Comentários ao Evangelho Vigília Pascal - Ano C
1 No primeiro dia da semana, bem de madrugada, as mulheres foram ao
túmulo de Jesus, levando os perfumes que haviam preparado. 2 Elas encontraram a
pedra do túmulo removida. 3 Mas ao entrar, não encontraram o Corpo do Senhor
Jesus 4 e ficaram sem saber o que estava acontecendo. Nisso, dois homens com
roupas brilhantes pararam perto delas. 5 Tomadas de medo, elas olhavam para o
chão, mas os dois homens disseram: "Por que estais procurando entre os
mortos Aquele que está vivo? 6 Ele não está aqui. Ressuscitou! Lembrai-vos do
que Ele vos falou, quando ainda estava na Galileia: 7 ‘O Filho do Homem deve
ser entregue nas mãos dos pecadores, ser crucificado e ressuscitar ao terceiro
dia'". 8 Então as mulheres se lembraram das palavras de Jesus. 9 Voltaram
do túmulo e anunciaram tudo isso aos Onze e a todos os outros. 10 Eram Maria
Madalena, Joana e Maria, mãe de Tiago. Também as outras mulheres que estavam
com elas contaram essas coisas aos Apóstolos. 11 Mas eles acharam que tudo isso
era desvario, e não acreditaram. 12 Pedro, no entanto, levantou-se e correu ao
túmulo. Olhou para dentro e viu apenas os lençóis. Então voltou para casa,
admirado com o que havia acontecido (Lc 24, 1-12).
Uma “perseguição” da bondade divina
Destruído o plano
original da criação com o pecado de nossos primeiros pais, inicia Deus, em sua
bondade infinita, um processo que culmina de forma grandiosa na noite da
Ressurreição do Senhor.
I - A mais bela cerimônia do Ano Litúrgico
A noite que antecede o
Domingo da Ressurreição do Senhor é marcada pela riquíssima cerimônia da
Vigília Pascal, realizada em honra deste grandioso mistério. Nos albores do
Cristianismo, esta noite era muito considerada pelos fiéis, que costumavam
passá-la em oração, a fim de se prepararem para comemorar o triunfo de Jesus
sobre a morte com a celebração da Eucaristia, na madrugada do domingo. Desde a
Quinta-Feira Santa a Igreja primitiva, imersa na lembrança da Paixão e Morte de
Nosso Senhor Jesus Cristo, se abstinha do Santo Sacrifício, inclusive no
sábado, preferindo acompanhar no silêncio da sepultura o Corpo inanimado do
Divino Redentor. Com o decorrer do tempo perdeu-se esse costume no Ocidente,
onde, a partir do século XI, a Solenidade da Ressurreição foi aos poucos antecipada
para a manhã do Sábado Santo.1 Por fim, no ano de 1951, o Papa Pio XII
restaurou definitivamente a Vigília Pascal com a esplêndida pompa litúrgica que
a circunda, pervadida de profundo significado.
O mistério da morte de um Deus
Ainda ontem, Jesus proferia
do alto da Cruz um grito lancinante, indicativo da solidão que experimentava na
iminência da morte: "Meu Deus, meu Deus, por que Me abandonastes?"
(Mc 15, 34). No entanto, não havia Ele mesmo afirmado: "Eu e o Pai somos
um" (Jo 10, 30)? De fato, enquanto Filho eterno do Pai, jamais d'Ele Se
afastou, pois não há possibilidade de separação entre as três Pessoas da
Santíssima Trindade. Também não caberia uma separação entre a natureza divina e
a natureza humana de Jesus - inseparáveis na Pessoa do Verbo pela união
hipostática -, nem poderia, de modo algum, romper-se a união da divindade com o
Corpo ou com a Alma de Cristo.2 Houve, isto sim, a cisão entre a Alma e o Corpo
¬provocando a morte. Entende-se, pois, o clamor de Jesus pelo fato de o Pai ter
deixado de protegê-Lo e de assisti-Lo, abandonando-O nas mãos de seus
perseguidores, a fim de Lhe permitir padecer as dores da Paixão, até expirar.
O emotivo contraste entre as trevas e o fogo
A morte é simbolizada
nesta Vigília pela escuridão que envolve a igreja e seus arredores no início da
cerimônia, apenas rasgada pela luz do fogo novo. Qual é a razão mais profunda
deste fogo? Segundo a concepção dos antigos, quatro são os elementos que nos
rodeiam: terra, água, ar e fogo. Os três primeiros nos são bem conhecidos, pois
temos contato direto com eles: pisar a terra nos dá sensação de estabilidade;
produz-nos imenso agrado penetrar nas águas do mar ou beneficiarmo-nos, num
salto de paraquedas, do ar puro das alturas, esplêndido claustro dos Anjos. E o
fogo? Perigosa é sua aproximação e impossível seria manter-se vivo entre as
chamas. Entretanto, é ele uma substância indispensável para a vida na Terra, a
começar pelo fogo do Sol, fonte de luz e calor.
O fogo deste mundo,
porém, é uma pálida imagem de outro muito superior. Boa parte dos escolásticos
considera que o Céu Empíreo não está composto das quatro essências referidas,
mas de uma quinta essência.4 Algo à semelhança do fogo - daí a palavra empíreo,
do grego πυρ?ς (pirós), que significa fogo -, com características notavelmente
diversas, pois Deus retira o ardor destrutivo deste fogo, reservando-o para o
tormento dos réprobos no inferno, e conserva sua luminosidade para prazer e
alegria dos Bem-aventurados no Paraíso.5 Afirma o Doutor Angélico que se pode dizer
que "o Céu Empíreo tem luz não condensada, capaz de emitir raios luminosos
como o Sol, mas mais sutil. Ou, então, dizer que tem a claridade da glória,
diferente da claridade natural".6 Essa luz especial, por sua vez, nada é
em comparação com a Luz verdadeira e vivificante que é o próprio Deus, pois Ele
é Luz (cf. I Jo 1, 5). A grande Santa Teresa de Jesus, após uma visão mística
na qual lhe apareceu o Divino Salvador, exclamava: "Parece uma coisa tão
desdourada a claridade do Sol que vemos, em comparação com aquela claridade e
luz que se apresenta à vista, que os olhos não quereriam abrir-se depois. [...]
É luz que não tem noite e que, como sempre é luz, nada a perturba".7
O Círio Pascal - símbolo
de Nosso Senhor - é aceso no fogo abençoado nesta noite que representa a
divindade de Cristo, por cuja força, idêntica à do Pai, Ele Se ressuscitará a
Si mesmo8 de maneira fulgurante, ao unir novamente sua Alma a seu Corpo agora glorioso,
e fazendo cessar o milagre negativo pelo qual, desde o momento da Encarnação,
Ele quisera assumir um corpo padecente apesar de sua Alma estar na posse da
visão beatífica.9 "A divindade, com efeito" - afirma São Leão Magno
-, "que não se tinha retirado das duas substâncias que compunham o homem
que ela havia assumido, reuniu por seu poder aquilo que seu poder havia
separado".
Vitória de Cristo sobre o pecado e a morte
Antes da Redenção, a
humanidade jazia numa tremenda noite de trevas: as do pecado e da morte. Ora,
Nosso Senhor Jesus Cristo, voltando à vida, nos trouxe a libertação completa,
transmitindo-nos sua própria luz, assim como a chama do Círio Pascal, acesa a
partir do fogo sagrado, vai sucessivamente acendendo as velas que os fiéis
portam apagadas desde o início da celebração litúrgica, para significar que
Jesus é a Luz do mundo e quem O segue "não andará em trevas, mas terá a
luz da vida" (Jo 8, 12).
Não só nos comunicará
Ele a graça santificante, como também nos tornará partícipes de sua mesa. Por
isso, a Vigília Pascal é a ocasião mais apropriada para celebrar a um só tempo
os dois grandes Sacramentos da vida cristã: o Batismo, que abre as portas a
todos os demais, e a Eucaristia, o mais excelente e perfeito, pois tem como
substância o próprio Deus.
As letras alfa e ômega,
gravadas pelo celebrante no Círio, recordam que Jesus é o princípio e o fim.
D'Ele provém e n'Ele deve confluir toda a obra da criação: "Cristo ontem e
hoje. Princípio e fim. Alfa e ômega. A Ele o tempo e a eternidade, a glória e o
poder pelos séculos sem fim. Amém".
Após esse rito inicial,
o Círio é introduzido no recinto sagrado, onde um diácono proclama o Precônio
Pascal, emocionante canto que patenteia o quanto o pecado, sob certo ponto de
vista, foi necessário para merecermos um tão grande Redentor.
Uma síntese da História da salvação
Por fim, a Liturgia da
Palavra sintetiza em sete leituras do Antigo Testamento a História da salvação,
à luz das maravilhas operadas por Deus em favor do povo eleito desde sua gênese
até a Ressurreição do Senhor, comemorada na própria Missa. Este sapiencial conjunto
de trechos das Sagradas Escrituras constituía o último ensinamento dado aos
catecúmenos que, segundo uma antiga tradição da Igreja, seriam batizados nessa
mesma noite.
A primeira leitura (Gn
1, 1-2, 2) narra a obra dos seis dias, desenrolar de um plano magnífico dentro
do qual Deus estabelece o homem, feito à sua imagem e semelhança, como rei e
dominador de toda a Terra. Nessa passagem do Livro do Gênesis, podemos destacar
a criação da luz e a separação entre o dia e a noite, tão simbolicamente relacionada
com a cerimônia anterior.
Na segunda leitura (Gn
22, 1-18) consideramos a Aliança feita por Deus com Abraão, como penhor da
vitória sobre a terrível noite que atravessava a humanidade desde o pecado
original, no Paraíso. Este episódio ressalta a eleição de um povo não restrito
ao sangue, mas espiritual, aberto a uma amplitude infinita e confinado no
próprio Deus. Estirpe que tem sua origem num pai comum, Abraão, do qual nasceu
Isaac, que gerou Jacó, cujos filhos se estabeleceram no Egito, onde cresceram e
se multiplicaram, tornando-se uma numerosa e temível nação, até cair na
escravidão, quando "subiu ao trono do Egito um novo rei, que não tinha
conhecido José" (Ex 1, 8). Mais uma vez, Deus toma a iniciativa de vir em
auxílio dos hebreus, suscitando a figura de Moisés que os libertará da servidão
por meio de uma sucessão de milagres, cujo ápice nos descreve a terceira
leitura (Ex 14, 15-15, 1): os israelitas transpõem o Mar Vermelho a pé enxuto,
enquanto todo o exército egípcio se afoga nas águas, num novo triunfo do
desígnio de Deus em favor de sua amada herança.
A seguir, duas passagens
do profeta Isaías (54, 5-14; 55, 1-11) mostram a grande compaixão de Deus que
não abandona sua grei, apesar de tê-la rejeitado por um instante em punição por
suas infidelidades e transgressões. A imagem da esposa repudiada e depois
resgatada é símbolo da sinagoga que cede lugar à Igreja, com a qual o Senhor
firma uma Nova Aliança irrevogável e indissolúvel.
Por fim, seguem-se as últimas leituras do
Antigo Testamento, extraídas das profecias de Baruc (3, 9-15.32-4, 4) e de
Ezequiel (36, 16-17a.18-28). Na primeira, vemos os hebreus à mercê dos inimigos
e privados da paz por terem abandonado a sabedoria; mas Deus, com um carinho
mais que maternal, os ensina a abraçá-la novamente e a caminhar "para o
esplendor, à sua luz" (Br 4, 2). Ezequiel, por sua vez, relembra os
castigos infligidos ao povo pela queda na idolatria, e lhe anuncia, ao mesmo
tempo, os portentos de misericórdia que o Senhor fará, em consideração ao seu
santo nome: "Derramarei sobre vós uma água pura, e sereis purificados. Eu
vos purificarei de todas as impurezas e de todos os ídolos. Eu vos darei um
coração novo e porei um espírito novo dentro de vós. Arrancarei do vosso corpo
o coração de pedra e vos darei um coração de carne; porei o meu espírito dentro
de vós e farei com que sigais a minha Lei e cuideis de observar os meus
Mandamentos. Habitareis no país que dei a vossos pais. Sereis o meu povo e Eu serei
o vosso Deus" (Ez 36, 25-28). A despeito da impiedade de seu povo, Deus
assegura que derramará sobre ele uma água pura capaz de apagar todos os seus
pecados, prenunciando a regeneração batismal que confere a graça santificante e
nos torna partícipes da vida divina.
A belíssima sequência
dessas leituras culmina - depois do cântico do Glória - com uma oitava leitura:
um trecho da Epístola de São Paulo aos Romanos (6, 3-11), na qual ele, apóstolo
da Ressurreição, torna patente como a elevação de nossa natureza ao plano
sobrenatural, profetizada por Ezequiel, tem seu fundamento na Ressurreição de
Cristo, e como devemos ser consequentes em conformar a própria existência com
esse inestimável dom, morrendo para o pecado e vivendo só para Deus.
Deus sempre oferece cem por um
O rito da Vigília Pascal
cria, progressivamente, uma ambientação para compreendermos o amor infinito de
Deus e seu desejo de perdoar. Assim, Ele aceita benigno a oferta de fé de
Abraão, atende a súplica de Moisés, e estabelece promessas sempre renovadas que
cumpre com assombrosa exuberância e prodigalidade, dando mais do que cem por
um, pois não há proporção entre a promessa e sua realização. Depois de todos os
desvarios da nação eleita, ainda suscita do meio dela Maria Santíssima, São
José e o próprio Nosso Senhor Jesus Cristo, e oferece-lhe a garantia da
conversão e da restituição do esplendor original, no fim do mundo (cf. Rm 11,
25-32).
II - A falta de fé na Ressurreição demonstrada pelos Apóstolos
Essa suprema bondade divina
encontra no Evangelho uma nova manifestação.
1 No primeiro dia da semana, bem de madrugada, as mulheres foram ao
túmulo de Jesus, levando os perfumes que haviam preparado. 2 Elas encontraram a
pedra do túmulo removida. 3 Mas ao entrar, não encontraram o Corpo do Senhor
Jesus 4a e ficaram sem saber o que estava acontecendo.
As Santas Mulheres, com
Santa Maria Madalena à cabeça - que deve ter incentivado as outras a segui-la
-, foram ao túmulo esperando encontrar apenas um cadáver, prova de que elas nem
cogitaram numa possível ressurreição de Jesus, embora Ele a tivesse anunciado
claramente, em várias oportunidades.
Naquele tempo os sepulcros não eram como os de
nossos dias. Segundo o costume judaico, as famílias ricas não sepultavam os
mortos na terra, mas em câmaras cavadas na rocha, às vezes tão profundas que
tinham escadas de acesso e galerias subterrâneas. Na entrada havia dois trilhos
sobre os quais rolava uma pedra circular que fechava o recinto, sendo inclusive
lacrada.
Ora, a realidade
constatada pelas mulheres não foi a da pedra deslocada franqueando a entrada -
o que de si seria inusual -, mas violentamente removida para fora dos trilhos,
atestando com contundência a Ressurreição do Senhor, confirmada ademais pela ausência
de seu sagrado Corpo.
Os Anjos lembram o que havia sido anunciado pelo Salvador
4b Nisso, dois homens com roupas brilhantes pararam perto delas. 5
Tomadas de medo, elas olhavam para o chão, mas os dois homens disseram:
"Por que estais procurando entre os mortos Aquele que está vivo? 6 Ele não
está aqui. Ressuscitou! Lembrai-vos do que Ele vos falou, quando ainda estava
na Galileia: 7 ‘O Filho do Homem deve ser entregue nas mãos dos pecadores, ser
crucificado e ressuscitar ao terceiro dia'". 8 Então as mulheres se
lembraram das palavras de Jesus.
Tomadas de surpresa e
dominadas pelo medo, as mulheres nem sequer reconheceram como tais os dois
Anjos que delas se aproximaram para lhes comunicar que o Divino Mestre estava
vivo. Só depois de ouvir suas palavras elas se lembraram das reiteradas
ocasiões em que Nosso Senhor predissera sua Paixão, Morte e Ressurreição.
As mulheres, primeiras evangelizadoras da Ressurreição
9 Voltaram do túmulo e anunciaram tudo isso aos Onze e a todos os
outros. 10 Eram Maria Madalena, Joana e Maria, mãe de Tiago. Também as outras
mulheres que estavam com elas contaram essas coisas aos Apóstolos. 11 Mas eles
acharam que tudo isso era desvario, e não acreditaram. 12 Pedro, no entanto,
levantou-se e correu ao túmulo. Olhou para dentro e viu apenas os lençóis.
Então voltou para casa, admirado com o que havia acontecido.
Tendo acreditado, as
mulheres saíram correndo para transmitir aos Apóstolos e discípulos a notícia
desse magno acontecimento. Todavia, vendo-as chegar naquele estado de comoção,
eles julgaram tratar-se de febricitação - fruto da volubilidade feminina -, o
que as levava a imaginar situações irreais. Homens concebidos no pecado
original e portadores, até então, de uma débil fé, foram incapazes de crer na
maravilha que se passara, pois, "voltados ainda para a Terra não podiam
voar mais alto".
São Pedro e São João,
por via das dúvidas, resolveram dirigir-se ao sepulcro para comprovar a
veracidade do que lhes fora relatado, sem entender, contudo, o que havia
sucedido nem "a Escritura, segundo a qual Jesus devia ressuscitar dentre
os mortos" (Jo 20, 9). Se do Discípulo Amado apenas sabemos que "viu
e creu" (Jo 20, 8), de Pedro está consignado que "voltou para casa,
admirado com o que havia acontecido" (Lc 24, 12), até que, algumas horas
depois, o Senhor lhe apareceu privadamente (cf. Lc 24, 34). Quanto aos demais,
só mais tarde, quando colocaram as próprias mãos nas chagas de Jesus - pois,
pode-se deduzir da narração evangélica (cf. Lc 24, 39; Jo 20, 20.24-25) não ter
sido São Tomé o único a gozar deste privilégio -, por fim acreditaram.
Lamentavelmente, também eles não haviam fixado na memória as afirmações do
Divino Mestre a respeito de sua Ressurreição ao terceiro dia.
Ao designar as Santas
Mulheres como primeiras evangelizadoras e arautos de sua Ressurreição, Cristo
exigiu dos Apóstolos um ato de humildade. "A mulher é convidada
primeiro" - comenta o padre Monsabré - "a fim de que aquela que fora
outrora, junto ao homem, a mensageira da morte, reparasse seu primeiro crime,
tornando-se o apóstolo da vida, e recebesse, nesse glorioso ministério, a absolvição
de sua ignomínia e da maldição na qual havia incorrido. O homem se mostra
rebelde à fé, a fim de que sua incredulidade providencial determine um
progresso de manifestações, pelo qual o espírito humano é conduzido até a
perfeita e imperiosa convicção".
A misericórdia divina ultrapassa as misérias
Portanto, apesar das
misérias e aproveitando-se delas, a bondade de Jesus fez dos Apóstolos, dos
discípulos e das Santas Mulheres testemunhas de sua Ressurreição para os
séculos futuros. Mais uma vez podemos observar, na linha do ensinamento das
leituras desta Vigília Pascal, uma como que "perseguição" da
misericórdia e da clemência de Deus, que procura a todo custo vencer a justiça.
Essa é, na verdade, a história de cada um de nós, pois se lançarmos um olhar
para nossa vida passada encontraremos toda espécie de infidelidades, seguidas
de um novo chamado da parte da Providência e de graças que superam as
anteriormente recebidas.
III - A Ressurreição de Cristo, razão de nossa fé
Com a perda da inocência
original, começou sobre a face da Terra um drama para as almas. Dificuldades,
tragédias e tentações nos assaltam em qualquer circunstância e o domínio do
pecado vai, aos poucos, transformando o mundo numa selva, onde, como disse
Plautus em seu famoso provérbio, "o homem é um lobo para o outro
homem".14 Privado do dom da imortalidade, recebido de Deus no Paraíso, o
ser humano experimenta, com o correr dos anos, a fraqueza e o mal-estar
inerente à idade, que lhe recordam a proximidade da morte e do túmulo, perspectiva
que o angustia profundamente.
Entretanto, o panorama
mudou de modo radical a partir do momento em que o Verbo Se encarnou e escolheu
para Si um corpo padecente como o nosso, para poder sofrer todas as dores da
Paixão, até o "Consummatum est!" (Jo 19, 30). "A fraqueza, sim,
e a mortalidade, que não eram o pecado, mas somente a pena do pecado, o
Redentor do mundo as tomou para seu suplício, a fim de pagar por meio delas
nosso resgate. Aquilo que, em todos os homens, era a herança de uma condenação
é, então, em Cristo, um meio sagrado nas mãos de sua bondade. Livre de toda
dívida, Ele Se entregou, com efeito, ao mais cruel de todos os credores e
permitiu que [...] torturassem sua carne inocente. Ele quis que ela fosse
mortal até sua Ressurreição, a fim de que para aqueles que cressem n'Ele, nem a
perseguição pudesse parecer intolerável, nem a morte temível: porque, como não
deveriam duvidar que comungavam de sua natureza, também não deveriam duvidar
que participariam de sua glória".
Se não tivesse Nosso
Senhor Jesus Cristo ressuscitado e instaurado o regime da graça, não haveria
esperança verdadeira nesta vida, como o declara São Paulo de forma taxativa:
"se Cristo não ressuscitou, é vã a vossa fé" (I Cor 15, 17). Deste
modo, encontramos forças para enfrentar como um episódio transitório os
tormentos da morte, pois, considerando-a em função da eternidade, o tempo que
medeia entre ela e a ressurreição é nada. "Sabemos" - como diz São
João - "que, quando isto se manifestar, seremos semelhantes a Deus,
porquanto O veremos como Ele é" (I Jo 3, 2). A prova de que Ele nos
ressuscitará para a glória ao voltar no fim do mundo, se morrermos na graça de
Deus, está na própria Ressurreição d'Ele que comemoramos nesta Vigília.
A fé que devemos ter!
"Tu creste, Tomé,
porque Me viste; bem-aventurados os que não viram e creram" (Jo 20, 29).
Todos os católicos somos hoje bem-aventurados, pois, embora não tenhamos visto,
cremos que Ele arrebentou os grilhões da morte; cremos porque no mais fundo da
alma refulge a virtude da fé, infundida em nós na hora do Batismo.
Fé exigida a Abraão quando lhe foi prometido
que seria pai de uma multidão de filhos, mais numerosos que as estrelas do céu
e as areias das praias (cf. Gn 22, 16-17); fé que foi necessária ao povo hebreu
para atravessar o Mar Vermelho, com os egípcios ao seu encalço; fé que foi
pedida aos judeus, quando se encontravam na ruína e entregues à idolatria, para
crer que um dia receberiam um novo coração e um novo espírito; fé indispensável
aos Apóstolos para acreditar na Ressurreição do Senhor. Fé que já possui história
e tradição, e na qual nos precederam tantos Santos ao longo dos séculos, mas
que em nossos dias torna-se mais necessária. Fé que entra nos planos de Deus
como a gota d'água que, na Missa, o sacerdote põe no cálice do vinho a ser
consagrado.
A Igreja triunfará!
Encontramo-nos num
processo, em estado avançado e já multissecular, em que a humanidade é
paulatinamente instigada pelos infernos a afastar-se de Deus. No empenho de
derrotar a Santa Igreja e de extinguir sua luz - que é o próprio Nosso Senhor
Jesus Cristo -, satanás age de maneira a apagar a chama da fé nas almas,
obtendo como resultado um mundo paganizado, uma sociedade imersa no caos, a
caminho da anarquia, onde a virtude se torna cada vez mais rara e reina o
pecado. É noite!
"C'est la nuit
qu'il est beau de croire à la lumière!".16 Como é belo, como é glorioso e
meritório acreditar na luz à noite! Sabemos que as trevas não poderão envolver
essa luz (cf. Jo 1, 5), porque ela é divina! Ela é a Esposa Mística de Cristo,
sem ruga e sem mancha (cf. Ef 5, 27), erigida por Ele e nascida de seu lado no
instante em que Longinus O atravessou com a lança. Ela é nossa Mãe, nossa luz,
o caminho da salvação, quem distribui os Sacramentos e quem nos santifica! Ela
está sempre disposta a nos perdoar, como o próprio Redentor perdoou ao bom
ladrão no alto da Cruz, oferecendo-nos a possibilidade de nos reerguermos e sem
permitir que esmoreçamos no caminho. Esta é a Santa Igreja Católica Apostólica
Romana, que tem como alicerce a promessa de seu Fundador: "tu és Pedro, e
sobre esta pedra edificarei a minha Igreja, e as portas do inferno não
prevalecerão contra ela" (Mt 16, 18)!
Bem-aventurado será quem
contemplar a vitória da luz sobre as trevas deste mundo, quando a Igreja
esmagar a cabeça da serpente maldita e brilhar em todos os continentes com
esplendor e glória jamais vistos. Será a plenitude dos efeitos do preciosíssimo
Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo derramado no Calvário e de sua Ressurreição
triunfante, que hoje a Igreja celebra jubilosamente.
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