Tríduo Pascal

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Evangelho XXXII Domingo do Tempo Comum – Ano B - Mc 12, 38-44

Comentário ao Evangelho – XXXII Domingo do Tempo Comum – Ano B
Mons. João Scognamiglio Clá Dias, EP
“Naquele tempo, 38 Jesus dizia, no seu ensinamento a uma grande multidão: ‘Tomai cuidado com os doutores da Lei! Eles gostam de andar com roupas vistosas, de ser cumprimentados nas praças públicas; 39 gostam das primeiras cadeiras nas Sinagogas e dos melhores lugares nos banquetes. 40 Eles devoram as casas das viúvas, fingindo fazer longas orações. Por isso eles receberão a pior condenação’.
41 Jesus estava sentado no Templo, diante do cofre das esmolas, e observava como a multidão depositava suas moedas no cofre. Muitos ricos depositavam grandes quantias. 42 Então chegou uma pobre viúva que deu duas pequenas moedas, que não valiam quase nada. 43 Jesus chamou os discípulos e disse: ‘Em verdade vos digo, esta pobre viúva deu mais do que todos os outros que ofereceram esmolas. 44 Todos deram do que tinham de sobra, enquanto ela, na sua pobreza, ofereceu tudo aquilo que possuía para viver’” (Mc 12, 38-44).
Dar, dar de si, dar-se por inteiro!
Em face das mentirosas aparências derivadas do orgulho, manifestadas na hipocrisia dos doutores da Lei, Nosso Senhor nos exorta a sermos sinceramente generosos como a pobre viúva, dando tudo de nós mesmos por amor a Ele.
I – A alegria de dar
Ao analisarmos a natureza, encontramos um fenômeno difundido por toda a criação, desde o reino mineral até o mundo dos seres angélicos. O Sol está sempre espalhando sua luz e seu calor sobre a Terra, beneficiando todos os seres que precisam dessa irradiação. As águas, no seu constante movimento, se evaporam e constituem nuvens que, depois de carregadas, despejam sobre o solo elementos indispensáveis para a vida. Constatamos a extraordinária variedade e a superabundância de peixes que povoam os mares e os rios para alimentar o homem, ou a riqueza de frutos que a terra lhe oferece ao longo de todo o ano. Vemos por aí como a natureza, por assim dizer, procura dar de si. Se seus elementos fossem passíveis de felicidade, a árvore frutífera, por exemplo, teria um júbilo enorme pelo fato de produzir frutas e ofertá-las ao homem; o mar se sentiria feliz em entregar-lhe os peixes; e a alegria do Sol consistiria em estar constantemente iluminando e aquecendo a Terra e os que nela habitam. Pois bem, essa generosidade que se verifica no universo inteiro é o princípio sobre o qual se funda a Liturgia de hoje: dar, dar de si, dar-se por inteiro!
CONTRASTE ENTRE EGOÍSMO E GENEROSIDADE

Para entendermos bem o trecho evangélico recolhido pela Igreja para este domingo, de vemos levar em consideração que os Sagrados Evangelhos não foram escritos apenas como um livro comum, uma história para fazer bem às almas piedosas dos primeiros tempos do Cristianismo. Antes de tudo, eram eles uma convocação à culminância espiritual, a uma perfeição como a do Pai do Céu. Mas não só isso: eram também elemento de polêmica, uma vez que os primeiros divulgadores da Boa-nova, na sua ação apostólica, encontravam diante de si obstáculos a vencer. Quando São Marcos elaborou seu Evangelho, um desses entraves provinha de homens versados na Lei de Moisés e nas Escrituras do Antigo Testamento.
Tenhamos em vista também o seguinte: o Evangelista viveu em Roma durante muito tempo, como auxiliar de São Paulo e de São Pedro, e escrevia visando alcançar o público romano, como é opinião comum dos exegetas. Ora, nesse tempo muitos judeus residiam na capital do Império, e bom número deles estava ingressando nas fileiras cristãs. Ora, tanto os que permaneciam na sinagoga quanto os neoconvertidos (antes de terem uma conversão plena, o que não era fácil) queriam a todo o custo fazer prevalecer seus costumes e a Lei de Moisés entre os cristãos, inclusive no meio daqueles provenientes da gentilidade. Podemos comprová-lo pela leitura da Epístola de São Paulo aos Romanos, na qual ele exproba longamente os judeus da Cidade Eterna por tal postura.
Enquanto São Lucas e São Mateus não se mostram tão contundentes perante essa situação, São Marcos polemiza incansavelmente, de modo particular contra os doutores da Lei, pois estes atrapalhavam sua ação apostólica, como fica patente pelas frequentes menções feitas a eles no seu Evangelho.1
Não lhes poupando merecidas críticas, São Marcos dá destaque às discussões que tiveram com Nosso Senhor, e delas tira riquíssimas lições morais para os cristãos de todos os tempos.
Alertando as multidões contra a hipocrisia
“Naquele tempo, 38 Jesus dizia, no seu ensinamento a uma grande multidão: ‘Tomai cuidado com os doutores da Lei! eles gostam de andar com roupas vistosas, de ser cumprimentados nas praças públicas;  gostam das primeiras cadeiras nas Sinagogas e dos melhores lugares nos banquetes.
É importante destacar o detalhe apontado pelo evangelista: Jesus falava a “uma grande multidão”. Portanto, foi um ensinamento destinado a todos e dado sem rodeios, alertando o povo contra os doutores da Lei, pelas razões expostas a seguir.
Segundo os costumes da época, era natural que todo mundo fizesse vênias especiais quando passava um doutor da Lei, aos quais estavam reservados os lugares de preeminência nos atos públicos. Conforme faz notar o padre Tuya, a praça pública, ou ágora, era o centro comercial e social da cidade. Por isso, os escribas e fariseus gostavam de, com seus vistosos trajes, passear lenta e gravemente nesse local, para receber os cumprimentos do povo. Cobiçavam de modo especial o título de Rabi (meu Mestre). “Nas assembleias, os lugares eram determinados não só em razão da idade, mas também da dignidade do personagem, por exemplo, de sua sabedoria. Como os lugares designados em razão da dignidade eram muito menos numerosos que os destinados a pessoas por motivo da idade, queriam os fariseus, por ostentação e vaidade, que nos banquetes lhes fossem dados esses primeiros lugares, para destacar assim sua dignidade. [...J Era uma ânsia desmedida, infantil e quase patológica de vaidade e soberba” 2
Uma leitura superficial dos dois versículos acima transcritos poderia levar a crer que não se deve usar roupas belas, cumprimentar com cortesia ou favorecer a hierarquia no relacionamento social. Aliás, as roupas nobres e decorosas estão sendo abandonadas, em razão da mentalidade dos dias nos quais vivemos. Predomina o feio pelo feio, e o igualitário pelo igualitário. Vai se generalizando o gosto de vestir-se o mais negligentemente possível, de modo a poder sentar-se no chão; entram na moda o feio, o velho, o rasgado e o imoral, enquanto se simplificam ao máximo os costumes, tal como nem seres irracionais o fariam. Não é isso o que Nosso Senhor queria para seus seguidores.
O problema não está na roupa vistosa ou na honraria, mas em querer chamar a atenção sobre si, isto é, em ter a intenção, não de louvar a Deus, mas de louvar-se a si mesmo. Os costumes enumerados por Nosso Senhor, de si legítimos em algumas circunstâncias, eram do gosto dos doutores, mais por soberba do que por admiração pelas coisas belas, pelo desejo de glorificar a Deus ou pelo intuito de fazer bem ao próximo. Seu objetivo era vangloriar-se, ostentar superioridade, no fundo, serem “adorados”, incensados pelos outros. Usurpavam, pois, o lugar central pertencente a Deus. Aquele aparato de dignidade, aquela aparência de honra, respeito e sabedoria deveria corresponder à realidade; ou seja, a vida de tais doutores é que deveria torná-los credores dessas homenagens.
Entretanto, a realidade era bem diferente, e Nosso Senhor vai denunciá-la.
A aparência, manto de uma realidade pecaminosa
40 “Eles devoram as casas das viúvas, fingindo fazer longas orações. Por isso eles receberão a pior condenação”.
No Antigo Testamento, a viúva tinha muito pouca proteção, e, assim sendo, homens inescrupulosos procuravam arrancar delas o quanto podiam. Comum era o caso de viúvas sem filhos adultos, às quais tocava a responsabilidade de administrar a fortuna da família. Nessa situação de desamparo, conforme aponta Nosso Senhor, introduzia-se um mestre da Lei que, sob a escusa de rezar, terminava por rapinar seus haveres.
Ao denunciar esse tipo de ações, o Divino Mestre deixava patente aos seus ouvintes o quanto os doutores da Lei representavam exteriormente aquilo que de fato não eram. Conheciam todos os meandros da Lei, sem praticá-la... Na realidade, portavam-se como vorazes devoradores de fortunas alheias. Ainda mais, sendo legistas, sabiam bem conduzir os processos jurídicos que rodeavam cada pleito de sucessão e, com isso, tinham maior facilidade em terminar apossando-se do dinheiro.
Portanto, sob aparência de virtude ocultava-se uma mentalidade de vampiro, cujo fim era arrancar dos outros, de forma injusta e inescrupulosa, tudo quanto fosse possível.
As funestas consequências do orgulho
Sirva-nos isto de alerta contra os perigos do orgulho. Toda vaidade — quando aceita com indulgência, como acontecia com esses doutores — acaba levando à desobediência aos Mandamentos de Deus. Condição essencial para manter-se fiel à Lei é a humildade; a chave da prática duradoura de todos os preceitos divinos é esta virtude.
No caso dos doutores da Lei, o egoísmo orgulhoso, agravado pela duplicidade de espírito, a hipocrisia de representar de maneira aparatosa aquilo que não se é, torna-os merecedores da “pior condenação”, segundo a enérgica expressão do próprio Homem-Deus: a danação eterna, no inferno, castigo adequado para quem, tomando as vias do orgulho, embrenha-se na desonestidade e em outros pecados. Fujamos, pois, de toda e qualquer vanglória, para não terminarmos por romper com os demais Mandamentos da Lei de Deus. E tenhamos a certeza desta verdade: na raiz de todo pecado grave está sempre o orgulho.
Fazer o bem por ostentação

41 “Jesus estava sentado no Templo, diante d0 cofre das esmolas, e observava como a multidão depositava suas moedas no cofre. Muitos ricos depositavam grandes quantias”.
Ao exemplo dado sobre o comportamento dos legistas, Nosso Senhor vai contrapor a cena que se segue. Existiam no Templo treze cofres para o depósito de esmolas. “O gazofilácio, ou tesouro do Templo”, informa-nos o padre Tuya, “estava situado no átrio das mulheres. Provavelmente havia várias câmaras para a conservação desses tesouros. Na parte anterior, segundo a Mishna, havia treze alçapões em forma de trombeta, de abertura muito grande no exterior, por onde se atiravam as oferendas”.3
Naquela pequena sociedade — ao contrário dos aglomerados de pessoas anônimas das grandes cidades modernas — todos se conheciam e, portanto, quem dava esmolas muito atraía a atenção.
Lembremos também que naquele tempo não existia o papel-moeda, mas apenas as peças cunhadas em metal nobre como o ouro e a prata, ou em metais de menor valor. Assim, esses cofres favoreciam muito o desejo de ostentação. Quem possuía grande fortuna podia com facilidade despejar neles enormes quantidades de moedas, de maneira aparatosa e barulhenta, alardeando perante os circundantes sua suposta generosidade. Como Nosso Senhor denunciara em outra ocasião (cf. Mt 6, 2), com frequência a ação desses hipócritas era precedida por toques de trombeta que anunciavam a esmola a ser dada. Feito isto, um novo toque indicava a saída do doador. Este se retirava coberto de glória, alvo da admiração das pessoas presentes, que cochichavam elogios.., calculando, sem dúvida, qual o montante depositado no cofre.
Sentado no Templo “diante do cofre das esmolas”, o Divino Mestre observava em silêncio essa cena tão comum para os conhecedores do local.
Um desmedido contraste
42 “Então chegou uma pobre viúva que deu duas pequenas moedas, que não valiam quase nada .
É importante ressaltar o contraste das duas atitudes. Podemos imaginar a viúva, já de certa idade, arrastando os pés, meio curvada pelos achaques do tempo. Segundo o padre Tuya, ela atirou dois “leptos”, o equivalente a dezesseis avos de um denário, ou seja, uma insignificância, pois “o denário era considerado como o salário diário de um trabalhador”.4
Comparado com o espalhafatoso barulho das moedas lançadas pelos ricos, reduzia-se a quase nada o leve ruído produzido pelas duas moedinhas da pobre mulher. Sem dúvida, pouca impressão causou nos circunstantes, muito preocupados em calcular o valor aproximado das esmolas que iam sendo depositadas. Como veremos depois, nada mais tinha ela para ofertar, talvez pelo fato de sua antiga fortuna ter sido dilapidada por algum rapinador, segundo a denúncia feita por Jesus pouco antes.
Perante essa cena, Nosso Senhor rompe o silêncio para dela tirar um salutar ensinamento
A verdadeira generosidade
43 “Jesus chamou os discípulos e disse: ‘Em verdade vos digo, esta pobre viúva deu mais do que todos os outros que ofereceram esmolas. 44 Todos deram do que tinham de sobra, enquanto ela, na sua pobreza, ofereceu tudo aquilo que possuía para viver’”.
Grande deve ter sido a impressão produzida por essas primeiras palavras do Mestre. Como podia a pobre viúva ter dado “mais do que todos os outros”, se estes despejaram grande quantidade de moedas de ouro, enquanto ela depositou apenas duas moedinhas de valor insignificante?
Para esclarecer seu ensinamento, Jesus explica: a viúva jogou no cofre tudo quanto “possuía para viver”, enquanto os ricos deram do que lhes sobrava. Ao fazer essa comparação, Cristo não visava condenar os ricos, mas elogiar aquela mulher pelo fato de nada ter guardado para si. Com efeito, quando um rico entrega a integridade de seus bens, ele dá mais do que quem faz o mesmo, mas dispõe de pouco. Era o caso, por exemplo, de Lázaro, Marta e Maria, membros de uma abastada família de Israel, os quais se entregaram por inteiro a Nosso Senhor.
Aquela viúva dera tudo, pondo-se nas mãos de Deus. É muito de se crer que o próprio Jesus lhe outorgara a graça de assim proceder, propondo-Se ampará-la. Sem esta o saber, Ele oferecia à pobre mulher um bem superior a qualquer outro: a glória de ser elogiada pelo Verbo Encarnado. Nessa complacência de Nosso Senhor para com ela, entrava uma predestinação para a glória eterna.
No extremo oposto estavam os mestres da Lei: estes “devoram as casas das viúvas, fingindo fazer longas orações”, motivo pelo qual “receberão a pior condenação” (Mc 12, 40).
Deus conhece as intenções do coração
Nestes versículos, Nosso Senhor contrapõe o episódio das esmolas à denúncia antes feita contra os doutores da Lei. Em ambos os casos, vemos nas atitudes dos personagens a exterioridade, mas não o íntimo. No entanto, “o olhar de Deus não é como o do homem, pois o homem olha para a aparência, enquanto Deus olha para o coração” (I Sm 16, 7). Esse divino olhar sempre nos acompanha, nada lhe escapa. Nossa vida, nossos atos, nosso comportamento, são julgados com uma precisão absoluta pelo olhar de Deus, o qual penetra no interior de todos e analisa o fundo das almas, sabendo perfeitamente o que se passa em cada uma.
Comparando a disposição de espírito dos mestres da Lei com a da viúva, Jesus queria deixar patente a existência de dois extremos: o da generosidade, em contraste com o do egoísmo e do amor desordenado a si mesmo.
O apego, que num rico se distribui entre suas milhares de moedas, no caso do pobre se concentra em umas poucas. Renunciar a elas exige um sacrifício não pequeno, ainda mais se forem só duas. Mas aquela senhora as ofertou generosamente, depositando sua inteira confiança em Deus. É a mesma atitude assumida por outra viúva, esta da cidade de Sarepta na Sidônia, contemplada na primeira leitura deste domingo (I Rs 17, 10-16). Quando recebeu o Profeta Elias em sua casa, tinha ela apenas um punhado de farinha e um pouco de azeite para fazer um último pão para si e seu filho. No entanto, solicitada pelo homem de Deus, concordou em dar-lhe esse único alimento. Por ter agido assim, o azeite e a farinha se multiplicaram indefinidamente em sua despensa, até voltar a cair a chuva sobre a terra. Assim é a recompensa de Deus para todo aquele que dá com agrado e generosidade.
Os dois polos
Também nós devemos ser generosos para com Deus, tanto quanto Ele é generoso para conosco. Temos de entregar-Lhe tudo! Entretanto, isto não pode ser interpretado como uma obrigação de nos desfazermos de tudo quanto nos pertence e passarmos a viver de esmolas. Algumas poucas pessoas recebem essa sublime vocação. Trata-se, isto sim, de compreender que todos os nossos bens — e inclusive nós mesmos — são propriedade de Deus.
A Liturgia de hoje nos apresenta uma opção entre dois polos: o da generosidade total ou o do egoísmo total. Ou escolhemos um e odiamos o outro, ou vice-versa. Ou somos de Deus inteiramente, ou somos inteiramente de nós mesmos. No meio termo ninguém fica.
Se temos uma vocação de vida consagrada, precisamos estar a cada momento dispostos a dar tudo, não apenas por causa de um compromisso assumido numa cerimônia, mas pela convicção de que nossa vida está confiscada por Deus.
No entanto, como aplicar esse princípio à vida de quem é chamado a constituir família e tem, portanto, o dever de estado de prover da melhor maneira possível os seus? A resposta é simples. Esse “dar tudo” não significa desfazer-se literalmente das próprias posses, mas sim ter em relação a elas uma atitude de tal desprendimento que elas não se constituam em amarras que impeçam a elevação de nossas almas até as coisas celestes. Se não for assim, acaba-se por cair no desvio dos doutores da Lei, denunciado por Nosso Senhor neste trecho do Evangelho de São Marcos.
Na generosidade, a perfeita alegria
O exemplo supremo do dar, dar de si e dar-se por inteiro, nós o encontramos na segunda leitura deste domingo, tirada da epístola de São Paulo aos Hebreus (Hb 9, 24-28). O Pai tinha um Filho unigênito, gerado desde toda eternidade, e não criado. O amor d’Ele ao Filho e do Filho a Ele é tão intenso que d’Eles procede uma Terceira Pessoa, que é o Espírito Santo.
Apesar desse amor entranhado, o Pai resolveu entregar seu Filho para resgatar a natureza humana, extraviada pelo pecado. E o Filho, que deveria encarnar-Se na glória, uma vez que sua alma está na visão beatífica, suspendeu essa lei para assumir uma natureza mortal.5 Ele queria dar, dar de Si e dar-Se por inteiro, e, por amor a nós, assumiu um corpo padecente, sujeito a todas as dificuldades da vida nesta Terra. “Uma vez por todas, Ele Se manifestou para destruir o pecado pelo sacrifício de Si mesmo” (Hb 9, 24-26).
Eis o exemplo divino, convidando cada um de nós a, segundo nossos deveres e possibilidades, dar não só daquilo que nos sobra, mas dar tudo. Foi Deus quem nos criou e redimiu, e por isso a Ele pertencemos. Tudo é d’Ele e deve voltar para Ele.
E assim como o Sol, a água ou as árvores, se fossem passíveis de felicidade, estariam completamente felizes pelo dom generoso de si, também nós encontraremos nossa perfeita alegria no dar, dar de nós e dar-nos por inteiro.
Remédio para nossas misérias e amparo contra as tentações
Quando alguém dá de si, seu egoísmo acaba sendo sufocado em benefício do serviço aos outros. Servir — quer seja dando um bom exemplo, um bom conselho, ou prestando algum auxílio — repara as nossas faltas e ao mesmo tempo nos afasta do pecado. Assim, um modo de adquirirmos forças para enfrentar as tentações é fazer o dom de nós mesmos.
Pelo contrário, quem se fecha em seu egoísmo, desprepara-se para o momento sempre presente da tentação, pois basta-nos existir para sermos um foco de solicitações para o pecado, como diz São Pedro: “Sede sóbrios e vigiai. O vosso adversário, o diabo, ronda como leão a rugir, procurando a quem devorar” (I Pd, 5, 8).
Procuremos a felicidade onde ela se encontra
Nada traz mais felicidade a uma alma do que devolver a Deus aquilo que Lhe pertence. A justiça consiste em “dar a cada um o seu direito”.6 Ora, se vêm de Deus todas as coisas que foram criadas e estão à disposição do homem, este é devedor de tudo quanto d’Ele recebeu. O empréstimo faz parte dos acordos entre os homens. Quem empresta fica à espera da devolução do bem emprestado; e quem o tomou de empréstimo tem obrigação de devolvê-lo ao dono. Ora, se isto é assim no relacionamento humano, não podemos nos esquecer: tudo o que temos não é senão um empréstimo de Deus! Desde nossa vida, até nossas capacidades e qualidades, passando por todos os nossos bens.
Assim seremos livres, pois só é realmente livre quem é justo, e põe nas mãos de Deus tudo o que d’Ele recebeu.
Daria indícios de loucura quem, tendo perdido alguma coisa dentro de um teatro, fosse procurá-la do lado de fora, alegando que a rua está mais iluminada. E o que faz o mundo hodierno? Por ter-se afundado no egoísmo, corre atrás da felicidade onde ela não se encontra. Proclamando que a liberdade consiste em entregar-se à sanha das paixões e das más inclinações, vai à procura da felicidade no vício, no pecado e em quantas loucuras, onde encontra, não a felicidade, mas a frustração, a depressão e, por vezes, as doenças. Dessa maneira, o egoísmo, fustigado por Nosso Senhor no Evangelho de hoje, já é castigado aqui na Terra, sendo ainda merecedor da pena eterna.
A verdadeira alegria está na generosidade virtuosa, pois é nela que o homem cumpre inteiramente sua finalidade de “conhecer, servir e amar a Deus” neste mundo, de modo a “ser elevado à vida com Deus no Céu”.7
1Cf. LAGRANGE, OP, Marie-Joseph. Évangile selon Saint Marc. 5.ed. Paris: J. Gabalda et Fils, 1929, p.328.
2TUYA, OP, Manuel de. Biblia comentada. Evangelios. Madrid: BAC, 1964, v.V, p.499-500.
3Idem, p.710.
4Idem, p.710-711.
5Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. III, q.14, a.1, ad 2.
6Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. II-II, q.58, a.1.
7Compêndio do Catecismo da Igreja Católica, n.67.







Nenhum comentário:

Postar um comentário

Escreva seus comentarios e sugerencias