Comentários ao Evangelho 15º Domingo do Tempo Comum – Ano C – Lc 10,
25-37
25 Então, levantou-se um doutor da Lei, que Lhe disse para O
experimentar: "Mestre, que devo eu fazer para alcançar a vida eterna?"
26 Jesus respondeu-lhe: "O que é que está escrito na Lei? Como lês
tu?" 27 Ele respondeu: "Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu
coração, com toda a tua alma, com todas as tuas forças e com todo o teu
entendimento, e o teu próximo como a ti mesmo." 28 Jesus disse- lhe:
"Respondeste bem: faze isso e viverás." 29 Mas ele, querendo
justificar-se, disse a Jesus: "E quem é o meu próximo?". 30 Jesus,
retomando a palavra, disse: "Um homem descia de Jerusalém para Jericó, e
caiu nas mãos dos ladrões que o despojaram, o espancaram e retiraram-se,
deixando-o meio morto. 31 Ora aconteceu que descia pelo mesmo caminho um
sacerdote que, quando o viu, passou de largo. 32 Igualmente um levita, chegando
perto daquele lugar e vendo-o, passou adiante. 33 Um samaritano, porém, que ia
de viagem, chegou perto dele e, quando o viu, encheu-se de compaixão. 34
Aproximou-se dele, ligou-lhe as feridas, deitando nelas azeite e vinho; e,
pondo-o sobre o seu jumento, levou-o a uma estalagem e cuidou dele. 35 No dia
seguinte tirou dois denários, deu-os ao estalajadeiro e disse-lhe: "Cuida
dele; quanto gastares a mais, eu to pagarei quando voltar. 36 Qual destes três
te parece que foi o próximo daquele que caiu nas mãos dos ladrões? 37 Ele
respondeu: "O que usou de misericórdia com ele." Então Jesus
disse-lhe: "Vai e faze tu o mesmo." (Lc 10, 25-37)
A Lei mandava
amar o próximo como a si mesmo. Os judeus, porém, limitavam o conceito de
próximo, de forma a restringir essa importante obrigação. Jesus vem dar o
verdadeiro sentido à Lei.
I - O principal objeto do pensamento, ontem e hoje
"Falhou o motor do
carro, acabou a energia elétrica, os bancos entraram em greve, foi lançado um
novo tipo de software, afinal a ciência encontrou a substância preventiva
contra o câncer"... e, se tempo e espaço houvesse, poderíamos encher
páginas e páginas com os assuntos que no mundo atual absorvem exageradamente a
atenção da humanidade. Deus deixou de ser a preocupação principal de quase
todas as pessoas para dar lugar a um desenfreado egocentrismo. A agitação
passou a ser a nota tônica do dia-a-dia em toda a face da terra, o
relacionamento humano e a própria estrutura da vida social já não mais
facilitam a elevação do pensamento a Deus.
A esse respeito, a situação
do gênero humano era bem diversa na época da Jesus; apesar da grande decadência
na qual estava ele mergulhado, o empenho em conhecer idéias era mais notório.
No povo judeu, em concreto, a apetência por explicitações doutrinárias,
sobretudo quando estreitamente ligadas com a religião, era robusta e
contagiante. Um exemplo característico deste estado de espírito ocorre com o
legista que, no Evangelho de hoje, se levanta para fazer uma pergunta a Nosso
Senhor. Por mais que seu intento não fosse inteiramente isento de segundas
intenções, o questionamento exposto por ele deixa transparecer qual era o teor
dos assuntos tratados nas conversas comuns daquele período histórico.
Contexto do diálogo entre Jesus e o doutor da Lei
Esse fato narrado por
Lucas deve ter-se passado por volta do mês de outubro do ano 29, portanto no
último da vida pública de Jesus, um pouco antes da festa dos Tabernáculos.
Recém terminara o treinamento dos setenta e dois discípulos pelas aldeias da
Peréia, região calma e um tanto recolhida, na qual não chegava a acontecer nada
semelhante às hostilidades características da Judéia. Jesus escolhera com
divina sabedoria a região onde eles deveriam realizar suas primeiras aventuras
apostólicas. Ademais, por ali, os Apóstolos e discípulos não tinham nenhum laço
de amizade ou de parentesco com os seus beneficiados, como na Galiléia,
tornando assim mais fácil sua ação. Provavelmente, os fatos do Evangelho de
hoje se verificaram em Jericó e se inserem na atmosfera de alegria reinante
entre todos, pelas excelentes novidades transmitidas por eles e comentadas pelo
Divino Mestre, pois "até os demônios se nos submetem em teu nome!"
(Lc 10, 17). Aqueles simples pescadores, que haviam abandonado o comércio de
peixes para lançar as redes no mar das almas, foram eleitos não para prever,
nem somente para comprovar, mas para serem os anfitriões de uma nova era.
É nesse quadro histórico
que se desdobra o diálogo contido no Evangelho de hoje.
II - Malévolas intenções dos doutores da Lei e dos fariseus
25 Então, levantou-se um doutor da Lei, que Lhe disse para O
experimentar: "Mestre, que devo eu fazer para alcançar a vida
eterna?"
A pergunta feita pelo
doutor da Lei é praticamente a mesma relatada tanto por São Mateus (22, 35),
como por São Marcos (12, 28). Porém, ao lermos os três Evangelhos, damo-nos
conta de serem cenas diferentes. Esta de São Lucas (da Liturgia de hoje), como
foi dito anteriormente, deve ter-se passado em Jericó e, levando em conta o
consagrado costume durante as exposições e pregações realizadas nas sinagogas -
ou seja, todos os assistentes participavam sentados e, ao surgir uma pergunta,
esta deveria ser pronunciada de pé - tudo indica ter-se dado no interior desse
ambiente.
O anseio mal-disfarçado
desse doutor da Lei de apanhar Jesus em algum lapso, transparece na essência e
na forma da pergunta. Se alcançasse êxito em seu intento, teria satisfeito seu
amor próprio. Provavelmente se tratava de um fariseu ainda não penetrado das
malévolas intenções daqueles que, mais tarde, procurariam pretexto para
matá-Lo. São Cirilo é categórico em afirmar que "certos charlatães
percorriam todo o território judaico lançando acusações contra Cristo e dizendo
que Ele qualificava de inútil a Lei de Moisés e ensinava doutrinas novas.
Querendo, pois, aquele doutor da Lei induzir Jesus a dizer algo contra a Lei de
Moisés, apresenta- se tentando-O, chamando-O de Mestre, não suportando ser
ensinado. E como costumava o Senhor falar da vida eterna a todos quantos vinham
a Ele, o doutor da Lei servia-se de suas próprias palavras; e como O tenta com
astúcia, não ouve outra coisa a não ser o que Moisés tinha ensinado. Por isso,
Jesus respondeu-lhe:‘O que é que está escrito na Lei? Como lês tu?'" (1).
O objetivo desse doutor da Lei era de pôr à prova os conhecimentos de Jesus e
estabelecer com Ele uma polêmica da qual, sendo doutor, sairia triunfante. Esta
suposição se deduz da segunda pergunta feita pelo mesmo personagem a Jesus. O
fato de este encaminhar a conversa para um ponto muito discutido entre os
rabinos deixa claro esse seu intuito.
Até os fariseus se preocupavam com a vida eterna... E hoje?
26 Jesus respondeu-lhe: "O que é que está escrito na Lei? Como lês
tu?" 27 Ele respondeu: "Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu
coração, com toda a tua alma, com todas as tuas forças e com todo o teu
entendimento, e o teu próximo como a ti mesmo."
Em Marcos encontramos
idêntica pergunta feita pelo moço rico, à qual Jesus responde com um elenco
sintético das virtudes obrigatórias para todos (cf. 10, 17ss). No caso
presente, o doutor da Lei não obtém d'Ele senão uma outra interrogação como
resposta. O Divino Mestre lhe propicia a prática da virtude da humildade,
remetendo-o ao primeiro Mandamento da Lei de Deus, fato desagradável para um
teólogo de fama: o ter de retornar ao Catecismo. Esse procedimento de Jesus não
poderia ser melhor, pois desse modo facilitava ao seu interlocutor um passo a
mais na sua vida espiritual: o verse na contingência de repetir a frase que
todo judeu recitava duas vezes ao dia: "Amarás o Senhor teu Deus com todo
o teu coração, com toda a tua alma, com todas as tuas forças" (Dt 6, 5). E
como não lhe ficaria bem dizer tão pouco, ele resolve acrescentar um
complemento para, talvez, fazer assim notar diante dos outros sua erudição:
"Amarás teu próximo como a ti mesmo" (Lv 15, 18). Com sabedoria
comenta este versículo o famoso Maldonado: "Com admirável prudência,
Cristo remete para a Lei aquele doutor que fingia ignorância e pretendia
explorar sua doutrina. Costumava assim proceder quando Lhe faziam perguntas
capciosas, para atenuar o efeito desagradável de sua resposta. Remetia, pois,
para a Lei, e era esta que condenava quem dela se vangloriava" (2).
Se fôssemos nos deter na
consideração de cada uma das palavras do Deuteronômio (6, 5) espaço não
haveria. Basta-nos saber que o verbo empregado nas versões latinas, não é amare
mas diligere. Este termo diz respeito ao amor sentido que resulta da soma da
vontade espiritual e do sentimento.
Apesar do lamentável
estado moral e espiritual do povo naquelas circunstâncias históricas, as
pessoas se colocavam diante da problemática da salvação eterna: "... que
devo fazer para possuir a vida eterna?" Muito diferentemente de nossos
dias, pois quem hoje se preocupa com seu destino após a morte? Atualmente, o
empenho por conservar não só a saúde, como também a beleza, uma bem sucedida
situação financeira, etc., absorve todas as atenções; o nosso futuro após
ultrapassarmos as barreiras do tempo é matéria de total desinteresse. Assim, os
patrões não zelam pela formação espiritual de seus empregados; os pais, pela de
seus filhos; os professores, pela de seus alunos; etc. Rompem com o gravíssimo
dever imposto a eles por Deus de serem mestres junto a outros...
São Basílio, atendendo
às aspirações dos fiéis de seu tempo, deixou-nos uma belíssima interpretação a
respeito do amor a Deus: "Se alguém nos perguntar como se pode adquirir o
amor divino, responderemos que não se aprende este amor.
Não aprendemos de outrem
a nos alegrarmos com a presença da luz, nem a amar a vida, nem a amar nossos
pais ou nossos amigos; nem, muito menos, podemos aprender as regras do amor
divino; mas há em nós um sentimento íntimo, o qual tem suas causas intrínsecas
e nos predispõe a amar a Deus. E quem obedece a esse sentimento põe em prática
a doutrina dos preceitos divinos e atinge a perfeição da divina graça. Amamos
naturalmente o bem; amamos também nossos próximos e parentes; ademais, damos
espontaneamente aos benfeitores todo o nosso afeto. Se, pois, o Senhor é bom, e
todos desejam o bom, aquilo que se aperfeiçoa por nossa vontade reside
naturalmente em nós. A Ele, embora não O conheçamos por sua bondade, no simples
fato de que d'Ele procedemos, temos obrigação de amá-Lo sobre todas as coisas,
como sendo o nosso princípio. É também maior benfeitor do que todos os que se
amam naturalmente. Por conseguinte, o primeiro e principal mandamento é o de
amar a Deus" (3).
Quem mais próximo do que Jesus?
28 Jesus disse-lhe: "Respondeste bem: faze isso e viverás." 29
Mas ele, querendo justificar-se, disse a Jesus: "E quem é o meu
próximo?"
O pobre doutor da Lei se
via numa situação de inferioridade - muito útil, aliás, para a sua vida
espiritual - e procurou justificar-se, pois nada pior do que o silêncio diante
do público que o circundava. Qualquer bobagem cairia melhor. O próprio Pilatos,
em circunstâncias análogas, também optou por perguntar : "O que é a
verdade?"
"Finge, pois, o
doutor que não está perguntando uma coisa tão vulgar e conhecida de todos, mas
sim um ponto difícil e discutido entre os mais insignes doutores (...). Por
outro lado, Santo Ambrósio, Teofilato, Eutímio e (segundo São Tomás) São Cirilo
opinam que ele propôs formalmente essa questão por pensar que próximos eram só os
justos com respeito a ele, que se considerava justo" (4).
Em síntese, o seu desejo
de demonstrar ter inteiro cabimento sua primeira pergunta o leva a enunciar
esta outra que, nos dias atuais, com facilidade qualquer criança de Catecismo
responderia. Entretanto, naquela quadra histórica constituía uma questão
inextricável. As origens familiares, as classes sociais, o regionalismo, a
nacionalidade, a raça, eram fatores de separações estanques. Não nos esqueçamos
de mencionar a terrível discriminação da escravidão, consagrada em todas as
legislações da época. Ora, o povo mais afetado por esse espírito de separatismo
era o judeu. Basta correr os olhos pelo Talmud para comprovar os extremos a que
chegou contra os goyim, ou seja, todos os não judeus. Muito comum era o juízo
de que só os do povo eleito eram chamados à salvação eterna. Ademais, baseados
no Levítico: "não guardarás rancor contra os filhos de teu povo" (Lv
19,18), não concebiam que a amizade pudesse transpor os limites da
nacionalidade.
Porém, "daí não se
segue que ele tenha feito a pergunta com sinceridade e desejo de aprender,
porque, embora ignorando, estava convencido de que sabia" (5) e a tal
ponto que a Escritura não deixava margem a dúvida de como tratar ao não-judeu:
"Se algum estrangeiro habitar na vossa terra, e morar entre vós, não o
impropereis; mas esteja entre vós como um natural; e amai-o como a vós mesmos;
porque também vós fostes estrangeiros na terra do Egito" (Lv 19, 33-34).
Por outro lado, vemos
esse doutor numa situação paradoxal: "Naquele mesmo instante se encontrava
um próximo extraordinariamente especial, ou seja, o próprio Deus! Por isso, ao
fazer essa pergunta, deixa claro (...) que não conhecia seu próximo, porque não
acreditava em Cristo, e quem não conhece Cristo desconhece a Lei; porque,
ignorando a verdade, como pode conhecer a Lei que anuncia a verdade?" (6).
Talvez a isso o tivesse
levado seu orgulho pouco ou nada combatido. "Elogiado pelo Salvador, por
ter respondido bem, o doutor da Lei encheu-se de soberba, não acreditando
existir alguém que pudesse ser seu próximo, como se não houvesse quem fosse
capaz de equiparar-se a ele em justiça. Por isso diz: ‘Mas ele, querendo
justificar- se, disse a Jesus: E quem é o meu próximo?' Assediavam-no, por
assim dizer, alternativamente, os vícios: após a falácia com que fizera a
pergunta, tentando, cai na arrogância. Ao perguntar: ‘Quem é o meu próximo?',
já se mostra vazio do amor ao próximo e, em conseqüência, revela-se vazio do
amor divino, pois, não amando o irmão a quem vê, não pode amar a Deus a quem
não vê" (7).
Os escribas e fariseus -
que alimentavam entre si, dia-a-dia, sua indignação contra os gentios, como até
mesmo à própria plebe judaica - iriam ouvir do Mestre uma clara e irrefutável
lição, cheia de calor, de como se deve tratar o próximo...
III - A parábola: Quem é, afinal, o meu próximo?
30 Jesus, retomando a palavra, disse: "Um homem descia de Jerusalém
para Jericó, e caiu nas mãos dos ladrões que o despojaram, o espancaram e
retiraram-se, deixando-o meio morto."
Quantas escolas e cursos
de didática se multiplicam por todo o orbe! Entretanto, é impossível superar
aquela empregada pelo Divino Mestre em sua vida pública. A criação da figura do
Bom Samaritano é simplesmente genial. A própria descrição das circunstâncias
geográficas nas quais o caso se verifica é de um colorido tão real que por
pouco não julgamos tratar- se de um fato histórico.
Jerusalém dista de
Jericó, aproximadamente, trinta quilômetros e, entretanto, a diferença de
altitude entre uma e outra cidade quase atinge seus mil metros. Ao
empreender-se o caminho partindo de Jerusalém, depois de percorrer uns três
quilômetros, chega-se a Betânia, após a qual termina a vegetação e uma região
bem rochosa se evidencia por longa extensão. A certa altura, nos dias de hoje,
encontra-se uma hospedaria com o nome de "Bom Samaritano", ao que
parece, para fazer jus à parábola. Tudo leva a crer que de fato deve ter sido
esse o local descrito pelo Senhor, pois ao longo dos séculos multiplicaram-se
ali os assaltos, e não só à noite, mas em plena luz do dia. Ademais, existem
ainda, não muito distante desse albergue, as ruínas de uma fortaleza, prova
evidente do quanto devia ser perigoso o local.
O Evangelho sempre
procura ser sintético, motivo pelo qual muitos aspectos, talvez secundários, de
suas narrações não passam para a História. Por isso, não é exagero imaginarmos
o quanto os detalhes psicológicos e geográficos foram cuidadosamente elaborados
pelo Senhor.
Por esse caminho descia
supostamente um judeu, pois, não tendo sido mencionada sua raça, por exclusão
só podia tratar-se de um co-nacional do levita e do sacerdote que o sucederiam
após o assalto. Entretanto, como veremos, essa imprecisão tem sua razão de ser.
Das cavernas, ou de trás das rochas, surgem uns assaltantes que despojam o
pobre homem e, certamente por ter ele reagido, aplicam-lhe severos golpes,
abandonando-o quase sem vida em meio ao seu próprio sangue, impedido, portanto,
de seguir seu curso normal.
Uma vez delineada a
dramática situação desse homem e a fuga dos bandidos, a cena se enriquece com
três personagens mais: um sacerdote, um levita e o samaritano.
O sacerdote e o levita violam a Lei, por terem o coração endurecido
31 Ora aconteceu que descia pelo mesmo caminho um sacerdote que, quando
o viu, passou de largo. 32 Igualmente um levita, chegando perto daquele lugar e
vendo-o, passou adiante.
A nacionalidade judaica
e a respectiva religião eram os mais elevados pressupostos de honra de todo o
povo eleito. Ora, aquele ferido possuía essas características essenciais, e
vê-se claramente qual foi a intenção do Divino Mestre ao ideá-lo como vítima,
pois o sacerdote ao se aproximar apenas o verá e passará adiante. Deduz-se que
ele havia terminado seu serviço no Templo e retornava a Jericó onde residiam
muitos dos de sua categoria. Não podia ser mais providencial esse encontro
fortuito. A Lei determinava como obrigação grave socorrer qualquer acidentado,
sobretudo em estado pré-agônico.
Religião, nacionalidade,
desamparo, nada moveu aquele duro coração de um ministro de Deus chamado ao
heroísmo da caridade. Não é difícil imaginarmos os raciocínios que
provavelmente elaborou a partir de então e ao longo do caminho, para
tranquilizar sua atormentada consciência: "É um homem qualquer! Um
desconhecido, sem títulos. É melhor nem me deter, para não rebaixar minha condição".
Eram as razões ditadas pelo orgulho mal-combatido, e não tão raro, naqueles que
tinham por vocação a missão de extirpar esse mesmo vício nos outros e em si
próprios. Ademais, se a humildade fosse sua companheira, nada lhe custaria,
ainda que por puras palavras, procurar confortar aquele pobre hebreu. Um
pequeno desvio, sem muito deter-se, foi todo o seu esforço. "Assueta
vilescunt", diz-se em latim; ele estava calcinado por uma rotina entibiada
de suas funções litúrgicas no Templo, como também intoxicado pela hipocrisia
dos escribas e fariseus.
Não lhe devia ser
estranho um certo cálculo dos gastos a serem efetuados, caso ele se propusesse
socorrer aquela vítima roubada, despojada e ensanguentada. Nem sequer poderia
contar com uma recompensa e, menos ainda, com a recuperação do dinheiro
empregado. Nada poderia esperar em retribuição aquele ministro pela perda de
tempo, incomodidade, prejuízo, etc. Manifestou- se robusto seu caráter
interesseiro de um vil pragmatismo diante daquele drama.
No extremo oposto da
bondade, encontramos ao longo da História corações duros, cruéis e difíceis de
se deixarem enternecer pelos necessitados. Nada os move à compaixão. Ali
"por acaso, descia" um exemplo vivo dessa empedernida
insensibilidade.
Aquela cena,
entrecortada por gemidos que imploravam socorro e misericórdia, mais inspirava
repulsa e náusea do que pena, naquele coração pervadido de amor próprio.
Porém, a Lei era
explicitamente contrária aos seus sentimentos de egoísmo (cf. Ex 23, 5), e ele
não podia ter abandonado seu irmão, sobretudo naquelas circunstâncias.
As mesmas considerações
serviriam para caracterizar a atitude idêntica do levita que, logo a seguir,
também passou por ali. Ambos provavelmente haviam deixado o Templo após o término
de seu expediente te e desciam para Jericó, cidade que abrigava a metade dos
servidores religiosos.
Misericórdia do samaritano
33 Um samaritano, porém, que ia de viagem, chegou perto dele e, quando o
viu, encheuse de compaixão. 34 Aproximou- se dele, ligou-lhe as feridas,
deitando nelas azeite e vinho; e, pondo-o sobre o seu jumento, levou-o a uma
estalagem e cuidou dele. 35 No dia seguinte tirou dois denários, deu-os ao
estalajadeiro e disse-lhe: "Cuida dele; quanto gastares a mais, eu to pagarei
quando voltar".
Bem diferente foi a
reação do samaritano. Sem levar em conta o ódio racial que violentamente os
separava, apesar de se tratar de um inimigo seu, sua religiosa
incompatibilidade se transformou, no mesmo instante, em comiseração. O
Evangelho recolhe os maravilhosos detalhes da divina parábola elaborada por
Jesus para o doutor da Lei: o samaritano se manifesta um herói da caridade
desde o descer de sua montaria, aplicando in loco todos os cuidados cabíveis
naqueles tempos, conduzindo a vítima a uma pousada, até o contrair uma dívida
com o estalajadeiro, a fim de que este dispensasse todos os cuidados ao pobre
judeu. Percebe-se, pelo contrato proposto e aceito, ser ele um mercador de
confiança e muito estimado pelo dono da estalagem.
36 Qual destes três te parece que foi o próximo daquele que caiu nas
mãos dos ladrões? 37 Ele respondeu: "O que usou de misericórdia com
ele." Então Jesus disse-lhe: "Vai e faze tu o mesmo."
Novamente, Jesus
responde ao doutor da Lei com outra pergunta, parecendo à primeira vista
desejoso de desviar-se um tanto da substância da temática proposta pelo
consulente. Esse aparente desvio da questão, intencionalmente levado a cabo
pelo Divino Mestre, é uma quimera que atrai a atenção da maioria dos
comentaristas, dando-lhes ocasião para levantar as mais variadas hipóteses.
Trazemos à tona a mais sábia e lúcida delas:
"No meu entender,
Cristo pretende demonstrar de modo geral que todo homem é nosso próximo; mas o
faz de modo adaptado àquele doutor com quem estava tratando. Pensava este que
só os justos, ou só os amigos, ou ao menos só os judeus, eram seus próximos. E
das próprias palavras da Lei teve ocasião de errar, porque no hebraico próximo
significa o mesmo que amigo e companheiro. Quis, pois, Cristo tirá-lo desse
erro e obrigá-lo a reconhecer e confessar que próximo não era só o judeu para o
judeu, mas também o samaritano para o judeu, isto é, o inimigo para o inimigo.
E se o próprio inimigo era próximo para o inimigo, todo homem deve se
considerar próximo em relação ao outro. Demonstrou isso com a melhor e mais
eficaz argumentação, ou seja, pelo efeito, fazendo ver que o inimigo tinha sido
próximo para o inimigo, isto é, o samaritano para o judeu, pois fez o que é
característico do próximo, que é ajudar. Por isso Cristo propôs a parábola com
o exemplo de um samaritano" (8).
No mesmo sentido, opina
um conhecido comentarista moderno:
"A pergunta de
Cristo foi feita com intenção especial. Perguntou-Lhe o doutor da Lei quem era
o ‘próximo' para ele. E Cristo [por sua vez], perguntou: Quem agiu como
‘próximo'? Desse modo, com um exemplo prático, fez ver que cada homem é
‘próximo' para todos os homens. Motivo pelo qual deve estar ‘próximo' a ele em
todas as suas necessidades.
É o paradoxo oriental
servindo de máxima pedagogia. Tal foi a lição magisterial de Cristo" (9).
Tem toda razão Maldonado
ao expressar essa análise, pois não era tão explícito para um judeu o conceito
de próximo, por várias razões. Por sua história e por sua lei, antes de tudo.
Sempre que os judeus se misturavam com outros povos, acabavam caindo na
idolatria. Por outro lado, basta considerar o quanto a Terra Prometida se
localizava entre mar, desertos e montanhas, separando o povo judeu,
geograficamente, dos demais. Daí ser muito restrito para eles o verdadeiro
significado de "próximo". E entre si julgavam-se irmãos, mas, com os
outros, viviam numa antipatia instintiva levada, não raras vezes, até ao ódio.
Por cima dessas
circunstâncias, o povo judeu possuía uma missão universal. A ele havia sido
confiado o tesouro espiritual do qual deveria ser alimentada toda a humanidade.
Assim se explica essa
belíssima parábola composta pelo Divino Mestre, que foge um tanto da morfologia
das outras, nas quais o simbolismo se espraia por todos os substantivos e
adjetivos. Ela constitui um exemplo efetivo e afetivo de amor a Deus, sem o
qual não existe Religião, e de amor ao próximo, sem o qual não há amor a Deus.
Quem diz amar a Deus,
mas não ama seu próximo, além de mentir, desobedece à Lei divina e se esquece
de seu Preciosíssimo Sangue derramado no Calvário.
Esse amor deve ser
universal e não podemos nos apoiar em pretextos, aparentemente legítimos, para
não praticá- lo, como o fizeram o sacerdote e o levita da parábola. Eles
certamente estavam encarregados de missões boas e delas retornavam para suas
casas, entretanto, procederam mal com o necessitado.
Não poucos autores
aplicam a parábola ao próprio Jesus Cristo, com muita piedade. Não será de mau
gosto fazermos uma aplicação a nós, perguntando- nos quais têm sido, em geral,
nossas atitudes e reações face aos necessitados de qualquer espécie.
1) Apud São
Tomás de Aquino, Catena Aurea.
2) Pe. Juan
de Maldonado SJ, Comentários a los Cuatro Evangelios, BAC, Madrid, 1951, p.
545.
3) Apud São
Tomás de Aquino, Catena Aurea.
4) Pe. Juan
de Maldonado SJ, op. cit., p. 546.
5) Id.,
ibid.
6) Santo
Ambrósio, op. cit. - id.
7) São
Cirilo, op. cit. - ibid.
8) Pe. Juan
de Maldonado SJ, op. cit., pág. 548.
9) Pe.
Manuel de Tuya OP, Biblia Comentada, BAC, 1964, p. 839.
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