Comentário ao Evangelho V Domingo da Quaresma - Ano C
1 Dirigiu-se Jesus para o Monte das Oliveiras. 2 Ao romper da manhã,
voltou ao Templo e todo o povo veio a Ele. Assentou-Se e começou a ensinar. 3
Os escribas e os fariseus trouxeram-Lhe uma mulher que fora apanhada em
adultério. 4 Puseram-na no meio da multidão e disseram a Jesus: “Mestre, agora
mesmo esta mulher foi apanhada em adultério. 5 Moisés mandou-nos na Lei que
apedrejássemos tais mulheres. Que dizes Tu a isso?” 6 Perguntavam-Lhe isso, a
fim de pô-Lo à prova e poderem acusá-Lo. Jesus, porém, Se inclinou para a
frente e escrevia com o dedo na terra. 7 Como eles insistissem, ergueu-Se e
disse-lhes: “Quem de vós estiver sem pecado, seja o primeiro a lhe atirar uma
pedra”. 8 Inclinando-Se novamente, escrevia na terra. 9 A essas palavras,
sentindo-se acusados pela sua própria consciência, eles se foram retirando um
por um, até o último, a começar pelos mais idosos, de sorte que Jesus ficou
sozinho, com a mulher diante d’Ele. 10 Então Ele Se ergueu e vendo ali apenas a
mulher, perguntou-lhe: “Mulher, onde estão os que te acusavam? Ninguém te
condenou?” 11 Respondeu ela: “Ninguém, Senhor”. Disse-lhe então Jesus: “Nem eu
te condeno. Vai e não tornes a pecar” (Jo 8, 1-11).
A Lei ou a Bondade?
No episódio da mulher adúltera, os evangelistas não revelam tudo quanto
estava oculto na urdidura feita pelos fariseus para colocar Jesus diante de um
dilema: condenar a pecadora à morte, violando a lei romana, ou salvar-lhe a
vida, desconsiderando a Lei de Moisés. Jesus superou a justiça salomônica.
Jesus veio para perdoar
Os Evangelhos são o
testamento da Misericórdia. O anúncio do maior ato de bondade havido em toda a
obra da criação — a Encarnação do Verbo — é o frontispício, a bela abertura de
sua narração. A chave de ouro com a qual esta termina deixa-nos sem saber se
ainda não é mais bela e comovedora: a crucifixão e morte de Cristo Jesus para
restabelecer a harmonia entre Deus e a humanidade.
A Bondade divina une
substanciosamente esses dois extremos, a Gruta de Belém e o Calvário, através
de uma seqüência riquíssima em acontecimentos escachoantes de amor pelos
miseráveis: “Pois o Filho do Homem veio procurar e salvar o que estava perdido”
(Lc 19, 10). Essa alegria de Jesus em perdoar transparece nas doutrinas,
conselhos e até mesmo nas parábolas por Ele elaboradas a fim de que seus
ouvintes melhor entendessem sua misericórdia, como, por exemplo, a do filho
pródigo (Lc 15, 11-32), a da ovelha desgarrada (Lc 15, 4-7) e a da dracma
perdida (Lc 15, 8-10). A euforia de quem encontra, em qualquer dos três casos,
reflete o contentamento do próprio Cristo ao promover o retorno de uma alma às
vias da graça.
Ele é o Bom Pastor
que ao apanhar a ovelha imprudentemente destacada do rebanho, a reconduz ao
redil, a fim de infundir-lhe nova vida de maneira superabundante. E Ele a leva
sobre seus próprios ombros, enquanto os Céus se enchem de um júbilo ainda maoir
do que o causado pela perseverança dos justos (cf. Jo 10, 11-16; Lc 15, 4-7).
Dentro dessa
atmosfera de amor, jamais vimos Jesus, ao longo de sua vida pública, tomar a
menor atitude depreciativa em relação a quem quer que fosse: samaritanos,
centurião, cananéia, publicanos, etc. A todos invariavelmente atendia com
divina atenção e carinho: “Aprendei de Mim que sou manso e humilde de coração”
(Mt 11, 29). Nenhuma pessoa d’Ele se aproximou em busca de uma cura, perdão ou
consolo, sem ser plenamente atendida. Tal foi seu infinito empenho em fazer o
bem, sobretudo aos mais necessitados: “Não vim chamar os justos, mas os
pecadores” (Mc 2, 17); “o Espírito do Senhor está sobre Mim, porque Me ungiu; e
enviou-Me (...) para publicar o ano da graça do Senhor” (Lc 4, 18-19). O
próprio Apóstolo dirá mais tarde: “Jesus Cristo veio a este mundo para salvar
os pecadores, dos quais sou eu o primeiro” (1 Tm 1, 15).
Malícia dos fariseus
Mas, assim como “é
belo durante a noite acreditar na luz” (1), a Bondade substancial de Cristo
Jesus se torna ainda mais luzidia aos nossos olhos quando contrastada com uma
oposição toda feita de malícia. E esta nós a encontramos, radical e constante,
do começo ao fim do Evangelho. Já o Precursor, ao distinguir entre os que o
circundavam, alguns fariseus, os increpou: “Raça de víboras, quem vos ensinou a
fugir da ira que vos ameaça? (...) Não digais dentro de vós: Nós temos Abraão
por pai!” (Mt 3, 7-9).
São tão numerosas as
investidas dos escribas e fariseus contra Jesus, em razão de sua misericórdia,
que reproduziríamos uma boa parte dos Evangelhos se procurássemos ser
minuciosos nas citações a esse respeito. Lembremos de passagem que eles chegam
a chamá-Lo de possesso do demônio (Jo 8, 52; 10, 20; Lc 11, 15), distorcem suas
palavras e afirmações (Mc 14, 58), perseguem-No com intensidade crescente (Jo
cap. 7 a 11) até O condenarem à morte, e O acusam de revolucionário, porque,
segundo eles, sublevava o povo contra o poder civil e afirmava que não devia
ser pago o imposto ao imperador (Lc 23, 2).
Jesus, a Misericórdia
substancial, não é menos duro para com eles: “Se compreendêsseis o sentido
destas palavras: Quero a misericórdia e não o sacrifício... não condenaríeis os
inocentes” (Mt 12, 7). Por sete vezes, Jesus os chama de hipócritas, com a
expressão: “Ai de vós escribas e fariseus hipócritas”, para — em cada uma —
atribuir-lhes um pecado (cf. Mt 23, 13-29).
Ódio contra a bondade
de Jesus
Essa indisposição
farisaica contra Jesus tomava como motivo implícito sua infinita misericórdia,
virtude específica de Deus: “Quem é de Deus ouve as palavras de Deus, e se vós
não as ouvis é porque não sois de Deus” (Jo 8, 47). E, sobretudo, porque não
queriam ser verdadeiros filhos de Deus, mas sim do diabo (Jo 8, 44). Além dessa
terrível ascendência que lhes é definida por Jesus, recebem também o título de
“ladrões” (Jo 10, 10), “homicidas” (id.), “víboras” (Mt 12, 34).
Ora, o ódio farisaico
contra a Bondade também deveria se refletir na repulsa que manifestavam em
relação aos necessitados. E é, portanto, no contraste com a acidez dos fariseus
e escribas contra os pecadores que vemos rebrilhar ainda mais a Bondade de
Cristo. Ela se torna histórica quando chega aos extremos limites de absolver
uma Madalena (Lc 7, 47-48) ou, no alto do Calvário, o bom ladrão (Lc 23, 43).
Os fariseus se
indignavam contra essas atitudes de Jesus porque seu puritanismo procedia de
uma falsa justiça, toda feita de orgulho, e por isso se afastavam dos
miseráveis, desprezavam-nos e jamais demonstravam sentimentos de compaixão por
qualquer carente.
É no embate entre a
Bondade infinita e o falso amor à Lei, que se desenrola o drama do Evangelho de
hoje.
O episódio da mulher adúltera
1Dirigiu-se Jesus para o Monte
das Oliveiras.
Segundo nos diz Alcuíno (2), Jesus passava o dia
pregando no Templo de Jerusalém e, ao entardecer, retornava a Betânia para
repousar na casa de Lázaro. De acordo com este versículo, nessa ocasião, por
ser a última tarde de festa, é possível que Jesus tenha passado a noite em
oração, no Monte das Oliveiras. Quem melhor comenta esta passagem é o Pe.
Andrés Fernandez Truyols, SJ: “Terminado o ministério apostólico de todo dia,
tornado mais árduo pelas discussões às quais seus eternos adversários o
obrigavam, que não lhe deixavam momento de repouso, enquanto seus ouvintes
voltavam cada um para sua casa, Jesus se retirou para o Monte das Oliveiras.
Não parece que se afastasse até Betânia, o que teria sido provavelmente
indicado pelo autor. O mais certo é que passasse a noite numa tenda ou uma
gruta; talvez naquela que foi considerada por muitos como a Gruta da Agonia ou,
porventura, na que se encontra quase no topo do monte, e que a tradição
consagrou como a cátedra dos ensinamentos de Jesus, sobre a qual Santa Helena
edificou uma basílica. Desse modo, tanto de uma como da outra, Jesus podia
dirigir-se rapidamente ao Templo pela porta oriental, que coincidiria mais ou
menos com a hoje chamada Porta Dourada. De resto, o Monte das Oliveiras era um
local familiar para Jesus” (3).
2 Ao romper da manhã, voltou ao Templo e todo o
povo veio a Ele. Assentou-Se e começou a ensinar
Ninguém jamais poderá imaginar a irresistível
força de atração exercida por Jesus em relação a quem viesse a conhecê-Lo.
Disso dão uma ideia os Evangelhos, que constituem meras sínteses de
maravilhas indescritíveis. Tal é seu empenho em fazer o bem que, logo ao raiar
do dia, Ele vai ao Templo, certamente já seguido por outros pelo caminho. À sua
entrada todos se juntam a seu redor para ouvi-Lo. Era o início de mais uma
longa jornada de pregação conversada, na qual poderiam tomar parte ativa, com
perguntas ou comentários, quaisquer dos presentes, numa atmosfera inteiramente
amena e familiar. Por isso, Ele Se sentou e começou a ensinar. De repente,
aquele sagrado convívio foi interrompido por um fato inusitado.
A adúltera é apresentada a Jesus
3 Os escribas e os fariseus trouxeram-Lhe uma
mulher que fora apanhada em adultério. 4 Puseram-na no meio da multidão…
A adúltera foi colocada no centro da multidão,
para ser julgada, como fautora de um crime e, dessa forma, ipso facto, constituíram a
Jesus como juiz.
Esse fato, inevitavelmente, levanta uma
importante questão: o que teria acontecido com o homem implicado na mesma
falta? Qual a razão de ele não ter sido apresentado a Jesus, nessa ocasião?
Ora, o texto da Escritura é peremptório sobre a obrigatoriedade da punição de
ambos: “Se um homem cometer adultério com uma mulher casada, com a mulher de
seu próximo, o homem e a mulher adúltera serão punidos de morte” (Lv 20, 10);
ou ainda: “Se se encontrar um homem dormindo com uma mulher casada, ambos
deverão morrer: o homem que dormiu com a mulher, e esta da mesma forma. Assim,
tirarás o mal do meio de ti” (Dt 22, 22).
Várias hipóteses levantam os autores a esse
respeito; não encontramos, porém, nenhuma que leve até ao extremo a
desconfiança em relação à perfídia daqueles escribas e fariseus. Permitido nos
seja, conhecendo a consumada maldade que lhes era característica, levantar uma
suspeita sobre a “fuga” do infrator adúltero: não seria ele cúmplice de seus
mandantes para, assim, conseguirem um flagrante? Neste caso, provavelmente, a
adúltera teria sido induzida ao crime, deixando-se levar mais por ingenuidade e
pela inclinação de suas paixões, do que por dolo.
Cabe aqui a pergunta clássica: “A quem aproveitou
o crime?” Já na época de Daniel, os acusadores não haviam conseguido agarrar o
suposto parceiro de Suzana no adultério caluniosamente inventado pelos dois
juízes anciãos. E no caso do Evangelho de hoje, quem era o criminoso? A mulher
teria se negado a declará-lo? Espanta-nos a facilidade com que os escribas e
fariseus encontraram uma adúltera, para ser introduzida no Templo, bem àquela
hora e em tal circunstância, tão favoráveis para armar uma cena show que
envolvesse a Jesus.
Acrescente-se este outro dado: duas criaturas
humanas, adultas, que fossem perpetrar um crime punido com pena de morte
imediata, por mais primitivas que fossem, procurariam se proteger de qualquer
risco de um flagrante. Ora, o caso em questão realizou-se em condições tais que
dificilmente deixaria de ter sido planejado por terceiros, interessados em sua
consecução.
Os fariseus invocam uma lei em desuso
…multidão e disseram a Jesus: “Mestre, agora
mesmo esta mulher foi apanhada em adultério. 5 Moisés mandou-nos na Lei que
apedrejássemos tais mulheres. Que dizes Tu a isso?” 6 Perguntavam-Lhe isso, a
fim de pô-Lo à prova e poderem acusá-Lo. Jesus, porém, Se inclinou para a
frente e escrevia com o dedo na terra.
A expressão “apanhada em adultério” confere ainda
mais substância à hipótese de um crime planejado por várias pessoas, com um
intuito que se tornará explícito na revelação contida no versículo seguinte.
Ademais, a afirmação fortemente categórica da parte deles evitava que fossem
argüidos por Jesus a respeito das provas, pois nem a própria mulher procurava
defender-se. Talvez, pela delicadeza de sua alma feminina, não insinuava sequer
quem fosse seu cúmplice naquele crime.
Flávio Josefo, famoso historiador judeu daqueles
tempos — portanto, de certo modo, insuspeito —, contanos que havia caído em
desuso a lei que punia com pena de morte os réus condenados por esse tipo de
crime.
Rigorismo em meio ao relaxamento geral dos costumes
Sob o reinado dos Herodes, a corrupção dos
costumes em Jerusalém havia chegado ao extremo. Quiçá fosse essa uma
circunstância que propiciasse aos fariseus e escribas criarem, junto a Jesus, o
impasse de como proceder naquele caso de adultério. Seja como for, “sob as
aparências de zelo pela Lei, aqueles homens hipócritas e rancorosos armavam para
Jesus uma armadilha maldisfarçada. Estavam certos de que Aquele a quem chamavam
ironicamente pelo epíteto de ‘amigo de pecadores e publicanos’ Se mostraria
indulgente com a culpada; e então eles O acusariam de violar a Lei divina num
ponto fundamental” (4).
Na mesma linha, comenta o Pe. Andrés Fernandez
Truyols, SJ: “ pergunta, aparentemente respeitosa e até honorífica para Jesus,
era na realidade insidiosa. Se Ele Se pronunciasse pelo castigo, tacha-Lo-iam
de duro; se absolvesse, seria acusado de violar a Lei” (5). Por outro lado,
vale a pena observar o contraste entre os fiéis, que ouvem enlevados as
palavras do Salvador, e a sanha dos doutores da Lei e dos fariseus em condenar
Jesus. “Enquanto os pacíficos e simples admiravam as palavras do Salvador, os
escribas e fariseus Lhe faziam perguntas, não para aprender, mas para armar
armadilhas à verdade” (6).
Querem tornar Jesus réu de sua própria sentença
Tornou-se famoso o dilema criado pelos fariseus a
propósito do pagamento do imposto, se a César ou ao Templo. O “dai a César o
que é de César, e a Deus o que é de Deus” (Mt 22, 21) marcou a História.
Entretanto, o caso trazido a lume pela Liturgia de hoje foi montado com
muitíssimo mais habilidade. Decidindo por uma ou outra solução, Jesus, ou se
levantaria contra o poderio romano, ou se declararia discordante de Moisés e,
portanto, do Sinédrio. Se sua sentença fosse no sentido de que lapidassem a
mulher, na certa seus inimigos procurariam entregá-Lo a Pilatos por ter violado
a lei imposta por Roma às províncias conquistadas e suas sufragâneas: o direito
de vida e de morte lhe pertencia com exclusividade. Sem contar que teriam
elementos para sublevar o povo contra sua radicalidade e intransigência.
Jesus contra Moisés...
Se Jesus a absolvesse, agitariam os fiéis pelo
fato de Ele Se opor à Lei de Moisés e O arrastariam ao Sinédrio para ser
excomungado e entregue à autoridade romana. Provavelmente, “queriam colocar
Cristo em oposição à Lei de Moisés, dando a entender que O consideravam um
outro Moisés, o qual trazia uma lei mais perfeita que a do primeiro. Tudo era
feito para incentivá-Lo e provocá-Lo, de modo que Ele tomasse partido contra a
Lei de Moisés, dando-lhes ocasião de acusá-Lo. Que dizes Tu a isso?
Contrapondo-O a Moisés, como se O elevassem acima de Moisés. Tu, que és maior
que Moisés, a quem não se aplicam suas leis, porque promulgas outra melhor e
mais perfeita, o que dizes? Aprovas ou reprovas a sentença da lei mosaica? Por
todos os meios, procuram colocá-Lo na tentação de dizer algo contra Moisés, em
face de todo aquele público, já que O reconhecem como superior ao grande
legislador” (7).
Jesus responde por escrito
Chama especialmente a atenção a inédita atitude
do Divino Mestre, de inclinar-Se, permanecendo sentado, e pôr-Se a escrever
“com o dedo na terra”. Jesus Se encontrava perto do pátio das mulheres, na
galeria do Tesouro, e não sabemos de que maneira era constituído o piso desse
local. Seja como for, provavelmente a escrita seria de molde a poder ser lida
por outrem. Consideremos o fato de escribas e fariseus terem se postado perto
de Nosso Senhor e, ainda mais, por se encontrarem de pé, não lhes era difícil
ler os caracteres desenhados por Ele. Jesus escrevendo: é a única ocasião em
que isso acontece em toda a narração dos Evangelhos. Como imaginar a forma das
letras e a sequência das palavras? Evidentemente, só poderiam ser as mais belas
entre todas as possíveis. Algo legível deveria restar no chão, talvez impresso
sobre a própria poeira do caminho. O que teria escrito Ele naquele momento?
Mais adiante trataremos desse pormenor.
Jesus eleva a questão do plano jurídico ao moral
7 Como eles insistissem, ergueu-Se e
disse-lhes: “Quem de vós estiver sem pecado, seja o primeiro a lhe atirar uma
pedra”.
No Deuteronômio encontramos a clara
obrigatoriedade de a primeira testemunha de um crime, punido com pena de morte,
atirar a primeira pedra: “Tens, ao contrário, o dever de matá-lo:
Diante do Senhor se encontravam mestres da Lei e
fariseus, peritos no domínio desses conhecimentos relativos à jurisprudência.
Portanto, Jesus não se exime, pronuncia a sentença, mas, a propósito de sua
execução, aproveita o ensejo para transferir a problemática do campo jurídico a
um plano muito mais elevado, ou seja, o moral. Frase divinamente célebre, se
ela fosse gravada de forma indelével em nossos corações, compenetrados estaríamos
de nossa indignidade, de nossas insuficiências, pecados, etc., e não seríamos
ásperos com ninguém, nem repreenderíamos com dureza de coração os culpados.
Doçura, humildade e compaixão constituiriam a essência de nosso relacionamento,
e assim, atrairíamos a benevolência de Deus e seríamos causa de edificação do
próximo. “Creio que Cristo quis criticá-los, e não só dava a entender que
podiam pecar, enquanto homens, e que eram pecadores de fato — quer dizer, que
estavam manchados de pecados como a generalidade dos homens — mas também que
eram hipócritas: cheios de iniqüidade no interior, enquanto no exterior fingiam
santidade e zelo religioso, tratando de apedrejar aquela mulher. Increpou-os
como naquela outra ocasião em que os chamou de sepulcros caiados (Mt 23, 27).
Feriu-os, portanto, no íntimo da consciência, ao dizer-lhes: ‘Quem de vós
estiver sem pecado, seja o primeiro a lhe atirar uma pedra’, dando a entender
que eles eram réus daquele pecado ou de outros maiores. Mas essa acusação é tão
prudente que não parece ser Ele quem a faz, mas a consciência de cada um deles.
O Salvador os remete às suas próprias consciências, estabelecendo-as como
juízes, como se Ele ignorasse o que nelas havia. De certo modo, é de direito
natural que quem acusa ou condena alguém esteja livre do pecado que lhe
reprocha” (8).
Pode um homem julgar outro homem?
É insuperavelmente magistral essa resposta de
Nosso Senhor, pois não assume a função de juiz, que lhe ofereciam os escribas e
fariseus, mas sim a de Mestre, conforme o título empregado por eles ao Lhe
proporem o julgamento (v. 4). Como Altíssimo Conselheiro, Jesus lhes recorda
que um juiz, apesar de seus pecados ou falhas, pode — e até deve — julgar e
condenar, se necessário for; porém, levanta para eles um espinhoso problema:
pode um pecador ser o executor da justiça de Deus?
O único, verdadeiro e competente Juiz é Nosso
Senhor Jesus Cristo: “O Pai não julga ninguém, mas entregou todo o julgamento
ao Filho” (Jo 5, 22). Todo aquele que de forma competente julga outro homem,
por direito natural, positivo ou divino, assim o faz por delegação de Jesus
Cristo. Entretanto, aquela sentença moral lançada contra homens orgulhosos que
hipocritamente se julgavam santos e imaculados, de si não os deteria em sua
determinação de cumprir a Lei, se esse fosse realmente seu objetivo exclusivo. Que
mais faria Jesus para impedi-los?
Escrevendo, Jesus acusava os acusadores
8 Inclinando-Se novamente, escrevia na terra.
Por mais que São Jerônimo não seja acompanhado pela maioria
dos autores, parece ter ele inteira razão em sua análise a respeito deste
ponto. Não cremos ser de boa linha a opinião de alguns comentaristas, de que
Jesus escrevia sem um objetivo definido, como simplesmente querendo significar
seu desinteresse pela questão levantada, ou para ganhar tempo. Tudo leva a crer
que os pecados, dignos do mesmo castigo, cometidos pelos acusadores, figuravam
naquela escrita aparentemente informal. Santo Ambrósio é também partidário
desta hipótese de São Jerônimo.
Se assim de fato foi, Jesus procedeu com invariável sabedoria e,
ademais, com suma bondade, pois poderia contra-acusar de público cada um deles,
e não o fez. Muito pelo contrário, colocava-lhes à disposição seu total perdão.
Bastaria um arrependimento interior e um pedido de misericórdia, ainda que
implícito, para todos saírem daquela situação em inteira harmonia com Deus e
até mesmo entre eles próprios. Jesus lhes oferecia essa grande oportunidade,
mas...
9 A essas palavras, sentindo-se acusados pela sua própria
consciência, eles se foram retirando um por um, até o último, a começar pelos
mais idosos, de sorte que Jesus ficou sozinho, com a mulher diante d’Ele.
Essa narração contribui, ainda mais, para a
probabilidade de estar relacionada a escrita no solo com os pecados de cada um
dos acusadores. Não teria Jesus começado pelos mais velhos? Se o simples
enunciado da sentença os tivesse convencido a todos, a desistência deveria ser
coletiva e concomitante. O fato de se retirarem um a um indica que a conclusão
de não ser conveniente ali permanecer, foi individual e sucessiva. Por outro
lado, a ser verdadeira a interpretação de São Jerônimo e de Santo Ambrósio, não
reconheceram aqueles homens suas faltas e delas não pediram perdão.
O pecado não compensa
10 Então Ele Se ergueu e vendo ali apenas
a mulher, perguntou-lhe: “Mulher, onde estão os que te acusavam? Ninguém te
condenou?” 11 Respondeu ela: “Ninguém, Senhor”. Disse-lhe então Jesus: “Nem eu
te condeno. Vai e não tornes a pecar
Ao notar a adúltera que seus acusadores iam-se
retirando, começou a sentir crescente alívio em seu interior, atingindo um
clímax após a saída do último deles. A perspectiva da morte por lapidação a
amedrontara e promovera uma constatação freqüente nos pecadores arrependidos: o
pecado não compensa! A grande vergonha e humilhação diante daquele numeroso
público talvez a fizessem sofrer ainda mais.
A última terrível prova: o santíssimo olhar de
Jesus. A Sagrada Face, íntegra em sua divina moralidade, a pureza e a
virgindade em essência, sendo contempladas pelo delírio carnal envergonhado e
arrependido... Só um ardoroso sentimento salvaria do merecido castigo aquela
pobre alma: um pedido de perdão! Jesus não exigirá dela uma declaração explícita
e formal, apenas lhe manifestará sua insuperável delicadeza: “Ninguém te
condenou?”
Respeitando a Lei, Jesus é misericordioso
Com um procedimento tão sábio quanto inusitado,
ninguém mais poderia acusar o Mestre de haver desconsiderado a Lei de Moisés e,
portanto, de ter sido exageradamente indulgente. Ele não repetira senão a
própria atitude dos fariseus e, ademais, Ele levara a pecadora a declarar:
“Ninguém, Senhor”. Seguindo o exemplo de todos, Ele tampouco a condenaria.
Assim, “quebra o laço que Lhe armaram os
caçadores” (cf. Sl 123, 7), confirma a Lei, faz rebrilhar sua dignidade, põe em
fuga seus inimigos, produz maior admiração, respeito e submissão junto ao povo
que O cercava e perdoa a pobre pecadora, despedindo-a com uma advertência: “Não
peques mais”. Com essa admoestação, Ele ainda lhe concedia sua graça, sem a
qual nenhuma virtude se pratica estavelmente.
Conclusão
Os acusadores foram julgados, a pecadora foi
perdoada
Que magnífica lição de penitência, de perdão e da necessidade da
perseverança, oferecida a cada um de nós neste vale de lágrimas no qual fomos
concebidos e vivemos!
Jesus, o único que teria direito de lançar desde
a primeira até a última pedra, concede à pecadora uma bela experiência da
grandeza de sua misericórdia. Ali sentiu-se ela verdadeiramente amada pela
infinita bondade de um Coração sagrado, humano e divino. E a felicidade que, de
maneira equivocada, buscara no pecado, encontrou-a no perdão e na benquerença
d’Aquele que os escribas e fariseus haviam escolhido para juiz: o Mestre.
Aqueles que se apoiavam na Lei para acusar saíram
julgados; a pecadora arrependida, que deveria ser morta, retirou-se na graça de
Deus. Ninguém jamais foi ou será tão intransigente com o erro quanto Jesus;
ninguém mais manso do que Ele para com os pecadores.
Este é mais um dos episódios do Evangelho nos
quais transparecem, de um lado, a infinita bondade do Sagrado Coração de Jesus,
ardendo em chamas de desejo de perdoar, e, no extremo oposto, a dureza de alma
dos escribas e fariseus, que não só rejeitam esse perdão, até para si próprios,
mas jamais reconhecem com humildade suas respectivas faltas.
Quando se defende a Lei por puro egoísmo, não só
não se tem forças para praticá-la, como não se aceita a bondade!
1 ) Edmond Rostand, Chantecler.
2) Cf. São Tomás de Aquino, Catena Aurea, in Jo.
3) Vida de Nuestro Señor Jesucristo, BAC, Madrid, 1954, pp. 395-396.
4 ) FILLION, Vida de Nuestro Señor Jesucristo, Voluntad, Madrid, 1926, t.III, p. 391.
5) TRUYOLS, op. cit., p. 396.
6 ) São Tomás de Aquino, "Catena Aurea", in Jo.
7 ) Pe. Juan de MALDONADO SJ, Comentarios a los cuatro Evangelios, BAC, Madrid, 1956, v. III, p. 519.
8) MALDONADO, op. cit., p. 522.
2) Cf. São Tomás de Aquino, Catena Aurea, in Jo.
3) Vida de Nuestro Señor Jesucristo, BAC, Madrid, 1954, pp. 395-396.
4 ) FILLION, Vida de Nuestro Señor Jesucristo, Voluntad, Madrid, 1926, t.III, p. 391.
5) TRUYOLS, op. cit., p. 396.
6 ) São Tomás de Aquino, "Catena Aurea", in Jo.
7 ) Pe. Juan de MALDONADO SJ, Comentarios a los cuatro Evangelios, BAC, Madrid, 1956, v. III, p. 519.
8) MALDONADO, op. cit., p. 522.
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