Comentários ao Evangelho do 2º
Domingo da Quaresma Evangelho - Ano C - Lc 9, 28b-36
Naquele tempo, 28b Jesus
levou consigo Pedro, João e Tiago, e subiu à montanha para rezar. 29 Enquanto
rezava, seu rosto mudou de aparência e sua roupa ficou muito branca e brilhante.
30 Eis que dois homens estavam conversando
com Jesus: eram Moisés e Elias. Eles apareceram revestidos de glória e
conversavam sobre a morte que Jesus iria sofrer em Jerusalém.
32 Pedro e os companheiros estavam com
muito sono. Ao despertarem, viram a glória de Jesus e os dois homens que estavam
com ele.
33 E quando estes homens se iam
afastando, Pedro disse a Jesus: “Mestre, é bom estarmos aqui. Vamos fazer três
tendas: uma para Ti, outra para Moisés e outra para Elias”. Pedro não sabia o
que estava dizendo. 34 Ele estava ainda falando, quando apareceu uma
nuvem que os cobriu com sua sombra. Os discípulos ficaram com medo ao
encontrarem dentro da nuvem. 35 Da
nuvem, porém, saiu uma voz que dizia: “Este é o meu Filho, o Escolhido. Escutai
o que Ele diz!”
36 Enquanto a voz ressoava, Jesus encontrou-Se
sozinho. Os discípulos ficaram calados e naqueles dias não contaram a ninguém
nada do que tinham visto (Lc 9, 28b-36).
Luta e glória nos são oferecidas por Deus
A vida do homem
transcorre num vale de lágrimas, no qual o sofrimento sempre está presente.
Para nos sustentar em meio à luta, Deus nos aponta, através de graças
sensíveis, o grandioso fim ao qual estamos destinados.
Somos chamados “ad maiora”
Ao formar o homem à
sua imagem e semelhança (cf. Gn 1, 26), Deus destinou-o a ocupar um elevado
lugar na criação, inferior apenas ao dos Anjos. O ser humano, como única
criatura dotada de inteligência em todo o universo material, possui uma notável
superioridade sobre as outras, além da capacidade de dominá-las, transformá-las
e utilizar-se delas com sabedoria, tornando mais perfeita a obra do Criador. É
ele o protagonista da História, conforme ressalta a Escritura: “Vosso saber o
ser humano modelou, para ser rei da criação, que é vossa obra” (Sb 9, 2). Além
dessa prerrogativa de ordem natural, há outro privilégio que lhe confere a mais
excelsa dignidade: a filiação divina, concedida pelo Batismo. Com efeito, ao
receber este Sacramento, a pessoa torna-se filha adotiva de Deus, participante
da natureza divina, membro de Cristo e coerdeira com Ele e templo da Santíssima
Trindade.
Devido ao pecado
original e ao estado de prova em que nos encontramos, esses benefícios da
natureza e da graça preparam-nos para as horas em que nos cabe dar mostras de
fidelidade a Deus, de modo especial quando se abatem sobre nós as tentações, os
dramas e as dificuldades. Se alimentarmos um desejo equivocado — quiçá,
subconsciente — de fazer com que a glória terrena ou os gozos espirituais
sensíveis se tornem uma constante em nossa existência, admitiremos o princípio
de que a vida perfeita é a da estabilidade na consolação, sem a menor fímbria
de sofrimento. Por seu divino exemplo, Nosso Senhor Jesus Cristo ensinou como o
caminho para a felicidade difere daquele que conceberíamos com base em
critérios humanos. Na verdade, só encontramos a perfeita alegria quando
abraçamos a santidade, o que implica em transpor a porta estreita e carregar a
cruz, por meio da qual se chega à luz.
A esse propósito, é
legítimo perguntarmos: como se explica que na luta e no enfrentamento de toda
espécie de empecilhos, em favor da glória de Deus, encontremos o sentido de
nossa vida? Ou será possível experimentar neste mundo uma situação de fruição
completa, tal como pedem as nossas inclinações? A resposta nos é oferecida pela Liturgia do 2º Domingo da Quaresma no conjunto de suas leituras, numa
harmonia que se sintetiza em rumar para a bem-aventurança eterna passando pelas
provações, pelo combate espiritual e pela dor.
A promessa de um
grandioso futuro
Na primeira leitura
é relatado o momento histórico em que Deus sela com Abraão uma aliança, na qual
lhe faz grandes promessas. Tendo caído a noite nas longínquas paragens de
Canaã, onde armara sua tenda, o patriarca já se havia recolhido quando o Senhor
o chamou para fora a fim de contemplar o firmamento. Este, límpido,
assemelhava-se a um manto iluminado por uma infinitude de astros reluzentes
(cf. Gn 15, 5-12.17-18). Tudo nos leva a crer que ali se podia observar um
cenário feérico, configurado pelo Divino Artífice com vistas a emoldurar uma
das mais belas comunicações da história da salvação. Era o momento em que Deus
reconhecia a retidão de Abraão e o considerava digno de acolher seu plano
salvífico, para receber a fé que seria transmitida a toda a humanidade. Num
diálogo cheio de poesia, Ele prometeu àquele varão avançado em anos o que as
possibilidades humanas lhe haviam negado: descendência, terra e bênção.
Embora Abraão
houvesse conservado, ao longo das décadas, o desejo de possuir herdeiros e pôr
um fim às incertezas da vida errante, foi somente após uma longa espera que
Deus determinou o cumprimento desses anseios com uma superabundância acima de
qualquer expectativa. O patriarca, apesar de todas as aparências contrárias,
aceitou e creu na promessa — “Levanta os olhos para os céus e conta as
estrelas, se és capaz... Pois bem, assim será a tua descendência” (Gn 15, 5) —,
e recebeu, por esse ato, uma recompensa muito maior do que esperava e podia
conceber. “Deus, em seu modo de prometer, na certeza que possui de jamais
decepcionar, revela sua grandeza única: ‘Deus não é homem para mentir, nem
filho de Adão para Se retratar’ (Nm 23, 19). Para Ele, prometer já é dar, mas
em primeiro lugar é dar a fé capaz de esperar que venha o dom; e é tornar,
mediante esta graça, quem recebe capaz da ação de graças (cf. Rm 2, 20) e de
reconhecer, no dom, o coração do doador”.1
Às almas eleitas, Deus pede oferecimentos
A partir daquela
noite a conduta de Deus para com Abraão distinguiu-se por uma nova
característica: ao sustentá-lo com a promessa, passou a pedir dele constantes
provas de reciprocidade e entrega, com a intenção de experimentá-lo e de
modelar sua existência em função da aliança: “Anda em minha presença e sê
íntegro” (Gn 17, 1). Em um perplexitante paradoxo, transcorreriam ainda longos
anos até o nascimento de Isaac (cf. Gn 21, 5), e só na quarta geração os
descendentes de Abraão voltariam a ocupar a Terra Prometida (cf. Gn 15, 16).
Contudo, mesmo caminhando nessa aparente contradição, até se tornar um homem
centenário, ele creu firmemente que a promessa de Deus era ainda mais
verdadeira que a própria obtenção dos frutos esperados: “não vacilou, não
desconfiou, mas conservou-se forte na fé e deu glória a Deus” (Rm 4, 20). Era
indispensável tal adesão de fundo de alma para que o povo eleito tivesse em
suas origens um ato de fé tão excelente que o tornasse digno, na pessoa de seu
patriarca, da predestinação que lhe estava reservada.
A circunstância que
marcou o auge do período de prova de Abraão foi o holocausto de Isaac, pois a
fé amadurecida deve ser “purificada pela prova do sacrifício”.2 Entretanto,
outros oferecimentos o precederam, tendo sido um deles realizado logo no dia
seguinte à cena acima recordada. Respeitando os costumes daqueles tempos, Deus
determinou que Abraão fizesse a oblação de diversos animais cortados ao meio,
com as metades postas umas defronte às outras. O versículo 11 denota um
importante aspecto dessa passagem e mesmo do conjunto de leituras litúrgicas de
hoje: “Aves de rapina se precipitaram sobre os cadáveres, mas Abraão as
enxotou” (Gn 15, 11). A presença de animais ávidos por arrebatar as oferendas
simboliza as lutas exigidas pela fidelidade à aliança. Para quem abraça o
caminho da justiça, logo surge o inimigo infernal semeando tentações e
obstáculos, sendo necessário combatê-lo para que não roube o mérito de nossas
boas obras. A luta veio a ser uma constante na trajetória do povo de Israel, um
elemento essencial dos episódios da História Sagrada, onde não existe vitória
que não seja obtida senão pela peleja. Deus agradou-Se com a firmeza de Abraão,
pois fez passar pelo meio das vítimas uma chama e uma tocha — símbolos, no
Antigo Testamento, da sua presença —, em sinal de aceitação da oferta.
Esse combate, como veremos, se estende também ao Novo Testamento e pede dos
cristãos uma vigilância que “deve exercitar-se dia após dia na luta contra o
maligno; exige do discípulo oração e sobriedade contínua”.4
O combate do Apóstolo contra os falsos conversos
A segunda leitura
(cf. Fl 3, 17-21; 4, 1) recolhe um importante trecho da epístola de São Paulo
aos filipenses, em cuja comunidade alguns judeus, havia pouco convertidos,
ainda se mantinham vinculados às tradições e concepções próprias ao culto
antigo, propagando doutrinas erradas com o objetivo de fazer o que bem podemos
qualificar de pseudoapostolado antipaulino. Enquanto São Paulo pregava o
Redentor, a Boa-nova, os Sacramentos e as maravilhas da graça, os judaizantes
queriam, a todo custo, fazer prevalecer os costumes mosaicos: “Eles se ocupam
em exercitar sua inimizade contra a Cruz de Cristo, afirmando que ninguém pode
salvar-se a não ser por meio das observâncias legais, e com isso reduzem a nada
o poder ‘da Cruz de Cristo”.5 Um dos motivos que levou o Apóstolo a redigir
essa carta foi a necessidade de alertar contra tal corrente nefanda, intenção
bastante perceptível nos versículos hoje considerados: “Sede meus imitadores,
irmãos, e observai os que vivem de acordo com o exemplo que nós damos. Já vos
disse muitas vezes, e agora o repito, chorando: há muitos por aí que se
comportam como inimigos da Cruz de Cristo. O fim deles é a perdição, o deus
deles é o estômago, a glória deles está no que é vergonhoso e só pensam nas
coisas terrenas” (Fi 3, 17-19).
Diante dos nocivos
ensinamentos dos judaizantes, São Paulo não hesita em colocar-se como exemplo
para aqueles que ele conduzira ao Salvador, recriminando-os, com autoridade,
pelo fato de seguirem outros que não foram chamados a ser modelo na prática da
Fé. Suas palavras denotam o sofrimento e a indignação causados pela
controvérsia, a ponto de lhe correrem lágrimas pela face enquanto escrevia. A
reação é compreensível em alguém de temperamento tão fogoso, impedido pelas
circunstâncias de agir pessoalmente com a eficácia desejada, e que percebe o
quanto a astúcia dos maus punha em risco a perseverança dos bons.
Por isso, ele
também não vacila em denunciar os hipócritas que, por apreço a tradições
antigas, insistiam no mero culto exterior já extinto, enquanto menosprezavam a
vida da graça. É importante ressaltar que São Paulo, ao apontar para a
divinização do estômago por eles propugnada, não se refere ao vício da gula,
mas sim ao apego que tinham à Lei mosaica e aos costumes farisaicos a esse
respeito. Afirma que o deus deles é o ventre porque a prática religiosa desses
judaizantes resumia-se no controle de tudo quanto pudesse ser ingerido e sua
glória naquilo que é vergonhoso, por concederem a primazia à circuncisão,
outrora sinal precursor da fé na Paixão de Cristo e já então uma prescrição
abolida. Ao praticar com exagerado rigorismo tais costumes, sentiam-se
desobrigados de purificar o seu interior, no entanto tão corrompido. A
linguagem utilizada por São Paulo é extremamente ousada, pois afronta os que se
vangloriavam de seus odres velhos, a ponto de fazê-los rasgar as vestes e de se
tornar, para eles, merecedor de um ódio de morte.
A esperança da vida eterna
“Nós, porém, somos
cidadãos do Céu. De lá aguardamos o nosso Salvador, o Senhor Jesus Cristo. Ele
transformará o nosso corpo humilhado e o tornará semelhante ao seu Corpo
glorioso, com o poder que tem de sujeitar a Si todas as coisas” (Fl 3, 20-21).
Após invectivar desvios disseminados com tanta astúcia, denunciando a malícia
dos falsos conversos, São Paulo oferece uma verdadeira síntese da Liturgia de
hoje ao relembrar o chamado dos batizados a serem cidadãos do Céu. Eis aqui uma
realização insuperável — e quiçá nem sequer concebida pelo próprio Abraão — da
promessa feita por Deus: descendência numerosa, terra e bênção. Tais bens são
efêmeros se comparados à eterna bem-aventurança e ao corpo glorioso que,
deixando para trás as contingências da nossa natureza mortal, assumirá as
características da glória. O Apóstolo empenha-se em elevar as vistas daquela
comunidade para a recompensa que a aguarda, certo de que, ao fixá-la na
esperança de bens maiores, criaria condições para que não se contaminasse com a
influência dos perversos.
Com tal intuito
deixa ele consignada a doutrina dos corpos gloriosos, matéria amplamente
tratada em seus escritos. Fala de nosso corpo humilhado pelos efeitos do pecado
original e aponta para a transformação a que será submetido quando, ao ressuscitar,
for reunido à alma que estiver na visão beatífica, tendo adquirido a plenitude
da liberdade e a impossibilidade de pecar e tornando-se isenta das inclinações
para o mal. Com efeito, esse estado de máxima perfeição espiritual está na
origem da sublimação do nosso ser material, como ensina São Tomás:
“Segundo a relação
natural que há entre a alma e o corpo, da glória da alma redunda a glória sobre
o corpo”.6 Ao divinizar-se, a
alma não se adapta mais a um corpo padecente, por ter atingido o termo final da
vida da graça: a glória.
O início da vida
sobrenatural nos é dado pela fé, a qual nos leva a crer naquilo que não vemos,
e pela esperança, que nos leva a desejar aquilo que ainda não possuímos, mas um
dia receberemos. Ora, a glória é a realização do objeto da fé e a obtenção do
objeto da esperança, conforme recorda o padre Garrigou-Lagrange: “Se o próprio
Deus, que é o Bem infinito, Se manifestasse a nós, imediata e claramente face a
face, não poderíamos não amá-Lo. Ele preencheria inteiramente nossa capacidade
afetiva, a qual seria atraída por Ele de modo irresistível. Ela não conservaria
nenhuma energia que se subtraísse à sua atração; não poderia encontrar nenhum
motivo para desviar-se d’Ele ou até mesmo para suspender seu ato de amor. E a
razão pela qual quem vê a Deus face a face não pode mais pecar. [...1 Só Deus,
visto face a face, pode cativar invencivelmente nossa vontade” .
Nessa situação o
corpo se torna glorioso por acompanhar a alma, pois não pode ficar aquém de sua
felicidade, além de assumir as quatro características enunciadas pelo Doutor
Angélico: claridade, impassibilidade, agilidade e sutileza.8 A primeira delas reflete no corpo a
luz da visão beatífica, tornando-o fulgurante em virtude da claridade da qual
goza o espírito. A impassibilidade diz respeito à imortalidade e à isenção de
qualquer dor, pois o corpo torna-se objeto apenas de bem-estar, como fruto de
sua perfeita submissão à alma: “Deus tirará toda lágrima de seus olhos; não
haverá mais morte, nem luto, nem gemidos, nem dor” (Ap 21, 4). Por fim, a
agilidade e a sutileza confirmam a supremacia do espírito sobre a matéria, uma
vez que os corpos dos Santos não estarão mais sujeitos às presentes
contingências ou aos efeitos físicos impostos pelos outros corpos. Poderão
mover-se com máxima rapidez e transpor os obstáculos com toda facilidade.9
Afirma Santo
Agostinho que “a natureza, ferida pelo pecado, gera os cidadãos da cidade
terrena, e a graça, que liberta do pecado, gera os cidadãos da cidade
celestial”.1° A segunda leitura, de igual maneira, confirma a
indispensabilidade da graça na obtenção da vida eterna e centra-se — como
também a primeira — na necessidade de termos os olhos postos no Céu, com uma
inteira confiança na realização das promessas feitas por Deus. Ambas as
passagens constituem um adequado preâmbulo para a mensagem do Evangelho, cuja
insuperável grandeza passaremos a considerar.
Promessa, fé e luta
Ao longo de todo o
período da vida pública de Nosso Senhor transcorrido até o episódio narrado
neste Evangelho, os Apóstolos estavam acostumados a vê-Lo realizar os mais
estrondosos milagres. Tais prodígios atestavam, de forma clara, a divindade de
Cristo,11 e sua onipotência seria
manifestada ainda com maior esplendor na instituição da Eucaristia. Ao mesmo
tempo, Ele acabava de revelar sua próxima Paixão, que traria uma terrível
prova: depois de comungarem pela primeira vez, os Apóstolos O veriam preso, julgado,
flagelado, coroado de espinhos, carregando a Cruz às costas e crucificado. Como
seria possível aos mais próximos seguidores do Divino Mestre que, presenciando
esses padecimentos, continuassem a crer na ressurreição ao terceiro dia? Que
faria Ele, em sua infinita sabedoria, para manter acesa a fé dos Doze em meio à
tormenta que já se delineava no horizonte?
Jesus revela no Corpo
a glória de sua alma
Naquele tempo, 28b Jesus
levou consigo Pedro, João e Tiago, e subiu à montanha para rezar. 29 Enquanto
rezava, seu rosto mudou de aparência e sua roupa ficou muito branca e brilhante.
Tendo em vista
prepará-los para os acontecimentos que viriam, Nosso Senhor chamou os três
Apóstolos com quem tinha maior familiaridade e os levou ao Monte Tabor.
Eles, depois, deveriam fortalecer os outros, narrando-lhes o que
testemunhariam.
Embora a oração
ocupe um lugar primordial na vida do Mestre, esta não foi seu único objetivo
com a subida à montanha. Mais do que isso, pretendia mostrar quem realmente
era, conforme ressalta Maldonado: “Cristo costumava subir aos montes para orar,
onde a solidão é maior e mais livre é a contemplação do Céu. Não se deve
concluir das palavras de Lucas, entretanto, que Cristo subiu só com o propósito
de orar, mas que, conforme seu costume de rezar nos assuntos árduos, quis
fazê-lo desta vez antes de manifestar a sua glória. [...] Não nos esqueçamos,
também, que na maior parte das vezes a glória de Deus se manifesta nos montes,
que estão mais próximos do Céu e mais afastados da Terra, e não nos vales”.’2
Esta exteriorização
da glória divina é um fenômeno que revela o verdadeiro estado da Alma de Jesus,
a qual, criada na visão beatífica, possuía desde o primeiro momento da
Encarnação o grau supremo da graça capital. Esta é assim denominada por ser Ele
a cabeça do Corpo Místico e a origem da graça da qual vive a Igreja.” Sua Alma
sempre esteve na contemplação de Deus face a face’4 e, por isso, o normal seria
que seu Corpo fosse visto habitualmente em estado glorioso, como um espelho da
beatitude de seu espírito, tal como se manifestou no Tabor, à vista de São
Pedro e dos filhos de Zebedeu.’5 Foi
só por amor a nós que Nosso Senhor quis revestir-Se das características do
corpo padecente para operar a Redenção.’6 Então,
por certo prisma, o verbo transfigurar não define com exatidão o que se passou,
pois, na verdade, Cristo fez cessar a subfigura em que vivia.
No que se refere a
alguns outros momentos de sua vida pública, podemos supor que Ele assumiu
apenas alguns dos atributos do corpo glorioso, como, por exemplo, quando saiu
livremente entre aqueles que o queriam jogar precipício abaixo em Nazaré ou
quando andou sobre as águas do Mar de Tiberíades.’7
Moisés e Elias
ratificam a Paixão
30 Eis que dois
homens estavam conversando com Jesus: eram Moisés e Elias. ‘ Eles apareceram
revestidos de glória e conversavam sobre a morte que Jesus iria sofrer em
Jerusalém.
Participando da
glória de Cristo estavam dois expoentes do povo eleito: Moisés e Elias, os
máximos representantes da Lei e dos profetas. Eles foram os escolhidos porque
“nem a Lei pode existir sem o Verbo, nem profeta algum poderia ter vaticinado
algo que não se referisse ao Filho de Deus”.’8 Ambos não somente ratificam que Jesus
é o Messias, mas dão o peso de seu testemunho também aos anúncios da Paixão. A
conversa que empreenderam com Ele diz respeito à sua morte e, todavia, os três
se encontravam envoltos na glória, a qual revela o fim último: ressurreição e
corpo glorioso. “A conversa de Jesus com Moisés e Elias versa exatamente sobre
os tormentos que Cristo vai padecer logo em Jerusalém. A Transfiguração,
portanto, é a consagração de Jesus para a Cruz e para a morte”.’9 Numa harmoniosa junção, concebível
apenas pela inteligência do próprio Deus, unem-se neste episódio dor e glória,
conforme recorda São Leão Magno: “Era necessário que os Apóstolos tivessem no
coração uma noção clara dessa vigorosa e bem-aventurada fortaleza, e que não
tremessem perante a rudeza da cruz que teriam de carregar; seria preciso que
não se envergonhassem do suplício de Cristo’ nem considerassem humilhante para
Ele a paciência com que deveria padecer os rigores de sua Paixão, sem perder a
glória de seu poder”.10
A tentação de uma vida sem estorço
32 Pedro e os companheiros estavam com
muito sono. Ao despertarem, viram a glória de Jesus e os dois homens que
estavam com ele. 33E quando estes
homens se iam afastando, Pedro disse a Jesus: “Mestre, é bom estarmos aqui.
Vamos fazer três tendas: uma para Ti, outra para Moisés e outra para Elias”.
Pedro não sabia o que estava dizendo.
Tomadas pelo torpor
— pormenor surpreendente —, as três testemunhas encontravam-se dormindo no
início da divina manifestação. Tal sono é simbólico, pois sempre que a cruz, o
esforço e o sacrifício nos são apresentados, somos tomados pelo tédio, em
consequência de nossa débil natureza humana. Isso também aconteceu, mais tarde,
no Horto das Oliveiras, quando os três sucumbiram ao cansaço, na iminência da
Paixão, deixando Nosso Senhor sozinho ante o sofrimento (cf. Mt 26, 40).
Acordados inesperadamente, ainda sob os efeitos do sono e surpresos pela intensa
luminosidade que tinham diante de si, ficaram deslumbrados, a ponto de São
Pedro não atinar com uma reação à altura do que se estava passando. Na
realidade, com suas palavras ele manifestava, talvez sem plena consciência,
certa má tendência de fundo de alma. Arrebatado por ver aquela maravilha, logo
quis aproveitar-se dela, demonstrando o desejo de viver ininterruptamente sob o
influxo da glória do Mestre. Ele via no usufruto desse gozo a obtenção da
felicidade, e se não pediu para fazer três tendas quando o Senhor anunciou a
Paixão, não hesitou em fazê-lo nessa hora. Pedro imaginava que já tivesse
chegado ao fim do bom combate, quando havia ainda um longo caminho a ser
percorrido. Via talvez, na presença de dois varões da estatura de Moisés e
Elias, quão fácil seria dotar de supremacia o povo judeu sobre todas as outras
nações da Terra. Faltava ao chefe da Igreja aprender que, antes da obtenção dos
frutos da promessa, deve-se trilhar o percurso que a eles conduz, conforme o
exemplo dado pelo Redentor.
O Pai também conclama à luta
34Ele estava
ainda falando, quando apareceu uma nuvem que os cobriu com sua sombra. Os
discípulos ficaram com medo ao entrarem dentro da nuvem. 35Da nuvem, porém, saiu uma voz que
dizia: “Este é o meu Filho, o Escolhido. Escutai o que Ele diz!” 36 Enquanto
a voz ressoava, Jesus encontrou-se sozinho. Os discípulos ficaram calados e
naqueles dias não contaram a ninguém nada do que tinham visto.
De dentro da nuvem
ouve-se a voz do Pai, que manda escutar seu Filho bem-amado. O que determina
que ouvissem? Aquelas predições que tanto desejavam esquecer. Nosso Senhor
havia declarado que seria entregue nas mãos dos sacerdotes, dos escribas, dos
fariseus, que ia padecer e ser morto para depois ressuscitar ao terceiro dia
(cf. Mt 16, 21; Lc 9, 22). Eles tinham medo de pensar nisso, condicionados por
uma visão humana de Cristo. Nesse sentido ressalta Romano Guardini: “Ao lermos
os Evangelhos, colhemos a impressão de que os discípulos não compreenderam
durante a vida do seu Mestre aquilo que estava em causa. Jesus não tinha neles
um grupo de homens que verdadeiramente O compreendesse; que vissem quem Ele era
e entendessem o que Ele queria. Surgem continuamente situações que nos mostram
como permanecia só no meio deles. [...] Vemo-los por tal maneira imersos nas
representações messiânicas da época que, no último momento anterior à Ascensão
[...], perguntam ainda ‘se é por esta altura que Ele vai restaurar a realeza de
Israel!’ (At 1, 6)”.21 O Pai, ao
ordenar que escutassem o Filho em tudo, incita-os a considerar a árdua
realidade da Cruz; a seguir seu Escolhido de acordo com o que era, e não com o
que gostariam que fosse.
Concluída a
portentosa visão, Jesus permaneceu em oração toda a noite e desceu no dia
seguinte, acompanhado pelos três Apóstolos, O silêncio guardado no percurso de
volta denota o grande impacto causado pela Transfiguração, pois qualquer
comentário a propósito do que tinham visto seria inexpressivo. E oportuno
lembrar que, tão logo regressaram, se depararam com um menino possesso, sobre o
qual Ele fez um exorcismo que obteve imensa repercussão (cf. Mt 17, 14-20; Mc
9, 14-29; Lc 9, 37-42). Depois daquela grande experiência mística, Nosso Senhor
retomou suas atividades de apostolado, pois quis mostrar o sentido mais
profundo do que havia se passado. De fato, tendo sido uma graça de tão
extraordinário alcance, foi uma preparação para as lutas futuras.
As consolações nos
sustentam rumo à vitória final
Liturgia deste domingo,
ao recordar a promessa feita a Abraão, as palavras de São Paulo e a cena da
Transfiguração, nos ensina que as graças místicas recebidas por nós no decorrer
da vida espiritual não nos são dadas com a finalidade de estabelecer uma
existência agradável nesta Terra, na qual gostaríamos de montar uma tenda para
permanecer em estática contemplação, mas para que, através delas, tenhamos
forças para enfrentar os embates da vida em vista do fim para o qual fomos
chamados. Na verdade, a via mística é uma pré-figura da bem-aventurança eterna,
e não um gozo da vida terrena. A felicidade neste mundo decorre da luta contra
o mal existente dentro e fora de nós e, sobretudo, da luta pela glória de Deus,
de modo que essas consolações nos são oferecidas para alimentar a virtude da
esperança.
As consolações nos
sustentam rumo à vitória final
Liturgia deste
domingo, ao recordar a promessa feita a Abraão, as palavras de São Paulo e a
cena da Transfiguração, nos ensina que as graças místicas recebidas por nós no
decorrer da vida espiritual não nos são dadas com a finalidade de estabelecer
uma existência agradável nesta Terra, na qual gostaríamos de montar uma tenda
para permanecer em estática contemplação, mas para que, através delas, tenhamos
forças para enfrentar os embates da vida em vista do fim para o qual fomos
chamados. Na verdade, a via mística é uma pré-figura da bem-aventurança eterna,
e não um gozo da vida terrena. A felicidade neste mundo decorre da luta contra
o mal existente dentro e fora de nós e, sobretudo, da luta pela glória de Deus,
de modo que essas consolações nos são oferecidas para alimentar a virtude da
esperança.
1) RAMLOT, OP,
Marie-Léon; GUILLET, SJ, Jacques. Promesas. In: LÉON-DUFOUR, SJ, Xavier (Org.).
Vocabulario
de teología bíblica. Barcelona: Herder, 1996, p.731.
2) CCE 1819.
3) Cf.
COLUNGA, OP, Alberto; GARCÍA CORDERO, OP, Maximiliano. Biblia Comentada.
Pentateuco. Madrid: BAC, 1960, v.1, p.192.
4) MOLLAT,
SJ, Donatien. Velar. In: LEON-DUFOUR, op. cit., p.925.
5) SAO
TOMAS DE AQUINO. Epistolam Sancti PauliApostoli ad Philippenses expositio.
C.III, lect.3.
6) SÃO
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. III, q.14, al, ad 2.
7)
GARRIGOU-LAGRANGE, OP. Réginald. L’Etemelle vie et la profondeur de l’âme.
Paris: Desclée de Brouwer, 1953, p.25.
8) Cf. SAO
TOMAS DE AQUINO. In Symbolum Apostoloruni. Art.11.
9) Cf.
GARRIGOU-LAGRANGE, op. cit., p.332-333.
10) SANTO
AGOSTINHO. De Civitate Dei. L.XV, c.2. In:
Obras. Madrid: BAC, 1958, v.XVI-XVII, p.998.
11) Cf. SÃO
TOMAS DE AQUINO. Suma Teológica. III, q.43, a.4.
12 MALDONADO,
SJ, Juan de. Comentarios a los Cuatro Evangelios. Evangelio de San Mateo.
Madrid: BAC, 1950, v.I, p.607-608.
13 Cf. SÃO
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. III, q.8, a.1.
14 Cf.
Idem, q.9, a.2.
15 Cf.
Idem, q.45, a.2.
16 Cf.
Idem, q.14, a.1, ad 2.
17 Cf.
Idem, q.45, a.1, ad 3.
18 SANTO
AMBRÓSIO. Tratado sobre el Evangelio de San Lucas. L.VII,
n.10. In: Obras. Madrid: BAC, 1966, v.I, p.350.
19 FILLION, Louis-Claude. Vida de Nuestro Señor
Jesucristo. Vida pública. Madrid: Rialp, 2000, v.II, p.286.
20 SÃO LEÃO
MAGNO. Hom. Sabb. ante II Dom. Quadr. Sur la
Transfiguration, hom.38 [LI], n.2. In: Sermons. Paris: Du Cerf, 1961, v.III, p.16.
21
GUARDINI, Romano. O Senhor. Lisboa: Agir, 1964, p.70-71.
22) CORREA
DE OLIVEIRA, Plinio. Palestra. São Paulo, 19 nov. 1989.
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