COMENTÁRIOS AO EVANGELHO DOMINGO DE RAMOS
DA PAIXÃO DO SENHOR - Lc 23, 1-49
Evangelho da Paixão de Nosso Senhor Jesus
Cristo segundo Lucas [versão mais breve]
Naquele tempo, toda a
multidão se levantou e levou Jesus a Pilatos. 2 Começaram então a acusá-Lo,
dizendo: Achamos este homem fazendo subversão entre o nosso povo, proibindo
pagar impostos a César e afirmando ser ele mesmo Cristo, o Rei”. Pilatos o
interrogou: “Tu és o rei dos judeus?” Jesus respondeu, declarando: “Tu o
dizes!” Então Pilatos disse aos sumos sacerdotes e à multidão: “Não
encontro neste homem nenhum crime”. Eles, porém, insistiam: “Ele agita o povo,
ensinando por toda a Judeia, desde a Galileia, onde começou, até aqui”. 6
Quando ouviu isto, Pilatos perguntou: “Este homem é galileu?”
7Ao saber que Jesus
estava sob a autoridade de Herodes, Pilatos enviou-o a este, pois também
Herodes estava em Jerusalém naqueles dias. 8Herodes ficou muito contente ao ver
Jesus, pois havia muito tempo desejava vê-lo. Já ouvira falar a seu respeito e
esperava vê-lo fazer algum milagre. 9Ele interrogou-o com muitas perguntas.
Jesus, porém, nada lhe respondeu.
10 Os sumos sacerdotes
e os mestres da Lei estavam presentes e o acusavam com insistência. 11Herodes,
com seus soldados, tratou Jesus com desprezo, zombou dele, vestiu-o com uma
roupa vistosa e mandou-o de volta a Pilatos. 12Naquele dia Herodes e Pilatos
ficaram amigos um do outro, pois antes eram inimigos.
13Então Pilatos
convocou os sumos sacerdotes, os chefes e o povo, e lhes disse: 14“Vós me
trouxestes este homem como se fosse um agitador do povo. Pois bem! Já o
interroguei diante de vós e não encontrei nele nenhum dos crimes de que o
acusais; 15nem Herodes, pois o mandou de volta para nós. Como podeis ver, ele
nada fez para merecer a morte. 16Portanto, vou castigá-lo e o soltarei”. 18Toda
a multidão começou a gritar: “Fora com ele! Solta-nos Barrabás!”
18Barrabás tinha sido
preso por causa de uma revolta na cidade e por homicídio. 20Pilatos falou outra
vez à multidão, pois queria libertar Jesus. 21Mas eles gritaram: “Crucifica-o!
Crucifica-o!” 22E Pilatos falou pela terceira vez: “Que mal fez este homem? Não
encontrei nele nenhum crime que mereça a morte. Portanto, vou castigá-lo e o
soltarei”. 23Eles, porém, continuaram a gritar com toda a força, pedindo que
fosse crucificado. E a gritaria deles aumentava sempre mais. 24Então Pilatos
decidiu que fosse feito o que eles pediam. 25Soltou o homem que eles queriam —
aquele que fora preso por revolta e homicídio — e entregou Jesus à vontade
deles.
26Enquanto levavam
Jesus, pegaram um certo Simão, de Cirene, que voltava do campo, e impuseram-lhe
a cruz para carregá-la atrás de Jesus. 27Seguia-o uma grande multidão do povo e
de mulheres que batiam no peito e choravam por ele. 28Jesus, porém, voltou-se e
disse: “Filhas de Jerusalém, não choreis por mim! Chorai por vós mesmas e por
vossos filhos! 29Porque dias virão em que se dirá: ‘Felizes as mulheres que
nunca tiveram filhos, os ventres que nunca deram à luz e os seios que nunca
amamentaram’.
30Então começarão a
pedir às montanhas: ‘Cai sobre nós! e às colinas: ‘Escondei-nos!’ 31Porque, se
fazem assim com a árvore verde, o que não farão com a árvore seca?” 32Levavam
também outros dois malfeitores para serem mortos junto com Jesus. 33Quando
chegaram ao lugar chamado “Calvário”, ali crucificaram Jesus e os malfeitores:
um à sua direita e outro à sua esquerda.
34Jesus dizia: “Pai,
perdoa-lhes! Eles não sabem o que fazem!” Depois fizeram um sorteio, repartindo
entre si as roupas de Jesus. 35O povo permanecia lá, olhando. E até os chefes
zombavam, dizendo: “A outros ele salvou. Salve-se a si mesmo, se, de fato, é o
Cristo de Deus, o Escolhido!”
36Os soldados também
caçoavam dele; aproximavam-se, ofereciam-lhe vinagre, 37e diziam:“Se és o rei
dos judeus, salva-te a ti mesmo!” 38Acima dele havia um letreiro: “Este é o Rei
dos Judeus”. 39Um dos malfeitores crucificados o insultava, dizendo: “Tu não és
o Cristo? Salva-te a ti mesmo e a nós!”40Mas o outro o repreendeu, dizendo:
“Nem sequer temes a Deus, tu que sofres a mesma condenação? 41Para nós, é
justo, porque estamos recebendo o que merecemos; mas ele não fez nada de mal”.
42E acrescentou: “Jesus, lembra-te de mim, quando entrares no teu reinado”.
43Jesus lhe respondeu: “Em verdade eu te digo: ainda hoje estarás comigo no
Paraíso”.
44Já era mais ou menos
meio-dia e uma escuridão cobriu toda a terra até as três horas da tarde, 45pois
o sol parou de brilhar. A cortina do santuário rasgou-se pelo meio, 46e Jesus
deu um forte grito: “Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito”. Dizendo isso,
expirou.
47O oficial do exército
romano viu o que acontecera e glorificou a Deus, dizendo: “De fato! Este homem
era justo!” 48E as multidões, que tinham acorrido para assistir, viram o que
havia acontecido e voltaram para casa, batendo no peito. 49Todos os conhecidos
de Jesus, bem como as mulheres que o acompanhavam desde a Galileia, ficaram a
distância, olhando essas coisas. ( Lc 23, 1-49)
Até na hora a aparente derrota, o Sumo Bem
sempre vence
Aos louvores da entrada triunfal de Nosso Senhor
em Jerusalém logo se sucederam as dores da Paixão. Como explicar este paradoxo?
A inexorável luta entre o bem e o mal
Reportemos a imaginação à eternidade, quando
ainda não existia o tempo, pois Deus não havia criado o universo. Ele tinha
diante de Si a possibilidade de criar infinitos mundos diferentes deste em que
vivemos, mas, por uma livre escolha de sua vontade, não quis fazê-lo.’ Muitos
dentre eles, aos nossos olhos de meras criaturas, poderiam ter sido melhores do
que o existente, quiçá algum sem pecado e sem lutas...
Invejando a criatura humana, que ainda se
conservava inocente e desfrutava das delícias do Paraíso e da amizade com Deus,
satanás se empenhou “em enganar os homens, para que não fossem exaltados e
elevados ao lugar de onde ele caíra”.2 Tomando o aspecto de uma
encantadora serpente, astuta e habilidosa para exacerbar as paixões humanas,
entrou ele em contato com Eva e lhe propôs a desobediência a Deus. Eva cedeu e
levou Adão a segui-la no mesmo caminho.
Por que a serpente entrou no Paraíso?
Ora, por que Deus deixou entrar a serpente no
Paraíso e permitiu que o mal se estabelecesse na face da Terra? Entre outras
razões, ressaltemos três: em primeiro lugar, a fim de nos enviar um Salvador
que operasse a Redenção. Por isso, na Liturgia da Vigília Pascal se canta “ó
culpa tão feliz que há merecido a graça de um tão grande Redentor!”.3 Em segundo lugar, para evitar o amolecimento e a tibieza dos
justos. A existência dos maus é o melhor adestramento para os bons, que podem,
na defesa do bem, praticar o heroísmo da virtude para a glória de Deus e seu
próprio mérito. Por último, porque permitindo o mal, Deus quer um bem superior
que dele resulta acidentalmente.4 Depois do pecado, por
exemplo, o inferno foi criado para os anjos que ofenderam a Deus e para os
homens pecadores que, permanecendo impenitentes, após a morte também para lá
iriam. Brilha assim no universo a justiça infinita do Criador, premiando os
bons e castigando os maus. Sem isto Ele não manifestaria sua justiça punitiva 5 nem transferiria ao
universo o poder de castigar o mal que é praticado.
Uma luta estabelecida por Deus
Portanto, a partir do momento em que anjos e
homens desobedeceram aos preceitos divinos, uma luta se iniciou entre o bem e o
mal, entre os que procuram servir a Deus e os que se revoltam contra Ele, entre
os que querem satisfazer suas paixões desregradas e aqueles que anelam viver do
influxo da graça. Essa luta não tem trégua, pois foi estabelecida pelo próprio
Criador: “Porei inimizades entre ti e a mulher, entre tua descendência e a
dela” (Gn 3, 15). Luta tremenda, que atravessa os séculos com o enfrentamento
constante de duas raças: a bendita estirpe de Jesus e Maria e a maldita
linhagem de satanás.
Desde a expulsão do homem do Paraíso, vemos,
então, como o filão dos maus parecia triunfar, pois o império do pecado na face
da Terra, ao longo do Antigo Testamento, era quase universal. Através dos fios
que tecem a História Sagrada, torna-se patente, mesmo entre o povo eleito, a
ação deletéria deste filão de maus que, como denuncia sem véus Nosso Senhor,
está involucrada nos crimes cometidos desde a morte de Abel até a chegada d’Ele
(cf. Lc 11, 47-51). Ora, este aparente domínio do poder infernal teria fim com
o cumprimento da promessa que Deus fizera aos nossos primeiros pais: “Ela te
esmagará a cabeça” (Gn 3, 15).
Domingo de Ramos, início das dores
Com a Encarnação do Verbo a obra das trevas
conheceu sua ruína. E o confronto entre o bem e o mal encontrará sua
arquetipia, até o fim dos tempos, na luta implacável de Nosso Senhor contra os
escribas e os fariseus, narrada longamente por todos os evangelistas. O maldito
filão do mal encontrou diante de si um Varão que fundou uma Instituição para
combatê-lo, o Homem-Deus diante do qual foi obrigado a ouvir as verdades mais
contundentes e penetrantes, a ponto de ser-lhe arrancada a máscara da
hipocrisia, aos olhos de todo o povo.
Na Liturgia do Domingo de Ramos vamos assistir ao
desfecho dessa luta. Nesse dia a Igreja comemora, ao mesmo tempo, as alegrias
da entrada triunfal de Nosso Senhor Jesus Cristo em Jerusalém e o início de sua
Via Sacra, com a proclamação da Paixão no Evangelho da Missa. Abre-se, assim, a
Semana Santa, talvez o período do Ano Litúrgico mais cogente, durante o qual as
principais celebrações se sucedem, convidando-nos a considerar com especial
fervor os acontecimentos que constituem o cerne de nossa Redenção.
Entrada triunfal em Jerusalém
Entre os numerosos milagres realizados pelo
Divino Mestre, nenhum produzira tanta comoção em Israel quanto a ressurreição
de Lázaro (cf. Jo 11, 1-44). A uma simples ordem, o morto de quatro dias saíra
do túmulo andando, em perfeita saúde. Por evidenciar de forma tão grandiosa o
poder divino de Jesus, o prodígio ocasionou um forte surto de fervor popular e
muitos judeus passaram a crer n’Ele. Em contrapartida, tal fato acirrou ao
extremo o ódio dos pontífices e fariseus. Reunido o Sinédrio, deliberou este
acerca dos meios para fazer cessar a crescente fama de Nosso Senhor e, “desde
aquele momento, resolveram tirar-Lhe a vida” (Jo 11, 53).
O Redentor, que tudo sabia, já tinha conhecimento
desta decisão oficial do Sinédrio quando começou a viagem de volta à Cidade
Santa, nas vésperas das comemorações da Páscoa. No caminho Ele advertira os
discípulos a esse respeito, ao anunciar-lhes pela terceira vez a Paixão: “Eis
que subimos a Jerusalém e o Filho do Homem será entregue aos príncipes dos
sacerdotes e aos escribas; condená-Lo-ão à morte e entregá-Lo-ão aos gentios”
(Mc 10, 33). Contudo, nada fez para impedir a afluência das pessoas que
acorriam ao seu encontro e passavam a segui-Lo durante o percurso. Eram
israelitas em sua maior parte, os quais também se dirigiam ao Templo para
celebrar a Páscoa, de modo que, quanto mais se aproximava da cidade, maior se
tornava o número dos que O acompanhavam. Saindo de Jericó, por exemplo,
registra São Mateus que “uma grande multidão O seguiu” (20, 29), e São João
menciona outra “grande multidão de judeus” (12, 9) que se concentrou em Betânia
ao saber que Jesus ali havia chegado. Toda essa gente foi com Ele a Jerusalém,
pelo que “bem se pode supor que formavam o cortejo várias centenas, e até mesmo
milhares de pessoas”,6 diz Filhon. É
precisamente a essa altura do percurso, nas proximidades de Betânia e Betfagé,
que se inicia o trecho de São Lucas recolhido para o Evangelho da Procissão do
Domingo de Ramos do Ano C.
Os louvores começaram logo que Nosso Senhor
montou o jumentinho, ainda na estrada. A sua passagem o povo ia estendendo os
mantos no chão e completava esse improvisa do tapete com ramos colhidos das
árvores (cf. Mt 21, 8; Mc 11, 8). Quando já se podia divisar o Templo — o que,
segundo indicação precisa de São Lucas, corresponde a “perto da descida do
Monte das Oliveiras” —, a multitudinária procissão irrompeu em exclamações e
brados de alegria: “Bendito o Rei, que vem em nome do Senhor! Paz no Céu e
glória nas alturas!”. Tal movimentação pôs em alvoroço a cidade, que
regurgitava de peregrinos vindos de todas as regiões da Palestina, os quais,
saindo ao encontro de Jesus com ramos de palmas nas mãos, uniram-se à caravana,
para também aclamá-Lo (cf. Jo 12, 12-13).
Esse cortejo triunfal mas quão modesto para
Aquele que é Rei e Criador do universo! — realizava literalmente a profecia
messiânica de Zacarias “Dança de alegria, cidade de Sião; grita de
alegria, cidade de Jerusalém, pois agora o teu rei está chegando, justo e
vitorioso. Ele é pobre, vem montado num jumento, num jumentinho, filho de uma
jumenta” (9, 9).
Inteira conformidade com a vontade do Pai
Ora, até então Nosso Senhor sempre evitara
qualquer homenagem ostensiva à sua realeza, impondo silêncio àqueles que
reconheciam n’Ele o Salvador. No momento em que o povo quis proclamá-Lo rei,
logo após a primeira multiplicação dos pães, Ele Se havia esquivado,
retirando-Se sozinho para um monte (cf. Jo 6, 15). Na entrada em Jerusalém
neste dia, pelo contrário, aceitou com inteira naturalidade as honras e
aplausos. Tal atitude, além de permitir que as pessoas por Ele beneficiadas
manifestassem sua gratidão de maneira formal, tinha em vista também a Paixão,
pois era preciso ficar notório e testemunhado pelo próprio povo que o
Crucificado era o descendente de Davi por excelência, o Messias esperado.
Vemos aqui ressaltada a plena conformidade de
Nosso Senhor com a vontade do Pai. Quando Lhe foi pedido o apagamento, o Divino
Redentor o abraçou por completo: nasceu numa Gruta da pequena Belém e recebeu
tão somente a adoração dos pastores e dos Magos vindos de terras longínquas. A
única reação de Jerusalém à notícia de seu nascimento fora a perturbação (cf.
Mt 2, 3), e nenhum de seus habitantes saíra à procura do rei dos judeus
recém-nascido para Lhe prestar homenagens.
Entretanto, chegado o momento propício de sua
glorificação pelos homens, Ele acolheu com benevolência os brados que O
proclamavam Rei de Israel, assim como, durante anos, aceitara ser chamado de
“filho do carpinteiro” (Mt 13, 55). Na resposta à insolente interpelação dos
fariseus pedindo-Lhe que censurasse seus aclamadores, Jesus deixou bem claro
ser esse triunfo a realização de um desígnio divino, o qual se cumpriria mesmo
se os homens se negassem a louvá-Lo: “Eu vos declaro: se eles se calarem, as
pedras gritarão”.
Triunfo prenunciador da Paixão
Um detalhe da cerimônia litúrgica indica outro
aspecto do Domingo de Ramos, sem o qual não nos seria possível entender seu
significado mais profundo: o sacerdote celebra revestido dos paramentos
vermelhos, cor própria à comemoração dos mártires.
Devido à sua personalidade divina, para Nosso
Senhor tudo é presente, tanto o passado quanto o futuro. Por conseguinte, Ele
via que dentro de alguns dias, uma vez mais, estrugiriam nas ruas de Jerusalém
brados bem diferentes dos que então O reconheciam como Filho de Davi. Diante de
Pilatos, o populacho vociferaria pedindo sua crucifixão e a libertação do
vulgar bandido, Barrabás. A esse respeito, o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira
faz uma observação: “Os pintores católicos que reproduziram a cena apresentam
Nosso Senhor recebendo com certo bom grado aquela homenagem, mas com um fundo
de tristeza e ao mesmo tempo de severidade, porque Ele compreendia o que aquilo
tinha de vazio, e que o povo que O aclamava, sem pensar nisso, reconhecia a sua
própria culpa. [...] Ele desfila bondoso e triste; Ele sabe o que O espera”.7
O triunfo de Jesus em Jerusalém não era senão o
prenúncio de seu martírio na Cruz. Os evangelistas, sempre muito sintéticos,
tiveram especial diligência ao consignar a Paixão de Cristo, acontecimento de
importância ímpar na História. E por isso que o Evangelho da Missa deste
domingo excede em extensão o habitual dos demais, o que impossibilita comentar
cada um de seus versículos no exíguo espaço de um artigo. Façamos, então, uma
reflexão que nos coloque na adequada perspectiva para contemplar as maravilhas oferecidas
pela Liturgia do Domingo de Ramos, de modo a obtermos os melhores frutos para
nossa vida espiritual.
O mal se coligou para matar Nosso Senhor
No relato da dolorosa Paixão de Nosso Senhor
Jesus Cristo, um dos aspectos mais salientes é a união de todos os maus ao se
depararem com o Sumo Bem encarnado. O Evangelho refere, por exemplo, que
“naquele dia Herodes e Pilatos ficaram amigos um do outro, pois antes eram
inimigos” (Le 23, 12), causando-nos um espontâneo movimento de surpresa e
indignação. Antigas rixas pessoais por questões políticas ficaram encerradas em
função da condenação do Salvador. E uma regra da História que encontra aqui seu
paradigma: os maus, ainda que hostis entre si, sempre juntam forças quando se
trata de fazer face ao bem.
É verdade que Pilatos não agia motivado por ódio
a Jesus e não O tratou com vulgar desprezo, como o fez Herodes, mas por receio
de desagradar a César; e que em Herodes, mesclada com a curiosidade,
predominava o sentimento de inveja. Certo é, porém, que eles se uniram contra o
Homem-Deus quando seus caminhos se cruzaram. Da mesma forma, voluntária ou
involuntariamente, se aliaram ao Sinédrio, contra o qual, todavia, ambos
alimentavam antigos desacordos e inimizades.
Isso nos ensina como as desavenças entre os maus
não alcançam, em geral, grande profundidade de alma, circunstância, aliás,
posta em relevo pelo famoso comentário de Clemenceau, o astuto e anticlerical
estadista francês, do fim do século XIX, entrando no XX: dois homens, por mais
inimigos que sejam, se unem na cumplicidade caso frequentem as mesmas casas de
tolerância. Podemos inferir desta afirmação que, pelo contrário, o ódio que
dedicam ao bem, de modo especial quando este surge com muito esplendor, é
inextinguível, e ambos entram numa conjuração para destruí-lo.
Entre os maus, há graus de perversidade que
originam indecisão ou lentidão. Quando Nosso Senhor se encontrava perante
Herodes, “os sumos sacerdotes e os mestres da Lei estavam presentes e O
acusavam com insistência” (Le 23, 10); ante a dúvida de Pilatos, uma vez mais
“os chefes dos sacerdotes faziam muitas acusações contra Jesus” (Mc 15, 3),
pressionando o governador com argumentos falazes. Por fim, ao ser proposta a
libertação de Jesus, “os chefes dos sacerdotes atiçaram a multidão para que
Pilatos soltasse Barrabás” (Mc 15, 11) e por isso o povo insistia gritando “com
toda a força, pedindo que fosse crucificado. E a gritaria deles aumentava
sempre mais” (Lc 23, 23). Sua histeria não diminuiu enquanto o Divino
Prisioneiro não foi entregue “à vontade deles” (Le 23, 25).
Ódio dos maus, indiferença dos bons
Nessas horas, lamentavelmente, muitos daqueles
que se têm na conta de virtuosos não abraçam com decisão e coragem o partido do
bem, permitindo, por isso, a expansão do domínio do mal. “Esta é a vossa hora e
do poder das trevas” (Lc 22,53), lamentava-se o Salvador no momento de ser
preso, sem que ninguém dentre os seus mais próximos tomasse sua defesa de
maneira eficaz. Boa parte dos que haviam aclamado Jesus na entrada em Jerusalém
com ramos e brados, por não terem aderido com profundidade ao Bem, estavam mais
tarde no meio da multidão vociferante votando por Barrabás.
Não nos custa admitir que na turba que exigia a
condenação do Senhor estivesse alguém a quem Ele houvesse restituído a vista, e
que não reagia diante do infame espetáculo; outro a quem Ele tivesse devolvido
a audição e a fala, e que ouvia aquelas blasfêmias sem levantar a voz para
protestar; outro, ainda, ao qual Ele houvesse curado da paralisia e que tivesse
caminhado até ali apenas para saciar sua malsã curiosidade, assistindo impávido
ao sofrimento de quem o beneficiara. Talvez muitos não quisessem que Nosso
Senhor fosse crucificado, mas, por se terem deixado influenciar pelos maus,
acabaram participando do pior crime já cometido na História. Todos, contudo,
eram indiferentes, quando não hostis ao Divino Mestre.
Para evitar que também nós nos transviemos, seja
no caminho da tibieza e da indiferença, seja no da ingratidão e da traição,
devemos progredir com firmeza nas vias da santidade e cultivar nossa indignação
ante o avanço ousado dos que recusam a Jesus. Sempre que os bons não entram
pelas sendas da radicalidade, o mal leva a melhor.
Cabe aqui remover uma objeção no tocante à
virtude da humildade: não será melhor e mais conforme aos ensinamentos de Nosso
Senhor que os bons sejam humildes e resignados? A resposta é afirmativa no
tocante a injúrias feitas a nós mesmos. Porém não é acertada se o alvo das
agressões injustas forem as coisas sagradas, a Santa Igreja Católica ou alguma
pessoa inocente. Em tal caso, manter-se passivo é repetir a atitude dos que
assistiram com indiferença aos sofrimentos de Jesus Cristo.8
É sublime o exemplo que Nosso Senhor nos dá
despojando-Se de Si mesmo e aceitando todas as injúrias por nossa salvação. No
entanto, ao mesmo tempo precisamos aprender a lição de que, em certas
circunstâncias, a indiferença pode constituir um pecado maior do que o ódio, O
contrário seria uma atitude semelhante a alguém que, sendo assaltado por um
ladrão em sua própria casa, assistisse com indiferença e de braços cruzados às
piores agressões contras seus familiares mais próximos. Seria esta atitude
própria a um bom pai, filho ou esposo? Assim, na Paixão de Nosso Senhor o que
mais chama a atenção não é a sanha dos inimigos, mas a indiferença dos bons. E
este um aspecto esquecido, ainda que da maior importância, que cumpre ser
lembrado hoje.
Nosso Senhor estava derrotando o mal
Os indiferentes e os tíbios, pretendendo
pertencer ao número dos bons, estavam cegos de alma por sua própria atitude, a
ponto de não perceberem que Nosso Senhor, em sua Via Dolorosa, alcançava o
maior dos triunfos. Também os adversários do bem, com a vista turva de ódio,
não se davam conta de que aceleravam sua própria ruína. “Ó morte onde está a
tua vitória? Ó morte onde está teu aguilhão?” (I Cor 15, 55), indaga desafiante
o Apóstolo. Morrendo na Cruz, o Divino Redentor vencia não só a morte mas
também o mal, e deixava fundada sobre rocha firme uma instituição divina,
imortal — a Santa Igreja Católica, seu Corpo Místico e fonte de todas as graças
—, que enfraqueceu e dificultou a ação da raça da serpente, privando-a do poder
esmagador e ditatorial que exercera sobre o mundo antigo.
Causa-nos júbilo saber que a aparente catástrofe
da Paixão e Morte de Nosso Senhor marca a irremediável e estrondosa derrota de
satanás. Este, insuflando os piores tormentos contra Jesus, iludia-se, julgando
que caminhava para um êxito extraordinário contra o Bem encarnado. Em sua
loucura não percebia como estava contribuindo para a glorificação do Filho de
Deus e para a obra da Redenção.
Que glória, que triunfo, que fastígio atingira
Nosso Senhor Jesus Cristo com sua Paixão! Que humilhação nos infernos,
esmagados pelo erro de ignorar a força invencível do Bem!
A solução para o problema do mal
Na meditação da Liturgia do Domingo de Ramos
encontramos o fiel da balança para o problema da luta entre o bem e o mal. Com
a Encarnação, Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo, o mal sofreu sua
derrota definitiva, porque passou a vigorar sobre a face da Terra o regime da
graça. Foi este o meio determinado pela Sabedoria Divina para acabar com a
vitalidade e o dinamismo da linhagem de satanás, o qual, inconformado, tudo faz
para se vingar; por isso a luta entre o bem e o mal continua sem tréguas, hoje
mais do que nunca.
Quanto a nós, católicos, não podemos ignorar tal
realidade, na qual, aliás, estamos envolvidos. E devemos estar muito atentos
para um aspecto de suprema importância: esse embate se trava também dentro de
nós. Da mesma forma como no Paraíso Terrestre existia a serpente, em nosso
interior há serpentes que fazem um trabalho muito mais ladino do que o demônio
com Eva. São nossas más tendências, em virtude do pecado original, sempre de
tocaia, esperando uma oportunidade para nos arrastar para o partido dos tíbios
e indiferentes. Nessa batalha interna cabe-nos manter o mal amordaçado e
humilhado, e dar ao bem toda a liberdade, o que só podemos alcançar com a graça
de Deus.
Certo é que, quanto mais progredirmos na virtude,
mais poderá se levantar contra nós uma acirrada oposição do poder das trevas. Dois
mil anos de História da Igreja nos mostram com que facilidade essa oposição se
transforma em ódio e em perseguição. Não temamos, entretanto, o que nos possa
advir, certos de que, como diz São Paulo, “todas as coisas concorrem para o bem
daqueles que amam a Deus, daqueles que são os eleitos, segundo os seus
desígnios” (Rm 8, 28). Avancemos, pois, seguros, com os olhos fixos n’Aquele
que “se manifestou para destruir as obras do demônio” (I Jo 3, 8), pois quem é
o diabo perto de Nosso Senhor?
O mal é limitado, o bem é intinito
Como ensina a filosofia perene, o mal é uma
ausência de bem.9 O mal absoluto não
existe, ao contrário do que pretendem as correntes dualistas. Sendo, pois, uma
mera negação do bem, por si só não tem força para derrotá-lo.’10 Deus é o Sumo Bem, o Bem em essência, e quem se unir com
integridade a Ele, portanto, se tornará invencível, como que revestido da
própria onipotência divina.
Destas reflexões, nascidas da Liturgia que abre a
Semana Santa, devemos tirar uma lição para os nossos dias, em que o mal e o
pecado campeiam com arrogância pelo mundo inteiro: da luta entre o bem e o mal
resulta necessariamente a vitória do bem, de mo do que, cedo ou tarde, os justos
serão premiados e “farão brilhar como uma tocha a sua justiça” (Eclo 32, 20).
No momento em que uma parte ponderável da humanidade vira as costas a seu
Criador e Redentor, somos chamados a crer com firme confiança que, como Nosso
Senhor triunfou outrora contra todas as aparências de derrota, triunfará de
novo restabelecendo a verdadeira ordem: “No Senhor ponho a minha esperança,
espero em sua palavra” (Sl 129, 5).
1) Cf. ROYO MARÍN, OP, Antonio.Diosysu obra. Madrid: BAC, 1963, p.143.
2) SANTO AGOSTINHO. Enarratio in psalmum LVIII,
sermo II, n.5. In: Obras. Madrid: BAC, 1965, v.XX, p.489.
3) VIGILIA PASCAL. Proclamação da Páscoa. In:
MISSAL ROMANO. Trad. Portuguesa da 2a. edição típica para o Brasil realizada e
publicada pela CNBB com acréscimos aprovados pela Sé Apostólica. 9.ed. São
Paulo: Paulus, 2004, p.275.
4) Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. I,
q.19, a.9.
5) Cf. Idem, J-II,
q.79, a.4, ad 1.
6) FILLION, Louis-Claude. Vida de Nuestro Señor Jesucisío Pasión, Mueev
Resurrección. Madrid: Rialp,
2000. vIII. p.15.
7) CORREA DE OLIVEIRA, Plinio. Palestra. São
Paulo, 14 abr. 1984.
8)
Cf. SAO TOMÁS DE AQUINO, op. cit., II-II, q.188, a.3, ad 1.
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