Comentários ao Evangelho da Solenidade da Natividade de São João Batista (Missa da Vigília) –
24 de Junho
5Nos
dias de Herodes, rei da Judéia, vivia um sacerdote chamado Zacarias, do grupo
de Abia. Sua esposa era descendente de Aarão e chamava-se Isabel. 6Ambos eram
justos diante de Deus e obedeciam fielmente a todos os mandamentos e ordens do
Senhor. 7Não tinham filhos, porque Isabel era estéril, e os dois já eram de
idade avançada.
8Em
certa ocasião, Zacarias estava exercendo as funções sacerdotais no Templo, pois
era a vez do seu grupo. 9Conforme o costume dos sacerdotes, ele foi sorteado
para entrar no Santuário, e fazer a oferta do incenso. 10Toda a assembleia do
povo estava do lado de fora rezando, enquanto o incenso estava sendo oferecido.
11Então apareceu-lhe o anjo do Senhor, de pé, à direita do altar do incenso.
12Ao vê-lo, Zacarias ficou perturbado e o temor apoderou-se dele.
13Mas o
anjo disse: “Não tenhas medo, Zacarias, porque Deus ouviu tua súplica. Tua
esposa, Isabel, vai ter um filho, e tu lhe darás o nome de João. 14Tu ficarás
alegre e feliz, e muita gente se alegrará com o nascimento do menino 15porque
ele vai ser grande diante do Senhor. Não beberá vinho nem bebida fermentada e,
desde o ventre materno, ficará repleto do Espírito Santo. 16Ele reconduzirá
muitos do povo de Israel ao Senhor seu Deus.
17E há
de caminhar à frente deles, com o espírito e o poder de Elias, a fim de
converter os corações dos pais aos filhos, e os rebeldes à sabedoria dos
justos, preparando para o Senhor um povo bem disposto”. Lc 1,5-17
Nos
fatos que circundam a milagrosa concepção e o nascimento do Precursor, vemos a
mão de Deus governando os acontecimentos, para sua maior glória.
A força da predestinação eterna
I – Predestinado desde toda a eternidade
Com a
celebração da Missa da Vigília, a Santa Igreja inicia a Solenidade da Natividade
de São João Batista, cuja figura ímpar mereceu ser elogiada pelos lábios do
próprio Salvador: “entre os filhos das mulheres, não surgiu outro maior que
João Batista” (Mt 11, 11). Ele é o único Santo — exceção feita de Nossa Senhora
— que é comemorado no dia de sua partida para o Céu, a 29 de agosto, e sobretudo
no de seu nascimento; privilégio este decorrente do fato de, já libertado das
cadeias do pecado original no seio materno, ter vindo a este mundo adornado
pela plena posse da graça santificante.1
Com efeito,
ele foi idealizado por Deus, desde toda a eternidade, para ser um varão-píncaro
que antecedesse o Homem-Deus na “plenitude dos tempos” (Gal 4, 4).
Deus nos concebeu desde todo o sempre
Cada um de nós
possui a noção clara de ter vindo ao mundo pelo concurso de um pai e de uma
mãe, a quem conhecemos
e amamos;
muitas vezes, porém, nos esquecemos de que, antes de sermos gerados fisicamente
por nossos pais, fomos concebidos e conhecidos por Deus a partir de um
“momento” impossível de ser determinado, já que o foi desde todo o sempre.
Nossa pobre inteligência não é capaz sequer de imaginar como é
a mente divina, na qual não existe passado nem futuro, e tudo é presente.
Saídos das
mãos de Deus, que cria diretamente cada alma, cabe-nos cultivar um relacionamento
fortíssimo com Ele, sem o qual não vivemos, por sermos seres contingentes. Se
não for assim, teremos as mesmas reações de uma criança abandonada que, embora
goze de algumas alegrias, ignora a felicidade de pertencer a uma família. Por
sua parte, longe de ser como uma mãe desnaturada que se desfaz do filho, Deus
jamais nos desampara e quer estabelecer um estreito contato conosco, conforme
lemos na Escritura: “Pode uma mulher esquecer-se daquele que amamenta? Não ter
ternura pelo fruto de suas entranhas? E mesmo que ela o esquecesse, Eu não te
esqueceria nunca” (Is 49, 15).
No nascimento
de São João Batista, torna-se patente sua predestinação a uma altíssima missão,
seguida de uma intensa proteção divina, como sublinham as leituras de ambas as
Missas desta Solenidade — a da Vigília e a do Dia —, que narram o chamado do profeta
Jeremias e o do profeta Isaías, perfeitamente aplicáveis ao Precursor: “Antes
de de
tua mãe, Eu te consagrei e te fiz profeta das nações” (Jr 1, 5); “o Senhor chamou-me
antes de eu nascer; desde o ventre de minha mãe, Ele tinha na mente o meu nome”
(Is 49, 1).
II – A perspectiva da fé
Na
consideração dos episódios narrados pelo Evangelho desta Vigília, notamos uma
peculiaridade que atrai de maneira especial nossa atenção: o modo pelo qual Deus
realiza as obras grandiosas.
Fatos que mudaram a História da humanidade
Com efeito,
desde a criação do homem e sua existência no Paraíso até o Juízo Final, nunca houve
lance de maior importância e transcendência para a História da humanidade do
que aquele que ali se dava. São João Batista, o maior dentre todos os nascidos
de mulher, é gerado em mãe estéril e, além disso, quando seus pais já eram
idosos; pormenores que conferem ao acontecimento um caráter inteiramente
prodigioso. Já o anúncio de sua concepção e de seu nascimento dão-se dentro de
um clima de mistério: Santa Isabel dá à luz assistida por Maria Virgem que, por
sua vez, estava já no terceiro mês da gestação do Menino Jesus, Segunda Pessoa
da Santíssima Trindade Encarnada.
O Precursor,
entretanto, não veio ao mundo circundado de toda glória, esplendor e poder —
dos quais goza agora na eternidade —, o que obrigaria a todos os que mais tarde
o escutassem a crer em sua palavra. Ao contrário, quando deu início à sua
missão ele se apresentou vestido de pele de camelo, gafanhotos eram seu
alimento, e apresentava características sui generis que exigiam de seus contemporâneos
um ato de fé. Assim sendo, todos esses fatos impressionantes se realizaram
dentro das aparências da normalidade, no decorrer comum da vida, e apesar de
terem sido muito comentados pelos parentes e vizinhos na ocasião, não parece que
estes tenham compreendido a fundo a dimensão sobrenatural que encerravam.
Em nossos
dias, graças à perspectiva e ao conhecimento que nos dão dois mil anos de
Tradição da Igreja, podemos discernir com mais clareza os aspectos místicos,
miraculosos e extraordinários de que estavam revestidos. Deles podemos obter
uma preciosa lição, ao considerar que, quando intervém, muitas vezes Deus não
revela toda a magnitude dos atos aos quais nos é dado assistir, para não
acontecer que, saindo de nosso estado de prova aqui na Terra, passemos a viver da
constatação, sem necessidade da fé, vindo a perder os méritos. E para que o
justo viva pela fé (cf. Hab 2, 4), Ele permite que atravessemos os vales da
aridez (cf. Sl 83, 7). Consideremos, pois, sob esse ponto de vista, os
versículos escolhidos pela Liturgia para a Vigília desta Solenidade.
Deus recompensa a santidade de um casal
5 Nos
dias de Herodes, rei da Judeia, vivia um sacerdote chamado Zacarias, do grupo
de Abias. Sua esposa era descendente de Aarão e chamava-se Isabel. 6 Ambos eram
justos diante de Deus e obedeciam fielmente a todos os mandamentos e ordens do
Senhor.
Depois de
situar no tempo a cena a ser narrada, o Evangelista descreve, em poucas palavras,
os principais predicados de São Zacarias e de sua esposa Santa Isabel, dentre
os quais se destaca o único que na verdade é essencial, por ser o que permanece
para a eternidade: ser justo diante de Deus e obedecer fielmente a todos os
mandamentos e ordens do Senhor. Acima de qualquer consideração humana, podemos concluir
que o olhar de Deus, ao pousar sobre aqueles santos esposos, os tornou dignos
de acolher o grande milagre que Ele Se propunha realizar, segundo comenta Santo
Ambrósio: “Um é o olhar dos homens e outro o de Deus; os homens veem o rosto,
Deus o coração. [...] O mérito perfeito está em ser justo diante de Deus”.2
A humilhação pública da esterilidade
7 Não
tinham filhos, porque Isabel era estéril, e os dois já eram de idade avançada.
Semelhante a
outras figuras célebres do Antigo Testamento, como Sara (cf. Gn 16, 1), Rebeca
(cf. Gn 25, 21), Raquel (cf. Gn 29, 31), a esposa de Manué (cf. Jz 13, 2) ou
Ana (cf. I Sm 1, 5), Isabel, tanto por natureza quanto pela já avançada idade,
estava impossibilitada de ser mãe. Sua condição era, por isso, de máxima
humilhação pública (cf. Lc 1, 25), porque naquele tempo — tão diferente de nossos
dias, em que o fato de ter muitos filhos significa um desastre para certos pais
—, a prole numerosa era sinal das bênçãos de Deus, e o contrário era
considerado causa de vexame e indício de castigo do Céu.3 A mulher estéril era
vista como uma espécie de pária na sociedade, em muitos casos tratada com
desdém (cf. Gn 16, 4; I Sm 1, 6-7), o que aumentava o sofrimento do casal. Tal
situação contribuiu para realçar mais a ação de Deus ao promover o milagre do nascimento
de São João Batista, que os episódios posteriores iriam confirmar.
Eis mais um
importante ponto a ser contemplado na Liturgia de hoje: ainda que estejamos
diante dos obstáculos mais claros e patentes, a vontade de Deus sempre
prevalece para realizar seus desígnios, pois para Ele nada é impossível (cf. Lc
1, 37).
Deus escolhe as cerimônias para se manifestar
8 Em
certa ocasião, Zacarias estava exercendo as funções sacerdotais no Templo, pois
era a vez do seu grupo. 9 Conforme o costume dos sacerdotes, ele foi sorteado
para entrar no Santuário, e fazer a oferta do incenso. 10 Toda a assembleia do povo
estava do lado de fora rezando, enquanto o incenso estava sendo oferecido.
Entre os
sacerdotes era costume tirar à sorte, a fim de dividir as diversas funções de
culto no Templo. Todos os dias, pela manhã e à tarde, um deles devia entrar no
Sancta para oferecer o incenso a Deus sobre o altar dos perfumes, que ficava em
frente ao Sancta sanctorum.4 Decerto os mais fervorosos experimentavam alguma ansiedade
interior, desejando ser escolhidos, pois aquele era um momento no qual o
ofertante se sentia assistido por graças e consolações especiais. No caso de
Zacarias, vemos como Deus se serviu desse sistema de sorteio para que ele fosse
agraciado e pudesse ser objeto da manifestação grandiosa que logo ocorreria.
Do átrio,
separado pela cortina que ocultava o lugar santo, o povo acompanhava o ritual
com preces, enquanto se formava uma linda nuvem de fumaça que escapava pelo
véu, e a fragrância do incenso, usado em quantidade generosa, pervadia todo o
ambiente. Os fiéis já sabiam, pela experiência, quanto tempo durava o
cerimonial, que não era muito demorado. Contudo, desta vez ele se estendeu mais
do que o habitual...
11
Então apareceu-lhe o Anjo do Senhor, de pé, à direita do altar do incenso.
Em vez de se
comunicar por meio de um sonho ou de lhe aparecer em casa ou em outro lugar, o
Anjo São Gabriel foi enviado a Zacarias para lhe transmitir a mensagem celeste
no exato instante em que ele, glorificando a Deus, ia renovar as brasas e os
aromas sobre a ara. Mostrava, deste modo, o valor que devemos dar ao altar do
Senhor, a serviço do qual estava Zacarias, e o quanto uma cerimônia litúrgica é
agradável a Deus. Colocou-se o Anjo à direita para dar maior realce e
importância àquele acontecimento, pois se aparecesse à esquerda seria menos nobre
e digno, e à frente voltaria as costas ao altar.
Neste ponto
transparece também o prêmio reservado por Deus aos que d’Ele se aproximam,
recolhendo-se e isolando-se na sua presença, em qualquer lugar apropriado, como
uma capela ou a sós no seu quarto (cf. Mt 6, 6), com o intuito de louvá-Lo.
Todas as vezes que tivermos uma necessidade, não devemos procurar a solução no
esforço humano, mas, sim, na oração. Deus saberá entrar em contato conosco e
falar de alguma forma em nosso interior, por meio de consolações ou até de
fenômenos místicos extraordinários.
Um temor fruto do relaxamento
12 Ao
vê-lo, Zacarias ficou perturbado e o temor apoderou-se dele.
A aparição
repentina de um Anjo causava pavor no Antigo Testamento, pois, segundo a crença
comum, era algo tão grandioso que anunciava a morte imediata de quem a
presenciava (cf. Jz 6, 22-23; 13, 21-22), conforme comentamos em artigo
anterior. Em Zacarias, porém, a perturbação e o temor demonstram que estava ele
um tanto entibiado no desempenho de suas funções sacerdotais, e talvez tivesse
esmorecido o “fervor de noviço” próprio aos principiantes no serviço do Senhor.
Se ele estivesse no auge do entusiasmo, tal não aconteceria; pelo contrário, a
visão ter-lhe-ia causado grande alegria. O homem tem medo do Anjo quando
negligencia a contemplação do sobrenatural e se volta para a consideração
concreta dos acontecimentos.
Sendo Zacarias
da estirpe sacerdotal, estava preparado para executar esse cerimonial e, nas
primeiras vezes que entrara para realizá-lo, com certeza sentira a
responsabilidade tremenda de ser um mediador entre Deus e o povo. No entanto,
aos poucos, arrastado pela grande tentação que muitas vezes assalta aqueles que
são incumbidos do ministério sagrado, acostumara-se à rotina e, como conhecia
de memória todos os detalhes do rito, cumpria seu encargo com uma atenção
secundária, perdendo a compenetração da grandeza do ato que realizava.
Preocupava-se talvez com os pequenos problemas da vida diária de seu tempo,
levando-o, quiçá, a acelerar o cerimonial, no desejo de concluí-lo o quanto antes...
Sua reação ao anúncio do Anjo, narrada nos versículos seguintes à passagem
selecionada para esta Vigília, mostra a falta de fé por parte de Zacarias
diante do panorama desvendado por São Gabriel (cf. Lc 1, 18), e confirma a possibilidade
de seu entibiamento.
Vivemos em permanente contato com o mundo invisível
O exemplo de
Zacarias abre diante de nossos olhos uma realidade que, com frequência, está
ausente de nossas cogitações: acostumados a viver dentro dos estreitos
parâmetros humanos, com facilidade nos esquecemos de que Deus não criou o
universo fechado, de modo a constituirmos um mundo à parte em relação ao mundo
invisível composto pelas criaturas espirituais. É bem o oposto. Estamos
ininterruptamente circundados por Anjos bons e maus, os quais formam uma única
sociedade com os homens. A doutrina católica nos ensina que os Anjos são numerosíssimos,
a ponto de São Tomás,5 recolhendo a opinião de muitos Padres da Igreja, aplicar
a parábola evangélica da ovelha que se perde, enquanto as outras noventa e nove
permanecem no campo (cf. Mt 18, 12; Lc 15, 4-7), à proporção existente entre
Anjos e homens. Cada homem, portanto, corresponderia a noventa e nove Anjos, o
que significa um número incontável para nossa mente tão limitada.
Ora, tanto os
Anjos, com suas boas inspirações, quanto os próprios demônios, através das
tentações, exercem seu papel dentro do estado de prova em que nascemos, pois
estamos nesta vida de passagem, para sermos experimentados e alcançar a glória
da visão beatífica. Por causa disso devemos cuidar de nunca agir como se nossa
existência transcorresse num plano meramente natural, mas manter o olhar
voltado para os horizontes da fé, com a convicção plena de que a todo momento
nos encontramos sob a influência dos Anjos ou dos demônios.
Assim
preparados, quando algum fato sobrenatural acontecer em nossa vida, tomá-lo-emos
com a naturalidade com a qual Maria Santíssima recebeu a visita de São Gabriel (cf.
Lc 1, 26-38). Ela não teve medo da aparição angélica, e só temeu que sua
humildade viesse a ser atingida se aceitasse o elogio do Arcanjo: “Ave, cheia
de graça” (Lc 1, 28); por isso o Evangelho nos diz que “Maria ficou perturbada
com essas palavras e começou a pensar qual seria o significado da saudação” (Lc
1, 29).
Deus manifesta sua bondade
13 Mas
o Anjo disse: “Não tenhas medo, Zacarias, porque Deus ouviu tua súplica. Tua
esposa, Isabel, vai ter um filho, e tu lhe darás o nome de João”.
O “não tenhas
medo” dirigido a Zacarias tem um sentido bem diverso daquele que mais tarde
seria dito a Nossa Senhora (cf. Lc 1, 30). A ele, embora seu estado de alma não
fosse o mais perfeito, como vimos, o Anjo tratou com extraordinária bondade, visando
transmitir-lhe uma graça de Deus que o deixasse inteiramente tranquilo e
sereno. A seguir, indicou-lhe que não havia motivos para recear, pois sua
presença ali se devia a ter sido ele enviado para comunicar-lhe uma grande
alegria: Deus ouvira sua súplica!
Sem dúvida,
como cabia dentro de sua função sacerdotal, cada vez que era escolhido para o
incensamento do altar dos perfumes ou para oferecer algum sacrifício, Zacarias
orava intercedendo pelo povo e, segundo alguns autores,6 naquele momento em que
o Anjo lhe apareceu, rogava ele de modo especial pela vinda do Messias. Outros,
todavia, como Maldonado,7 interpretam que ele implorava a Deus que, ademais,
tivesse piedade dele e de sua esposa, de maneira que Isabel pudesse ter um filho
e ambos ficassem livres da humilhação.
Com que grau
de fervor pedia Zacarias no instante em que foi ouvido? Podemos nos perguntar
se Deus costuma atender as orações na hora em que o ardor atinge seu máximo ou
quando este diminui. Por vezes acontece que, arrefecendo a devoção, Ele vem em
nosso auxílio para não perdermos todos os méritos e para provar que Ele não se
esquece de nós. Não obstante, devemos ser eximiamente fiéis em nossa vida de
oração, mantendo o entusiasmo aceso e rezando com constância.
Deste trecho
do Evangelho podemos inferir como Deus se apraz em escolher os fracos para realizar
obras extraordinárias, a fim de deixar patente quem está agindo. No caso de São
João Batista, a Providência permitiu que seus pais se encontrassem numa
situação de aflição para que, pedindo com insistência, Deus tornasse manifesto
seu poder e revestisse o nascimento do menino de um caráter místico, profético
e grandioso, e reconhecessem ser ele fruto de uma ação divina e não das leis
naturais. Se Isabel fosse mãe de muitos filhos talvez não houvesse marcado a
História, fazendo parte do Evangelho.
Também para
nós o ideal é colocarmo-nos nas mãos de Deus, numa posição de contingência e de
inteira confiança, pois a solução de todos os problemas, sobretudo dos que
parecem insolúveis, não virá de nossos esforços, mas da intervenção da Providência.
Um menino grande diante do Senhor
14 “Tu
ficarás alegre e feliz, e muita gente se alegrará com o nascimento do menino,
15 porque ele vai ser grande diante do Senhor. Não beberá vinho nem bebida
fermentada e, desde o ventre materno, ficará repleto do Espírito Santo. 16 Ele
reconduzirá muitos do povo de Israel ao Senhor seu Deus. 17 E há de caminhar à
frente deles, com o espírito e o poder de Elias, a fim de converter os corações
dos pais aos filhos, e os rebeldes à sabedoria dos justos, preparando para o
Senhor um povo bem disposto”.
A simples
notícia do nascimento de um filho varão já infundia enorme alegria no casal.
Entretanto, esse filho estava chamado para os mais altos desígnios. As palavras
do Anjo, anunciando a especialíssima vocação e santidade de vida do menino, já
continham esboçados os traços proféticos do Precursor, pois ele reconduziria
muitos israelitas ao Senhor. Dentre suas grandiosas características, estaria a
de possuir “o espírito e o poder de Elias”. Ou seja, o mesmo teor de graças, de
espírito e de mentalidade do Profeta por excelência, seriam dados a João Batista,
conferindo-lhe força para caminhar à frente do povo. “Ambos, com efeito, [Elias
e João]” — comenta São Beda — “viveram celibatários; ambos vestiram-se
rudemente; ambos passaram sua vida na solidão; ambos foram arautos da verdade; ambos
padeceram perseguição do rei e da rainha por defender a justiça: aquele, de
Acab e Jezabel; este, de Herodes e Herodíades; aquele, para não morrer nas mãos
dos ímpios foi arrebatado ao Céu em um carro de fogo; este, para não ser
vencido pelos ímpios no combate do espírito, foi chamado ao perfeito martírio pelo
Reino dos Céus”.8
É de se
perguntar por que São João Batista iria converter o coração dos pais aos filhos
e não o dos filhos aos pais. Com a intenção de criar as condições favoráveis
para a aceitação da chegada do Messias, o Precursor pregaria a vinda d’Ele com uma
perspectiva muito diversa da que até então era considerada pelo povo eleito:
uma doutrina nova, dotada de potência (cf. Mc 1, 27), dentro da qual as novas
gerações nasceriam e, sob o influxo do Espírito Santo, seriam interiormente
transformadas.
Os pais também
poderiam receber essa influência da graça, desde que abandonassem os velhos conceitos
errados e assimilassem os novos. Por isso teriam eles de converter seus
corações em relação aos filhos.
III – O “filão eliático”
O fato de
andar o menino à frente do povo “com o espírito e o poder de Elias” mostra com
muita clareza a constituição de um filão ligando o Profeta por excelência ao Precursor
do Messias, e unindo-os por uma missão análoga. Este “filão eliático”, que tem
origem no modo de ser, na paciência, na humildade e no zelo pela causa de Deus,
que caracterizavam Elias, bem podemos afirmar que se estende através dos varões
providenciais, daqueles que, como João Batista, desempenham seu papel histórico
“com o espírito e o poder de Elias”, e cruzam os tempos iluminando as lutas da
Igreja ao longo dos séculos. Tais profetas são escolhidos e formados pela
vontade divina para marcar os céus da História, de forma que a santidade,
discernimento, força, definição, decisão, ímpeto, impacto e demais dons que
ornam suas almas são privilégios concedidos por Deus, porque Ele o quer, no seu
constante desejo de se comunicar com os homens.
Na
convulsionada época em que vivemos, semelhante a uma noite profunda, devemos
pedir a graça de que esse espírito de Elias volte a brilhar sobre o mundo e,
tal como São João Batista anunciou a chegada do Salvador, seja para nós
proclamado o triunfo de Maria e a fundação de uma nova e maravilhosa era
histórica.
1)
Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. III, q.27, a.6.
2)
SANTO AMBRÓSIO. Tratado sobre el Evangelio de San Lucas. L.I, n.18. In: Obras.
Madrid: BAC, 1966, v.I, p.62-63.
3)
Cf. TUYA, OP, Manuel de; SALGUERO, OP, José. Introducción a la Biblia. Madrid:
BAC, 1967, v.II, p.318; RENIÉ, SM, Jules-Edouard. Manuel d’Écriture Sainte. Les
Évangiles. 4.ed. Paris: Emmanuel Vitte, 1948, t.IV, p.258.
4)
Cf. LAGRANGE, OP, Marie-Joseph. Évangile selon Saint Luc. 4.ed. Paris: J.
Gabalda, 1927, p.12-13; RENIÉ, op. cit., p.227-228; 258.
5)
Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO, op. cit., I, q.50, a.3; Super Matthæum. C.XVIII,
lect.2; Catena Aurea. In Lucam, c.XV, v.1-7.
6)
Cf. RENIÉ, op. cit., p.258-259; LAGRANGE, op. cit., p.15, nota 13.
7)
Cf. MALDONADO, SJ, Juan de. Comentarios a los Cuatro Evangelios. Evangelios de
San Marcos y San Lucas. Madrid: BAC, 1951, v.II, p.269-271.
8)
SÃO BEDA. Homilías sobre los Evangelios, 2, 23, apud ODEN, Thomas C.; JUST,
Arthur A. La Biblia comentada por los Padres de la Iglesia. Evangelio según San
Lucas. Madrid: Ciudad Nueva, 2000, v.III, p.50.
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