um Filho unigênito, gerado desde toda eternidade, e não criado. O amor
d’Ele ao Filho e do Filho a Ele é tão intenso que d’Eles procede uma Terceira
Pessoa, que é o Espírito Santo.
Apesar desse amor
entranhado, o Pai resolveu entregar seu Filho para resgatar a natureza humana,
extraviada pelo pecado. E o Filho, que deveria encarnar-Se na glória, uma vez
que sua alma está na visão beatífica, suspendeu essa lei para assumir uma
natureza mortal.5 Ele queria dar,
dar de Si e dar-Se por inteiro, e, por amor a nós, assumiu um corpo padecente,
sujeito a todas as dificuldades da vida nesta Terra. “Uma vez por todas, Ele Se
manifestou para destruir o pecado pelo sacrifício de Si mesmo” (Hb 9, 24-26).
Eis o exemplo
divino, convidando cada um de nós a, segundo nossos deveres e possibilidades,
dar não só daquilo que nos sobra, mas dar tudo. Foi Deus quem nos criou e
redimiu, e por isso a Ele pertencemos. Tudo é d’Ele e deve voltar para Ele.
E assim como o Sol,
a água ou as árvores, se fossem passíveis de felicidade, estariam completamente
felizes pelo dom generoso de si, também nós encontraremos nossa perfeita
alegria no dar, dar de nós e dar-nos por inteiro.
Remédio para nossas misérias e amparo contra as tentações
Quando alguém dá de
si, seu egoísmo acaba sendo sufocado em benefício do serviço aos outros. Servir
— quer seja dando um bom exemplo, um bom conselho, ou prestando algum auxílio —
repara as nossas faltas e ao mesmo tempo nos afasta do pecado. Assim, um modo
de adquirirmos forças para enfrentar as tentações é fazer o dom de nós mesmos.
Pelo contrário,
quem se fecha em seu egoísmo, desprepara-se para o momento sempre presente da
tentação, pois basta-nos existir para sermos um foco de solicitações para o
pecado, como diz São Pedro: “Sede sóbrios e vigiai. O vosso adversário, o
diabo, ronda como leão a rugir, procurando a quem devorar” (I Pd, 5, 8).
Procuremos a felicidade onde ela se encontra
Nada traz mais
felicidade a uma alma do que devolver a Deus aquilo que Lhe pertence. A justiça
consiste em “dar a cada um o seu direito”.6 Ora, se vêm de Deus todas as coisas
que foram criadas e estão à disposição do homem, este é devedor de tudo quanto d’Ele
recebeu. O empréstimo faz parte dos acordos entre os homens. Quem empresta fica
à espera da devolução do bem emprestado; e quem o tomou de empréstimo tem
obrigação de devolvê-lo ao dono. Ora, se isto é assim no relacionamento humano,
não podemos nos esquecer: tudo o que temos não é senão um empréstimo de Deus!
Desde nossa vida, até nossas capacidades e qualidades, passando por todos os
nossos bens.
Assim seremos
livres, pois só é realmente livre quem é justo, e põe nas mãos de Deus tudo o
que d’Ele recebeu.
Daria indícios de
loucura quem, tendo perdido alguma coisa dentro de um teatro, fosse procurá-la
do lado de fora, alegando que a rua está mais iluminada. E o que faz o mundo
hodierno? Por ter-se afundado no egoísmo, corre atrás da felicidade onde ela não
se encontra. Proclamando que a liberdade consiste em entregar-se à sanha das
paixões e das más inclinações, vai à procura da felicidade no vício, no pecado
e em quantas loucuras, onde encontra, não a felicidade, mas a frustração, a
depressão e, por vezes, as doenças. Dessa maneira, o egoísmo, fustigado por
Nosso Senhor no Evangelho de hoje, já é castigado aqui na Terra, sendo ainda
merecedor da pena eterna.
A verdadeira
alegria está na generosidade virtuosa, pois é nela que o homem cumpre
inteiramente sua finalidade de “conhecer, servir e amar a Deus” neste mundo, de
modo a “ser elevado à vida com Deus no Céu”.7
1Cf. LAGRANGE, OP,
Marie-Joseph. Évangile selon Saint Marc. 5.ed. Paris: J. Gabalda et Fils, 1929,
p.328.
2TUYA, OP, Manuel de. Biblia comentada. Evangelios. Madrid: BAC,
1964, v.V, p.499-500.
3Idem, p.710.
4Idem, p.710-711.
5Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. III, q.14, a.1, ad 2.
6Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. II-II, q.58, a.1.
7Compêndio do Catecismo da Igreja Católica, n.67.
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