Comentário
ao Evangelho Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo (Corpus Christi)
Naquele tempo, 11 b Jesus acolheu as multidões, falava-lhes sobre o
Reino de Deus e curava todos os que precisavam.
12 A tarde vinha chegando. Os doze apóstolos aproximaram-se de Jesus e
disseram: “Despede a multidão, para que possa ir aos povoados e campos vizinhos
procurar hospedagem e comida, pois estamos num lugar deserto”.
13 Mas Jesus disse: “Dai-lhes vós mesmos de comer”. Eles responderam:
“Só temos cinco pães e dois peixes. A não ser que fôssemos comprar comida para
toda essa gente”.
14 Estavam ali mais ou menos cinco mil homens. Mas Jesus disse aos
discípulos: “Mandai o povo sentar-se em grupos de cinquenta”.
15 Os discípulos assim fizeram, e todos se sentaram. 16 Então Jesus
tomou os cinco pães e os dois peixes, elevou os olhos para o céu, abençoou-os,
partiu-os e os deu aos discípulos para distribuí-los à multidão. 17 Todos
comeram e ficaram satisfeitos. E ainda foram recolhidos doze cestos dos pedaços
que sobraram.
O mais substancioso dos
banquetes
Ao criar o homem com
necessidade de se alimentar, quis Deus estabelecer na nutrição o sustento da
vida natural. Esta situação é imagem da vida da graça, cuja base também é um
alimento celeste: a Eucaristia.
I – A Alimentação é conatural ao homem
A vida no Paraíso
proporcionava ao homem inúmeros gozos e alegrias, pois a harmoniosa disposição
de todas as coisas o cumulava de bem-estar. Nossos primeiros pais
encontravam-se cercados de muitos privilégios concedidos por Deus, com vistas a
que a felicidade da existência terrena os levasse a amá-Lo de maneira mais
perfeita. Um desses deleites, quiçá pouco considerado, porém valioso, era a
facilidade com que podiam servir-se dos melhores alimentos. Ensina São Tomás de
Aquino1 que, sendo a alimentação parte do mandato divino (cf. Gn 2, 16), o
homem pecaria caso não comesse. Não era necessário, entretanto, trabalhar para
preparar o alimento, pois a própria natureza oferecia as mais deliciosas
iguarias, prontas para serem degustadas. Prova disso é que Adão, quando foi
posto fora do Éden, escutou de Deus estas duras palavras: “Ganharás o pão com o
suor de teu rosto” (Gn 3, 19). O castigo revela que antes ele o recebia sem
fadiga, embora não saibamos exatamente como isso se passava.
Com o pecado original, o
homem perdeu este e tantos outros benefícios, conforme recorda São João
Crisóstomo: “Foi como se Deus lhe dissesse: Eu te preparei, ao criar-te, uma
existência isenta de dores, de trabalho, de fadigas e inquietudes. Tu gozaste
de uma felicidade perfeita e, sem conhecer nenhuma das tristes sujeições do
corpo, gozaste em plenitude de todas as delícias da vida. Mas tu não soubeste
apreciar este feliz estado, e eis que Eu amaldiçoo a terra. Daqui em diante, se
não a trabalhares e não a cultivares, ela já não te dará como antes seus
diversos produtos; Eu inclusive acrescentarei, aos trabalhos e penosos labores,
as doenças e contínuas fadigas, de sorte que tu não possuirás coisa alguma
senão ao preço de teus suores, e esta tão dura existência será uma contínua
lição de humildade e uma lembrança de teu nada”.2
Apesar da severidade da
repreensão, Deus agiu com misericórdia e uniu a clemência ao rigor, não
submetendo a humanidade a uma alimentação mesquinha. Vemos que, ao longo dos
séculos, levando em conta essa necessidade do homem, foi Ele unindo as bênçãos
concedidas a um povo, a um grupo ou a uma família, à fácil e abundante produção
dos alimentos. Por exemplo, ao prometer aos judeus uma terra em sinal de
Aliança, ressaltou que nela correria “leite e mel” (cf. Ex 3, 8.17; Dt 6, 3; Nm
13, 27).
O alimento, alegria para o homem
A comida de boa
qualidade e farta proporciona alegria ao homem. Isso se verifica quando temos,
por exemplo, a possibilidade de ir a um bom restaurante e provar algum prato
especialmente saboroso: saímos dali satisfeitos e até generosos. Pitoresca é a
atitude de Santo Inácio de Loyola, que costumava convidar comprazido o jovem
Benedetto Palmio para participar de suas refeições pelo gosto de vê-lo comer
bem, estimulando-o a que o fizesse à vontade e sem se ruborizar.3 Além disso,
em qualquer cultura, quando alguém deseja comemorar um acontecimento social
importante, como uma formatura ou um casamento, costuma oferecer um banquete,
convidando familiares e amigos para festejar em torno da boa mesa. O alimento
possui a indispensável função de sustentar a vida e a saúde, é verdade, mas não
é este seu papel mais elevado, uma vez que tem a utilidade social de favorecer
o convívio dos que participam da mesma refeição. Ele torna possível um
particular entendimento entre as pessoas.
O príncipe de
Talleyrand, grande diplomata francês, quando tinha casos importantes a tratar
com representantes de outras nações mandava pedir ao rei que lhe cedesse seu
cozinheiro pessoal e se munia das melhores especialidades culinárias nacionais,
tais como vinhos, champanhes e queijos. E era durante uma festa, ao redor da
mesa repleta de iguarias, que resolvia os assuntos mais intrincados da alta
diplomacia. Uma espirituosa afirmação feita por ele a Luís XVIII, antes do
crucial Congresso de Viena, deixou consignada sua convicção da eficácia desse
método: “Sire, eu preciso mais de panelas do que de instruções escritas”.4 A
mesa é um meio de facilitar o convívio e amenizar os ânimos, coisa que nem
sempre se obtém com meras palavras. A Santa Igreja, portanto, com muita
propriedade, escolheu para a Solenidade de Corpus Christi a narração evangélica
na qual o próprio Criador do Céu e da Terra oferece àqueles que O seguiam uma
incomparável refeição. É prenunciadora do banquete espiritual de seu Corpo e
Sangue, no qual Ele é o Divino Anfitrião e ao mesmo tempo o Alimento. Poderá
haver em torno de uma mesa convívio mais íntimo e sublime?
II – Um milagre portentoso prepara a Eucaristia
O milagre da
multiplicação dos pães é o único que está relatado nos quatro Evangelhos,
pormenor bastante expressivo para indicar sua importância. O fato se situa no
período áureo da vida pública de Nosso Senhor e concorreu, em grande medida,
para consagrar em Israel sua fama de Profeta e Taumaturgo. Nessa ocasião Ele
partira acompanhado apenas pelos Apóstolos e Se encontrava na retirada região
de Betsaida Júlia, a nordeste do Lago de Tiberíades. Havia pouco ocorrera a
morte de São João Batista promovida por Herodes, Almoço de bodas em Yport, por
Albert Fourié cujas curiosas cogitações Museu de Belas Artes, Rouen (França) agora
se voltavam para o Divino Redentor, um Personagem infinitamente maior que o
Precursor. Por isso o governante estava à espreita de uma oportunidade para
aproximar-se de Jesus, motivado, ao que tudo indica, por levianas ou perversas
intenções. A sabedoria d’Aquele que sonda os rins e corações, no entanto, não
ignorava a astúcia deste homem, e “com esse rápido afastamento parece ter
querido evitar a vizinhança do tetrarca”,5 diz Fillion. Contudo, se o
pretensioso Herodes perdeu a ocasião desejada, o mesmo não aconteceu com o
povo, que logo ficou sabendo do paradeiro da barca do Mestre e pôs-se a caminho,
por terra, para encontrá-Lo.
A recompensa dos que procuram o Reino de Deus
Naquele tempo, 11b Jesus acolheu as multidões, falava-lhes sobre o
Reino de Deus e curava todos os que precisavam.
Qual foi a razão que
levou a multidão a seguir Nosso Senhor? Como narram os Evangelistas, não houve
um só doente que, ao aproximar-se d’Ele com fé, pedindo a cura, ficasse sem ser
atendido. Isso impressionava a opinião pública, dado que naquele tempo a medicina
ainda não atingira grande progresso, o que concorria para tornar os milagres
mais impactantes. Ele supria a ineficácia da ciência com um olhar, uma
imposição de mãos, um desejo ou um toque que fosse, e curava todos num só
instante. Aquela gente estava deslumbrada com os sinais divinos que
transpareciam na humanidade de Cristo e dava-se conta do quanto os ensinamentos
d’Ele mereciam todo crédito e acatamento e O seguia.
12 A tarde vinha chegando. Os doze Apóstolos aproximaram-se de Jesus e
disseram: “Despede a multidão, para que possa ir aos povoados e campos vizinhos
procurar hospedagem e comida, pois estamos num lugar deserto”.
Nosso Senhor ensinou:
“Buscai o Reino de Deus e a sua justiça e o resto vos será dado por acréscimo”
(Mt 6, 33). A multidão, em consonância com o conselho divino, acompanhava Jesus
naquela circunstância pela convicção de que Ele era um extraordinário Profeta.
Estavam desejosos de curas, sim, mas também buscavam a verdade, a doutrina,
queriam conhecer mais a Deus e as realidades eternas.
Os Apóstolos, porém,
encontravam-se preocupados com as providências materiais. Não atinavam que se o
Mestre curava daquela maneira podia também realizar outros milagres e quiçá
temessem ser mandados providenciar alimento para tão grande multidão. Por esse
motivo propõem logo a Nosso Senhor despedir o povo, numa fuga sutil dessa
responsabilidade. Ora, Ele podia perfeitamente matar a fome de todos, porque
quem cura um coxo, um cego ou um surdo-mudo é capaz de remediar também outra
“doença” muito mais leve chamada fome. Todavia, como o que Ele tinha em mente
era formar os Apóstolos, deu-lhes uma resposta surpreendente.
Nosso Senhor põe os Apóstolos à prova
13 Mas Jesus disse: “Dai-lhes vós mesmos de comer”. Eles responderam:
“Só temos cinco pães e dois peixes. A não ser que fôssemos comprar comida para
toda essa gente”. 14a Estavam ali mais ou menos cinco mil homens.
O Salvador ordenou aos
Apóstolos, então, que dessem de comer à multidão, para pô-los à prova, pois
sabia o que ia fazer (cf. Jo 6, 6). Mas eles, desconfiados, comentavam que,
como disse Filipe (cf. Jo 6, 7), mesmo se tivessem duzentas moedas de prata não
seria suficiente para comprar pão e distribuir um pedaço para ca da um
dos que ali estavam: cinco mil homens, além das mulheres e crianças, o que
perfazia um número bem maior. E ainda que possuíssem o dinheiro, onde encontrar
tamanha quantidade de pão à venda naquela hora tardia? Santo André inclusive
sublinha a situação, dizendo que o único vendedor de alimento no meio daquela
aglomeração era um menino que carregava cinco pães e dois peixes (cf. Jo 6,
8-9). “Acreditava” — comenta São João Crisóstomo — “que o Autor dos milagres
com pouco faria pouco, e com mais faria mais; o que, com toda clareza, não era
assim”.6
Sendo Deus, Nosso Senhor
tinha domínio absoluto sobre a matéria e podia tirar criaturas do nada, sem
necessitar dos cinco pães e dois peixes, uma vez que sua própria vontade era
suficiente para produzir o alimento que saciasse a multidão. “Com efeito,
era-Lhe fácil fazer surgir indistintamente, de muitos ou de poucos, uma grande
quantidade de pães, já que não precisava de matéria-prima”.7 No entanto, Ele
pediu aos Apóstolos o que estava ao alcance deles, embora fossem tão só esses
parcos víveres. Aprendamos, pelo exemplo que esta passagem nos oferece, a não
negar até o pouco que temos quando o pede Jesus, lembrando-nos de que este
pouco pode servir de pretexto para que Ele realize grandes maravilhas.
Mas Jesus disse aos discípulos: “Mandai o povo sentar-se em grupos de
cinquenta”. 15 Os discípulos assim fizeram, e todos se sentaram.
Nessa simples
recomendação, o Divino Mestre manifesta seu perfeito senso de ordem. Para
evitar febricitação ou correria, e para que a distribuição fosse feita com
calma e até de modo cerimonioso, dispõe que as pessoas se sentem em grupos.
Ademais, segundo observa também São João Crisóstomo, Ele agiu dessa maneira
“para mostrar que, antes de comer, deve-se agradecer a Deus”.8
Milagre que é imagem da Eucaristia
16 Então Jesus tomou os cinco pães e os dois peixes, elevou os olhos
para o céu, abençoou-os, partiu-os e os deu aos discípulos para distribuí-los à
multidão. 17a Todos comeram e ficaram satisfeitos.
Difícil é não relacionar
os gestos de Jesus nesta cena com aqueles que mais adiante adotaria para
instituir o Sacramento da Eucaristia. Ia Ele, com isso, preparando as multidões
para o grande mistério que seria revelado algum tempo depois. A magnitude do
milagre é indicada pelas palavras: “todos comeram e ficaram satisfeitos” ou,
como escreve São João, “tanto quanto queriam” (Jo 6, 11). Podemos supor que
cada um dos presentes também obteve, além da medida para matar a fome do
momento, uma quantidade excedente para levar para os seus lares. Tão imenso
benefício afluía, nas palavras de São Gregório de Nissa, “dos celeiros
inesgotáveis do divino poder”.9
17b E ainda foram recolhidos doze cestos dos pedaços que sobraram.
Mais uma vez o texto
evangélico deixa transparecer em Nosso Senhor o apreço pela ordem e até pela
limpeza, e o quanto Ele é amante da disciplina, não deixando as sobras pelo
chão. Foram recolhidos os pedaços restantes que encheram doze cestos. Quis
Jesus que o número coincidisse com o dos Apóstolos, para que eles mesmos
carregassem os fardos e comprovassem a dimensão do milagre de que antes
desconfiaram. “Isso ocorreu com vistas à instrução dos discípulos. […] Pelo
mesmo motivo aconteceu que o número de canastras fosse exatamente igual ao dos
discípulos. […] Não me admira apenas a grande quantidade de pães, como também,
e ao lado disso, a exatidão das sobras, de sorte que não fez com que sobrassem
nem mais nem menos, mas justamente o que queria”.10
Fica patente o poder de
Nosso Senhor Jesus Cristo sobre a matéria em geral, sobre o alimento e, em
concreto, sobre o pão, pelo modo com que Ele o multiplica conforme seus
desígnios, não permitindo sequer que os restos sejam menosprezados. Ao instituir
a Eucaristia, mais tarde, também não queria que os fragmentos do Pão consagrado
fossem tratados sem veneração, como pretendem certos incrédulos que defendem a
Presença Real nas Espécies Eucarísticas só durante o ato litúrgico. Igualmente
é digno de nota que Ele, por um princípio simbólico, não permitiu jogar nada
fora para nos ensinar que não se deve perder ninguém. Ainda que uma alma esteja
trilhando as vias do pecado, é preciso empreender todos os esforços para
recuperá-la, pois não é outro o divino anseio: “Daqueles que Me destes, Eu não
perdi nenhum” (Jo 18, 9).
Ele quis que o milagre
se desse com todas essas características para facilitar a compreensão do grande
dom que em breve lhes ofereceria: a Sagrada Eucaristia. Tendo demonstrado
possuir tamanho poder sobre o pão, tornava patente que, se o desejasse, poderia
retirar dele a substância original para dar lugar a seu Corpo, Sangue, Alma e
Divindade,11 embora permanecessem os mesmos acidentes — sabor, aparência,
textura, odor. Dessa forma, Jesus criava as condições para que as pessoas com
fé correspondessem à dádiva inigualável que, desde toda a eternidade, havia
preparado.
Continua no próximo post.
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