Comentários
ao Evangelho VI Domingo da Páscoa – Ano C
As inexcogitáveis dádivas prometidas
pelo Salvador, antes de sua partida para a eternidade, têm como pressuposto o
amá-Lo e o guardar sua palavra. Aprofundar o conhecimento sobre essas promessas
e as condições para elas se cumprirem, é o objetivo destas páginas.
23 Se alguém Me
ama, guardará a Minha palavra e meu Pai o amará, e Nós viremos a ele, e faremos
nele a nossa morada. 24 Quem não Me ama não observa as minhas palavras. E a
palavra que ouvistes não é minha, mas do Pai que Me enviou.
25 Disse-vos
estas coisas estando convosco. 26 Mas o Paráclito, o Espírito Santo, que o Pai
enviará em meu nome, vos ensinará todas as coisas, e vos recordará tudo o que
vos disse.
27 Deixo-vos a
paz, dou-vos a minha paz; não vo-la dou como a dá o mundo. Não se perturbe o
vosso coração, nem se assuste. 28 Ouvistes que Eu vos disse: Vou e
voltarei a vós. Se vós Me amásseis, certamente vos alegraríeis de Eu ir para o
Pai, porque o Pai é maior do que Eu. 29 Eu vo-lo disse agora, antes que
aconteça, para que, quando acontecer, acrediteis (Jo 14, 23-29).
I —
Preparando a partida deste mundo
Zelo e benquerença, já antes de partir
“Partir c’est toujours mourir un peu!” Partir é sempre morrer um pouco,
dizem os franceses. Assim — apesar de vivermos na era do avanço total das
comunicações, na qual as distâncias quase já não existem — a despedida de um
ente querido sempre dói no coração. Muito mais ainda naqueles tempos do Império
Romano, nos quais as viagens eram demoradas, não havia telégrafo, telefone nem
internet. Acrescente-se a esses dados o fato de o destino para o qual ia o
Divino Mestre não ser outra cidade ou país, mas sim a eternidade.
Por isso mesmo, Jesus se esmera em
preparar de maneira exímia seus seguidores para as conseqüências resultantes de
sua ida definitiva para o Pai.
“Não se perturbe o vosso coração
...”, era o empenho zeloso e cheio de benquerença da parte de Jesus por seus
discípulos. E ... “nem se assuste”. Ele é carinhoso em extremo e quer
consolá-los o quanto pode, fazendo-os compreender, “antes que aconteça”, as enormes
vantagens oriundas de sua partida deste mundo.
Necessidade do afastamento de Jesus
Com efeito, os discípulos, após longo
tempo de íntimo e diário convívio com Jesus, guardavam uma figura ainda muito
humana do Redentor. E por isso tornava-se necessária sua Ascensão ao Céu, entre
outras razões, para o Espírito Santo infundir-lhes a verdadeira imagem a
respeito do Filho de Deus.
A esse propósito nos diz Santo
Agostinho: “Se Ele não se afastasse corporalmente, veríamos sempre seu corpo
através de olhos carnais e não chegaríamos a crer espiritualmente; e esta fé é
necessária para que, justificados e beatificados por ela e tendo o coração
limpo, merecêssemos contemplar esse mesmo Verbo de Deus em Deus” (1).
E em outra obra, ainda dirá o mesmo
Bispo de Hipona: “Bem conhecia Ele o que lhes era conveniente, porque era muito
melhor a visão interior com que lhes havia de consolar o Espírito Santo, não
estando em corpo visível aos olhos humanos, senão infundindo-se Ele mesmo no
peito dos crentes” (2).
É diante da perspectiva de Jesus
deixar os seus discípulos que a Liturgia de hoje aborda as mais belas
promessas por Ele feitas.
II — O
prêmio do amor: “E faremos nele a nossa morada”
23 “Se alguém Me
ama...”
O amor ocupa um lugar proeminente em
nossas relações com Deus. O próprio Jesus no-lo diz: “Amai ao Senhor vosso Deus
com todo vosso coração, com toda vossa alma e com todo vosso espírito. Este é o
maior e o primeiro dos mandamentos” (Mt 22, 37-38).
Em várias outras passagens, as
Escrituras Sagradas insistem sobre essa lei do amor a Deus: “Amai com todas as
vossas forças Àquele que vos criou” (Ecli 7, 32). “Amai ao vosso Deus toda
vossa vida e invocai-O para que vos salve” (Ecli 13, 18). “O amor é o pleno
cumprimento da Lei” (Rm 13, 10).
Podemos amar a Deus de uma forma
imperfeita, procurando agradar-Lhe com o objetivo de recebermos o prêmio da
glória eterna. Mas este amor é incompleto e fruto mais especificamente da
virtude da esperança, do que da caridade.
Para receber as dádivas prometidas
por Jesus no Evangelho de hoje, é preciso amar a Deus em razão de ser Ele quem
é, e não apenas com vistas a obter a recompensa reservada aos bons.
“... guardará a
minha palavra ...”
Com divina capacidade de síntese,
deduz o Salvador, logo a seguir, uma primeira conseqüência desse amor: a
submissão à voz de Deus.
Afirma Santa Teresinha: “Para o amor,
nada é impossível”. O fogo da caridade nos habilita, com efeito, para toda e
qualquer ação, tornando fácil a virtude da obediência, praticada pelo próprio
Jesus de forma tão exemplar.
Ele, durante os primeiros trinta anos
de sua existência, foi modelarmente submisso a Maria e José (cfr. Lc 2, 51). E
é comovedor acompanhar passo a passo as relações entre o Filho e o Pai, ao
longo da vida pública de Jesus. Não há uma só referência da parte d’Este na
qual não transpareça sua absoluta submissão: “O meu alimento é fazer a vontade
d’Aquele que Me enviou e realizar sua obra” (Jo 4, 34). “Descido Céu não para
fazer a minha vontade, mas sim a d’Aquele que me enviou” (Jo 6, 38). O Verbo se
fez carne, entre outras razões, para nos ensinar o valor incomensurável da
obediência.
Do Gênesis ao Apocalipse, reluzem os
exemplos da prática dessa virtude. Ora um Samuel admoesta ao rei Saul: “Acaso o
Senhor se compraz tanto nos holocaustos e sacrifícios como na obediência à sua
voz? A obediência é melhor que o sacrifício, e a submissão vale mais que a
gordura dos carneiros” (I Sam 15, 22). Ora aconselhará São Paulo aos Hebreus:
“Obedecei aos vossos pastores e sede-lhes sujeitos” (13, 17). Ou lembrará em
sua Epístola a Tito que “sejam sujeitos aos magistrados e às autoridades; que
lhes obedeçam, que estejam prontos para fazer o bem” (3, 1). Ou mesmo um Abraão
inteiramente disposto a imolar seu único filho Isaac, a fim de cumprir um
mandato divino (cfr. Gen 22, 1-12). E o que dizer de um Jó, de um Tobias ou da
própria mãe dos Macabeus? E de Maria Santíssima em seu “fiat”?
A obediência é, portanto, uma das
virtudes mais agradáveis a Deus, e em conseqüência, uma das mais necessárias.
São Bernardo e Santo Agostinho dizem ser ela indispensável até para a prática
da castidade, pois quem não se submete às ordens e desejos do superior, não
conseguirá reprimir a concupiscência da carne. Para sermos fiéis aos
Mandamentos da Lei de Deus, necessário é termos flexibilidade de espírito em
relação à vontade de nossos superiores.
“... e meu Pai o
amará ...”
Entretanto, esse amor a Jesus não
confere a quem o possui somente a fidelidade aos divinos ensinamentos. Dele se
origina um fruto muito mais precioso: “e meu Pai o amará”.
Se o amor a Deus nos traz tão grande
benefício, que se poderá dizer do fato de ser alguém objeto de seu amor?
São Tomás explica-nos, como sempre
com magistral lucidez, quão grande é a capacidade de difusão do bem, por sua
própria natureza (3). Quanto maior é a perfeição, mais tende ela a comunicar-se
plenamente. Desde os seres mais simples, como os minerais, até o sobrenatural,
há uma verdadeira sinfonia do dar-se em toda a ordem da criação.
Correm caudalosos os rios em busca
dos oceanos, fertilizando a terra por onde passam. E tanto as águas doces dos
lagos e rios, quanto as salgadas do mar, fornecem ao homem alimento em
profusão. O sol não cessa de fazer incidir seus calorosos e essenciais raios
sobre todo o orbe, dando brilho e vitalidade a tudo quanto diante dele se
apresenta. Os vegetais com suas substâncias, folhas, flores e frutos, embelezam
os panoramas, perfumam os bosques e jardins, oferecem-nos seu oxigênio e nos
agradam com seus sabores. As laboriosas abelhas produzem seu mel para alimento
e alegria dos homens. Os animais se multiplicam e tornam aprazíveis nossas
refeições e nossos entretenimentos. E a nota predominante dessa grande sinfonia
é sempre a superabundância.
No plano da humanidade, o grau de
comunicatividade do bem é ainda maior. Os pensadores, ou os artistas, desejam
invariavelmente dar amplo conhecimento de tudo que surge de suas mentes ou de
suas mãos. Uma alma, quanto mais se eleva nas vias da virtude, mais cresce no
empenho em fazer bem aos outros.
Ora, Deus é o Bem por excelência, o
Bem substancial, e por isso convém a Ele o comunicar-Se às criaturas em grau
também excelente e pleno (4). Eis o mais elevado aspecto do mistério da
Encarnação, ou seja, em Jesus, sua privilegiada e santíssima alma e seu sagrado
corpo constituem uma só Pessoa com o Verbo Eterno. N’Ele estão as propriedades
humanas e toda a essência divina. N’Ele, o amor do Pai chegou aos limites
infinitos. E, através da fé, colocou ao alcance dos homens a plenitude do Bem,
que é o próprio Deus, conforme os ensinamentos de Jesus a Nicodemos: “De fato,
Aquele a Quem Deus enviou fala palavras de Deus, porque Deus lhe dá o espírito
sem medida. O pai ama o Filho e pôs todas as coisas em sua mão. Quem acredita
no Filho tem a vida eterna” (Jo 3, 34-36). Mais tarde Jesus acrescentará: “A
vontade de meu Pai que me enviou é que todo o que vê o Filho e crê n’Ele, tenha
a vida eterna; e Eu o ressuscitarei no último dia” (Jo 6, 40).
E logo após Jesus, na ordem do ser, e
juntamente com Ele no plano divino e eterno da criação, encontra-se no mais
alto grau de santidade, enquanto objeto desse amor eficaz de Deus, a Virgem Maria.
Ela foi eleita para ser a Mãe do Verbo Encarnado, por estar penetrada do mais
excelente amor a Deus na ordem das puras criaturas e por ser a mais amada pela
Trindade Divina.
“... e Nós
viremos a ele, e faremos nele a nossa morada.”
No Antigo Testamento não se havia
chegado a uma clara noção da existência e da atuação das três Pessoas Divinas.
De forma transparente e sem margem de dúvidas, esse mistério nos é revelado por
Nosso Senhor Jesus Cristo e reafirmado em formulações distintas pelos Apóstolos
(5).
No evangelho deste VI domingo da
quaresma, o Redentor faz menção mais uma vez a este admirável mistério ao
utilizar a palavra “Nós”. E promete, ao mesmo tempo, estar presente na alma
daquele que O ama e cumpre seus preceitos. Assim, dirá São João em sua primeira
Epístola: “Deus é caridade, e o que vive na caridade permanece em Deus, e Deus
nele” (1Jo 4, 16); e São Paulo aos Coríntios: “Vós sois o templo de Deus vivo”
(2Cor 6, 16).
Como pôde Jesus prometer essa vinda
sobre aqueles que O amam e guardam a sua palavra, quando na realidade Deus já
se encontra presente em todas as suas criaturas?
O Criador, explica-nos São Tomás,
“está presente em todas as coisas e no mais íntimo delas (et intime)” (6). Ou
mais especificamente: “Deus está presente em todas as coisas por potência,
porque tudo está submetido ao seu poder. Está por presença, porque tudo está
patente e descoberto a seus olhos. E está por essência, porque atua em todos
como causa de seu ser” (7). Em face disso, como entender essa promessa de Jesus?
Nada difícil!
A dependência de todos os seres
criados em relação a Deus é absoluta, pois, além de receberem d’Ele a
existência, nela são constantemente sustentados em sua natureza. Deus cria e
conserva tudo quanto existe, inclusive o demônio, assim como o próprio inferno.
Ora, onde age um puro espírito, ali está ele presente. Portanto, Deus está
presente em toda parte.
Não é, porém, a essa presença que
Jesus faz referência neste versículo, mas sim a uma outra muito superior,
exclusiva aos filhos de Deus, e que supõe sempre a graça santificante (estado
de graça).
Note-se bem tratar-se aqui de uma
presença permanente, pois Jesus fala em estabelecer a morada da Santíssima
Trindade na alma que O ama e guarda sua palavra. É uma vinda do Pai e do Filho
— e, inseparáveis que são do Espírito Santo, também d’Este — espiritual e
íntima, como nos ensina Santo Agostinho: “Vem com seu auxílio, nós com a
obediência; vem iluminando-nos, nós contemplando-O; vem enchendo-nos de graças,
nós recebendo-as, para que sua visão não seja para nós algo exterior, mas
interno, e o tempo de sua morada em nós não seja transitório, mas eterno” (8).
Presença íntima de Deus, como Pai e como
Amigo
Com muita clareza e precisão
teológica, o grande teólogo Pe. Antonio Royo Marin, OP, resume a essência dessa
inabitação da Santíssima Trindade na alma do justo, afirmada por Jesus neste
versículo: “Presença íntima de Deus, uno e trino, como Pai e como Amigo. Este é
o fato colossal que constitui a própria essência da inabitação da Santíssima
Trindade na alma justificada pela graça santificante e pela caridade
sobrenatural.
“No cristão, a inabitação equivale à
união hipostática na pessoa de Cristo, se bem que não seja ela, mas sim a graça
santificante, a que nos constitui formalmente filhos adotivos de Deus. A graça
santificante penetra e embebe formalmente nossa alma, divinizando-a. Mas a
divina inabitação é como a encarnação em nossas almas do absolutamente divino:
do próprio ser de Deus tal como é em si mesmo, uno em essência e trino em
pessoas” (9).
Estas são as maravilhas do universo
sobrenatural que nos fazem, através das virtudes teologais, acompanhar
frutuosamente as revelações trazidas à terra pelo Verbo Encarnado: “para que
todos sejam um, como Tu, Pai, estás em Mim e Eu em Ti, para que também eles,
sejam um em Nós (...) Eu neles e Tu em mim, para que a sua unidade seja
perfeita “ (Jo 17, 21 e 23).
Depois de haver ensinado a grande
importância do amor a Deus, ou seja, da perfeita caridade, nos versículos
posteriores, Jesus estimula os discípulos à prática das duas outras virtudes
teologais: a da Fé e a da Esperança.
III —
Conclusão
A essa impostação de espírito nos
convida o Evangelho de hoje. Jesus não está visível entre nós, pois, há dois
milênios, subiu ao Céu. Entretanto, pelo sacramento do Batismo e pela ação do
Espírito Santo, sua figura se encontra delineada em nossas almas,
convidando-nos a amá-Lo com exclusividade. As graças nos amparam nesse caminho.
Toda a nossa existência gira em torno de dois únicos amores, pois não há um
terceiro: o amor a Deus levado até o esquecimento de si mesmo, ou o amor a si
próprio levado ao esquecimento de Deus.
Qual desses amores é praticado por
nossa era histórica, e quais as conseqüências correspondentes? Eis uma boa
questão para se considerar com toda seriedade por ocasião da Ascensão do Senhor
ao Céu, de onde virá julgar os vivos e os mortos, ou seja, os que amaram e os
que se recusaram a amar.
1)Obras de San Agustín,
BAC, t. VII, p. 568
2)Idem, t. XIV, p. 509
2)Suma Teológica III, q 1,
3)a 1; Contra Gentes: I. III, c XI, n. 1.
4)São Tomás nos ensina
5)ser tão eficaz o amor de Deus que chega a
6)infundir o bem na
7)criatura por Ele amada: “O amor de Deus cria
8)e infunde o bem” (Suma Teológica I, q. 20, a. 2).
5)Veja-se, por exemplo,
6)Mt, 28, 19; 2Cor 13,13;
7)ou IPe 1,2.
8)6) Suma Teológica I, q 8, a 1
9)7) Suma Teológica I, q 8, a 3
10)8) Santo Agostinho, apud Catena Áurea.
11)9) Somos hijos de Dios, BAC — Madri, 1977, pp. 47 e 48.
2)Idem, t. XIV, p. 509
2)Suma Teológica III, q 1,
3)a 1; Contra Gentes: I. III, c XI, n. 1.
4)São Tomás nos ensina
5)ser tão eficaz o amor de Deus que chega a
6)infundir o bem na
7)criatura por Ele amada: “O amor de Deus cria
8)e infunde o bem” (Suma Teológica I, q. 20, a. 2).
5)Veja-se, por exemplo,
6)Mt, 28, 19; 2Cor 13,13;
7)ou IPe 1,2.
8)6) Suma Teológica I, q 8, a 1
9)7) Suma Teológica I, q 8, a 3
10)8) Santo Agostinho, apud Catena Áurea.
11)9) Somos hijos de Dios, BAC — Madri, 1977, pp. 47 e 48.
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