Comentários ao Evangelho 23º Domingo do Tempo Comum - Ano C
"Naquele
tempo, 25 grandes multidões acompanhavam Jesus. Voltando-Se, Ele lhes disse: 26
‘Se alguém vem a Mim, mas não se desapega de seu pai e de sua mãe, sua mulher e
seus filhos, seus irmãos e suas irmãs e até da sua própria vida, não pode ser
meu discípulo. 27 Quem não carrega sua cruz e não caminha atrás de Mim, não
pode ser Meu discípulo. 28 Com efeito: qual de vós, querendo construir uma
torre, não se senta primeiro e calcula os gastos, para ver se tem o suficiente
para terminar? Caso contrário 29 ele vai lançar o alicerce e não será capaz de
acabar. E todos os que virem isso começarão a caçoar, dizendo: 30 ‘Este homem
começou a construir e não foi capaz de acabar!' 31 Ou ainda: Qual o rei que ao
sair para guerrear com outro, não se senta primeiro e examina bem se com dez
mil homens poderá enfrentar o outro que marcha contra ele com vinte mil? 32 Se
ele vê que não pode, enquanto o outro rei ainda está longe, envia mensageiros
para negociar as condições de paz. 33 Do mesmo modo, portanto, qualquer um de
vós, se não renunciar a tudo o que tem, não pode ser Meu discípulo!'" (Lc
14, 25-33).
Claras são as condições para seguirmos
a Jesus. Depende de nos libertarmos das amarras que nos prendem à terra
Mons. João Clá Dias, EP
I -
Amarras e lastros na vida espiritual
Em junho de 1783, os irmãos Joseph-Michel e Jacques-Étienne Montgolfier,
filhos de um fabricante de papel de Lyon, conseguiram fazer voar, perante os
assombrados olhos dos seus conterrâneos, um grande balão feito de linho, com 32
metros de circunferência. Cheio de ar quente fornecido pela combustão de palha
seca, a aparatosa invenção elevou-se várias centenas de metros acima do solo e
percorreu em dez minutos uma distância de dois a três quilômetros. Três meses
depois, repetiram com êxito sua experiência no Parque de Versalhes, diante de
Luís XVI, Maria Antonieta e toda a corte da França.
Desde então, foi muito aperfeiçoada a técnica de fabricação dos aeróstatos,
mas o princípio de seu funcionamento - baseado numa das mais elementares leis
da Física - continua inalterado: sendo mais leve, o ar quente tende a subir.
Enquanto está sendo enchido de ar, o balão fica preso ao solo por amarras. Em
certo momento, são elas soltas e o engenho inicia sua ascensão, sendo então
preciso ir liberando lastros gradativamente para ele poder atingir uma altura
maior.
Esta é uma bela imagem da elevação das almas a Deus.
"Aquecidas" pela prática das virtudes, especialmente da caridade,
iniciam elas a subida espiritual e começam a "voar". Costuma haver,
porém, em consequência do pecado, amarras que as prendem à terra e lastros que
dificultam seu itinerário rumo à perfeição. É imperioso, portanto, cortar
aquelas e alijar estes, para o espírito humano poder elevar-se ao transcendente
e ao eterno. À semelhança de nosso corpo, padecem as almas dos danosos efeitos
de uma espécie de lei da gravidade espiritual por onde nos sentimos atraídos
para o mais baixo, o mais trivial, o que nos exige menos esforço.
Até para as pessoas consagradas existem amarras e lastros, por vezes
mais difíceis de soltar do que os dos simples fiéis. Se os religiosos não
corresponderem ao convite da graça para viver num patamar mais elevado, poderão
sentir uma como que vertigem por onde tenderão a se apegar com especial
veemência ao que é terreno.
Para ajudar a vencer esses entraves nas instituições religiosas, tem o
Espírito Santo suscitado, ao longo dos tempos, as mais diversas formas de
espiritualidade que intensificam o desapego dos bens passageiros. Algumas nos
causam espanto por sua radicalidade. Por exemplo, a Ordem dos Clérigos
Regulares Teatinos vive de esmolas, como tantas outras, mas seus membros não
podem pedi-las: devem esperar que elas lhes sejam oferecidas espontaneamente!1
Em vista dessa nossa má tendência, Cristo nos ensina serem
indispensáveis a renúncia e a abnegação, para sermos verdadeiros discípulos
Seus. Eis a lição da Liturgia deste domingo.
II -
Odiar o pai e a mãe?
"Naquele
tempo, 25 grandes multidões acompanhavam Jesus. Voltando-Se, Ele lhes
disse:".
No início de Sua pregação, apenas alguns iam atrás do Divino Mestre,
mas, em pouco tempo, o número dos Seus seguidores foi crescendo até formar um
público considerável. A esta altura do Evangelho de São Lucas, quando Ele Se
encaminha pela última vez a Jerusalém, já se pode dizer que "grandes
multidões acompanhavam Jesus".
Entretanto, nem todos poderiam ser chamados propriamente Seus
discípulos. Como sublinha o Cardeal Gomá, aquelas multidões seguiam Nosso
Senhor "movidas talvez por pensamentos demasiado humanos, pressagiando
quiçá a glória temporal do Reino Messiânico".2
Foi esse o motivo que levou Jesus a voltar-Se para eles a fim de
ensinar-lhes - e também a nós - o verdadeiro significado do Reino dos Céus e as
condições para alcançá-lo.
Jesus
deve ser amado com um amor perfeitíssimo
26
"Se alguém vem a Mim, mas não se desapega de seu pai e de sua mãe, sua
mulher e seus filhos, seus irmãos e suas irmãs, e até da sua própria vida, não
pode ser Meu discípulo".
Embora algumas versões da Escritura interpretem nesta passagem o sentido
do verbo grego μισεω como "desapegar-se", a Vulgata prefere traduzir
o termo μισε? por odit (odeia). Daí a formulação clássica deste versículo:
"Se alguém vem a Mim e não odeia seu pai, sua mãe, sua mulher, seus
filhos, seus irmãos, suas irmãs e até a sua vida, não pode ser Meu
discípulo".3
Ora, como explicar, à luz dos Mandamentos da Lei de Deus, essa
prescrição de odiar os parentes mais próximos e até a própria vida? Tirar dela
todas as consequências às quais uma consideração superficial pode induzir, não
levaria este versículo ao parricídio, ao fratricídio e mesmo ao suicídio? Não
terá sido, então, incorreta, por hiperbólica, a tradução de São Jerônimo?
Não parece. Pelo contrário, o uso do verbo odiar sublinha com ênfase
didática, neste contexto, o sentido mais profundo das palavras do Mestre: a
necessidade de amarmos a Deus acima de tudo, portanto, de nos desapegarmos
radicalmente até mesmo do que nos for mais caro, se isto representar um
obstáculo para seguirmos a Cristo. Pois Jesus é digno de ser amado com um amor
perfeitíssimo, e jamais chegará a ser Seu verdadeiro discípulo quem não estiver
disposto a, por causa d'Ele, levar aos últimos extremos o desprendimento: "Quem
ama seu pai ou sua mãe mais que a Mim, não é digno de Mim" (Mt 10, 37).
Explica São Tomás, na Suma Teológica, que cabe à virtude da piedade
"prestar aos pais culto e serviços, mas dentro das devidas medidas. Ora,
não existe devida medida quando se tende a prestar ao homem um culto maior do
que aquele que se presta a Deus. [...] Se, por conseguinte, o culto devido aos
pais viesse a nos afastar do culto a Deus, já não seria mais piedade filial
ficar insistindo num culto que é contra Deus".4
Deve ser interpretado no mesmo sentido o convite a desapegar-se
"até da própria vida", como bem apontam Balz e Scheider: "A
dupla exigência de Jesus - necessidade de odiar os pais e até a si mesmo, por
causa d'Ele (Lc 14, 26), e de não amar os pais mais do que a Ele (Mt 10, 37) -
tem na realidade este significado: para seguir a Jesus, é preciso pôr tudo de
lado".5
Os
inimigos serão os próprios familiares
Ora, como podem pai e mãe, irmão e irmã representarem obstáculos para a
nossa salvação?
Para melhor responder a esta pergunta, é útil lembrar outra passagem do
Evangelho, correlata à que agora comentamos: "Não penseis que vim trazer
paz à terra. Não vim trazer paz, mas sim, a espada. De fato, Eu vim pôr
oposição entre o filho e seu pai, a filha e sua mãe, a nora e sua sogra; e os
inimigos do homem serão seus próprios familiares" (Mt 10, 34-36).
Sobre estes versículos de São Mateus - mais incisivos ainda, sob certo
sentido, que os de São Lucas -, comenta Romano Guardini: "A mensagem de
Jesus é mensagem de salvação. Anuncia o amor do Pai e o advento do Reino. Chama
os homens para a paz e para a concórdia, na vontade santa. Contudo, Sua palavra
não começa por produzir a união, mas a divisão. Quanto mais um homem se torna
profundamente cristão, mais a sua vida se distingue da vida dos outros que não
querem tornar-se cristãos, ou na medida em que se recusam a sê-lo. [...] Eis
porque pode assim haver uma cisão entre pai e filho, amigo e amigo, ou entre os
moradores de uma mesma casa".6
Verdadeiro
sentido do verbo odiar
Ora, logo a seguir, Guardini acrescenta, com muita acuidade, que a
exigência de odiar os parentes quando eles nos afastam de Deus "é
antinatural, e provoca a tentação de guardar os parentes naturais e de
abandonar Jesus".7
É visando tornar clara a necessidade que o homem tem de fazer violência
contra si mesmo para ser verdadeiro discípulo de Cristo, que a Vulgata, São
Tomás, São Gregório Magno e muitos outros comentaristas recorrem a um termo tão
radical quanto o verbo odiar: "Gregório interpreta esta palavra do Senhor
no sentido de que ‘devemos odiar nossos pais e deles fugir, ignorando-os,
quando os temos como adversários no caminho de Deus'. Se, de fato, nossos pais
nos induzirem ao pecado e nos afastarem do culto divino, no que concerne a este
ponto específico devemos odiá-los e abandoná-los".8
Portanto, é natural, legítimo e até um dever o amor a irmãs e irmãos,
filhas e filhos, pai ou mãe; mas devemos repudiá-lo com toda energia, se ele
nos impede de seguir a Cristo. Mais uma vez, é São Tomás quem esclarece:
"Não nos é ordenado odiar nossos próximos porque eles são nossos próximos,
mas somente os que nos impedem de nos unirmos a Deus. Nisso eles não são nossos
próximos, mas inimigos, conforme o livro de Miqueias: ‘Os inimigos do homem, os
seus próprios familiares' (Mq 7, 6)".9
E, mais adiante, acrescenta: "Portanto, deve-se dizer que, segundo
o mandamento de Deus, os pais devem ser honrados enquanto estão unidos a nós
pela natureza e por afinidade, como mostra o livro do Êxodo. Mas devemos
odiá-los se forem um obstáculo em nossa ascensão à perfeição da justiça
divina".10
Fica, assim, posta a questão no seu verdadeiro equilíbrio. E pode a
Santa Igreja ensinar com toda autoridade essa doutrina, pois foi ela quem
evangelizou os povos pagãos e consolidou no mundo os princípios basilares da
família monogâmica e indissolúvel, por sua pregação e pela administração do
Sacramento do Matrimônio, instituído por Nosso Senhor Jesus Cristo. Com isso,
estabeleceu em situação digna na sociedade a mulher e os filhos, fazendo cessar
abusos vigentes no mundo antigo, como o "direito" do pai matar os
filhos ou o marido repudiar a esposa. Entretanto, ao mesmo tempo, enfatiza ela
que tudo, até mesmo a família, está subordinado ao serviço e à glória de Deus.
Ainda a propósito do verbo odiar, aduz o padre Duquesne um importante
esclarecimento: "O termo odiar não significa que devemos fazer ou
desejar-lhes o mal; mas ele assinala o ardor, a coragem, a força com a qual
devemos lhes resistir, caso se oponham à nossa salvação, nos arrastem para o
mal, nos demovam de assumir o estado ao qual Deus nos chama, ou queiram
engajar-nos naquele ao qual Deus não nos chama; caso nos impeçam de abraçar a
verdadeira Fé, e se esforcem por nos reter ou nos lançar no erro".11
Em sentido contrário, podemos considerar numerosos exemplos que nos
mostram como são inestimáveis, e a certo título insuperáveis, o estímulo e o
apoio da família para os seus membros se santificarem: Santa Mônica, cujas
lágrimas e orações obtiveram a conversão do filho; São Basílio, o Velho, e
Santa Emília, pais de São Basílio, São Gregório de Nissa, Santa Macrina e São
Pedro de Sebaste; ou os Beatos Luís e Zélia Martin, pais de Santa Teresinha do
Menino Jesus.
O
prêmio virá na glória eterna
27
"Quem não carrega sua cruz e não caminha atrás de Mim, não pode ser Meu
discípulo".
Estas palavras de Jesus descartam de vez todas as esperanças
triunfalistas que a maior parte dos judeus tinha a propósito do reino
messiânico. Com efeito, em toda a Sua pregação, jamais oferecera Nosso Senhor a
plenitude da felicidade nesta vida, mas sim a glória eterna, cuja via passa
pela abnegação e pelo sacrifício. Per crucem ad lucem (é pela cruz que se chega
à luz), reza a conhecida divisa latina.
Bem ilustra o Apóstolo essa necessidade de sacrifício e mortificação,
recorrendo a um exemplo especialmente vivo para os seus seguidores em Corinto:
"Todo atleta se impõe todo tipo de disciplina. Eles assim procedem para
conseguir uma coroa corruptível. Quanto a nós, buscamos uma coroa incorruptível!
Por isso eu corro, não como às tontas. Eu luto, não como quem golpeia o ar.
Trato duramente meu corpo e o subjugo, para não acontecer que, depois de ter
proclamado a mensagem aos outros, eu mesmo seja reprovado" (I Cor 9,
25-27).
Ainda sobre este versículo do Evangelho, interessante é recordar uma
piedosa consideração do padre Duquesne: "Comparemos nossa cruz com a de
Jesus Cristo e as dos mártires, e envergonhemo-nos de nossa covardia!".12
Não cabe, portanto, levá-la a contragosto, reclamando do seu peso ou
manifestando amargura pelos sofrimentos que ela nos traz. Quem assim procede,
arrasta a cruz, não a carrega; em consequência, não pode ser considerado
discípulo do Mestre. Seguir Nosso Senhor não significa apenas andar fisicamente
atrás d'Ele, como faziam muitos naquela multidão, mas sim "imitar Seus
exemplos, praticar Suas virtudes", acentua o mesmo padre Duquesne.13
III
- Lucidez e prudência
Ensinar por meio de parábolas é uma constante da divina didática. Assim,
vai Nosso Senhor recorrer agora a duas, para tornar vivo aos olhos daquela
multidão quanto o segui-Lo não exige apenas esforço e abnegação, mas também
planejamento lúcido e cuidadosa execução, isto é, "prudência e resolução
em calcular o esforço que isso nos custará".14
Como não poderia deixar de ser, as duas imagens foram escolhidas com
divina sabedoria, de forma a ilustrar com perfeição o ensinamento dos
versículos anteriores. A este propósito, comenta Maldonado: "Cristo propôs
as parábolas da torre e da guerra, de preferência a outros temas, por tratar-se
de empresas bem difíceis e caras levantar torres e empreender guerras, as quais
requerem grande e diligente preparação".15
Os
cálculos para construir uma torre ou travar uma guerra
28
"Com efeito: qual de vós, querendo construir uma torre, não se senta
primeiro e calcula os gastos, para ver se tem o suficiente para terminar? Caso
contrário 29 ele vai lançar o alicerce e não será capaz de acabar. E todos os
que virem isso começarão a caçoar, dizendo: 30 ‘Este homem começou a construir
e não foi capaz de acabar!'".
Como bem observou Maldonado, "calcular os gastos" significa
aqui preparar-se com cuidado, inclusive detendo-se para ouvir prudentes
conselhos. É o que todo homem deve fazer nas importantes encruzilhadas da vida:
medir as dificuldades antes de lançar-se por uma ou outra via, sempre de acordo
com a razão, nunca guiado apenas pelos sentimentos ou pelos impulsos. Mais
importante ainda, precisa decidir e agir tendo em vista, sobretudo, a vida
eterna, e não só os interesses terrenos, passageiros por definição.
31
"Ou ainda: Qual o rei que ao sair para guerrear com outro, não se senta
primeiro e examina bem se com dez mil homens poderá enfrentar o outro que
marcha contra ele com vinte mil?".
As guerras entre pequenos estados eram comuns na Antiguidade. Portanto,
Nosso Senhor apresentava nessa parábola uma realidade bem conhecida de todos os
Seus ouvintes.
Ora, na batalha para alcançar o Reino dos Céus, entra o homem em
condições muito desfavoráveis. Dada a natureza decaída em consequência do
pecado original, cada um tem no seu interior terríveis inimigos: "o açoite
da carne, a lei do pecado que impera em nossos membros, e varias
paixões".16 A eles se acrescentam "os principados, as potestades, os
dominadores deste mundo tenebroso, os espíritos malignos espalhados pelos
ares" (Ef 6, 12).
Visando tornar notória essa desproporção de forças, Santo Agostinho
assim interpreta o sentido da parábola: "Os dez mil homens com os quais
ele deve combater o rei que dispõe de vinte mil representam a simplicidade do
cristão, que precisa lutar contra a falsidade do demônio, isto é, com seus
dolos e falácias".17
Tratado
de paz com o Supremo Soberano
32
"Se ele vê que não pode, enquanto o outro rei ainda está longe, envia
mensageiros para negociar as condições de paz".
Por seu lado, São Gregório Magno dá desta parábola uma interpretação de
caráter escatológico, segundo a qual o rei que se aproxima seria Aquele que
virá no fim dos tempos para julgar os vivos e os mortos.18
Assim, na perspectiva da chegada do Supremo Soberano, em comparação ao
qual nada somos nem podemos, caber-nos-ia apenas enviar mensageiros para Lhe
solicitar a paz. São estes os nossos Anjos da Guarda, os nossos intercessores
celestes e, sobretudo, Nossa Senhora. Pois, como pergunta o padre Duquesne,
"quem somos nós para nos apresentarmos diante de Deus e ter a ousadia de
com Ele negociar a paz? Que temos para oferecer- Lhe?".19
Quanto às condições da paz, já foram elas enunciadas nos primeiros
versículos deste Evangelho: trata-se de renunciar a tudo e abraçar a Cruz para
seguir o Divino Redentor.
O
único cálculo permitido ao verdadeiro discípulo
33
"Do mesmo modo, portanto, qualquer um de vós, se não renunciar a tudo o
que tem, não pode ser Meu discípulo!".
Nessas duas parábolas, Nosso Senhor torna evidente quão necessário é
fazer bem os cálculos antes de encetar algum empreendimento, assumir uma
responsabilidade ou travar uma batalha terrena.
Ora, neste versículo, segundo a interpretação de Santo Agostinho,
estaria declarado o sentido de ambas, pois, afirma ele, "o dinheiro para
edificar a torre e a força de dez mil homens para enfrentar os vinte mil
combatentes do outro rei, não têm outro significado senão o de cada um
renunciar a tudo quanto possui".20
E acrescenta o santo Bispo de Hipona: "O anteriormente dito
concorda com o que se diz agora, porque na renúncia de cada qual a tudo quanto
possui está contido também o ódio a seu pai, sua mãe, sua mulher, seus filhos,
seus irmãos, suas irmãs e até à sua própria vida. Todas essas coisas são
próprias de cada um, e constituem obstáculo e impedimento para obter, não o
temporal e transitório, mas aquilo que é comum a todos e subsistirá
sempre".21
Há, em suma, apenas um caminho para nos tornarmos verdadeiros discípulos
de Jesus: renunciar totalmente aos afetos desordenados e ao apego aos bens
terrenos, evitando que eles atuem como amarras para nossa vida espiritual ou de
pesados lastros para nossa alma. Sem nos desprendermos de forma plena e
completa de quanto nos separa de Cristo, jamais alcançaremos o Reino dos Céus.
Importante é notar, ademais, como faz o Cardeal Gomá, que não apenas os
clérigos e religiosos devem ser discípulos de Jesus, mas sim todos os
batizados: "Com os exemplos da torre e do rei, não quer o Senhor
significar que cada um de nós seja livre de tornar-se ou não Seu discípulo,
como o homem da torre era livre de lançar ou não os alicerces. Tenciona Ele
ensinar-nos a impossibilidade de agradar a Deus em meio às coisas que distraem
a alma e nas quais ela corre o risco de sucumbir, pela astúcia do
demônio".22
São Beda faz uma distinção entre o dever das almas chamadas ao estado de
vida consagrada e a obrigação de todos os fiéis: "Há uma diferença entre
renunciar a todas as coisas e abandoná-las: compete a um pequeno número de
perfeitos abandoná-las, ou seja, pôr de lado os cuidados do mundo; e cabe a todos
os fiéis renunciar a elas, isto é, possuir as coisas terrenas de maneira tal
que elas não os prendam ao mundo".23
IV -
Os apegos desordenados roubam-nos a paz de alma
O Evangelho ora comentado torna patente o quanto esse desapego radical e
completo é a pedra fundamental de nossa vida interior, quer constituamos
família, quer façamos parte do Clero, quer estejamos consagrados a Deus em
algum instituto religioso.
Nesse sentido, podemos afirmar que a liturgia do 23º Domingo do Tempo
Comum é um convite ao desprendimento: "Quem não carrega sua cruz e não Me
segue, não pode ser Meu discípulo". Não significa isso que precisamos ser
flagelados, coroados de espinhos ou pregados na cruz, como foi Nosso Senhor
Jesus Cristo. A cruz que Ele pede de nós consiste principalmente em vivermos
desprendidos de tudo quanto é terreno, tal qual uma águia que voa sem amarras
para, nas alturas, melhor contemplar o sol.
Como tantas vezes comprovamos na vida, o apego desordenado gera
aflições, inseguranças e receios que nos roubam a paz de alma. Portanto, mesmo
o homem não chamado à vida religiosa deve fazer tudo com o coração posto nas
coisas de Deus, inclusive ao cuidar dos negócios e da administração dos seus
bens. Esse desprendimento é condição para seguir de perto a Nosso Senhor Jesus
Cristo. Assim agindo, a alma experimentará a verdadeira felicidade,
prenunciativa da alegria que terá no Céu.
1 CONSTITUIÇÕES, art.26: "Nós, clérigos, devemos viver do Altar e do Evangelho, e de quanto nos oferecerem espontaneamente os fiéis, sem pedir esmola alguma aos seculares, nem diretamente nem por intermédio de outrem. Toda a nossa esperança deve estar posta na palavra de Cristo Senhor, que diz: ‘Buscai em primeiro lugar o Reino de Deus e a Sua justiça e todas estas coisas vos serão dadas em acréscimo'".
2 GOMÁ Y TOMÁS, Isidro. El Evangelio
explicado. Barcelona: Casulleras, 1930, v.III, p.283.
3 As duas traduções são corretas,
pois o verbo grego μισεω, como o seu equivalente hebreu ??n?', abarca uma gama
de significados que vai desde amar menos, detestar, até odiar (cf. BALZ, Horst;
SCHEIDER, Gerhard (Eds.). Diccionario exegético del Nuevo Testamento. 2.ed.
Salamanca: Sígueme, 2002, col.295).
4 SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma
Teológica, II-II, q.101, a.4, resp.
5 BALZ e SCHEIDER, op. Cit., col.295.
6 GUARDINI, Romano. O Senhor. Rio de
Janeiro: Agir, s/d, p.293.
7 Idem, ibidem.
8 SÃO TOMÁS DE AQUINO, Suma
Teológica, II-II, q.101, a.4, ad.1.
9 Idem, II-II, q.26, a.7, ad.1.
10 Idem, II-II, q.34, a.3, ad.1.
11 DUQUESNE. L'Évangile médité.
Lyon-Paris: Perisse Frères, 1849, v.III, p.104.
12 Idem, p.106.
13 Idem, ibidem.
14 GOMÁ Y TOMÁS, op. Cit., p.282.
15 MALDONADO, SJ, Juan de.
Comentarios a los cuatro Evangelios. Evangelios de San Marcos y San Lucas.
Madrid: BAC, 1951, v.II, p.642.
16 SÃO CIRILO DE ALEXANDRIA.
Commentaria in Lucam, sermo 105: PG 72, 796.
17 SANTO AGOSTINHO. Quæstiones
Evangeliorum, l.2, c.31: PL 35, 1343.
18 Cf. SÃO GREGÓRIO MAGNO. Homiliarum in Evangelia, hom. 37, c. 6: PL 76, 1277-1278.
19 DUQUESNE, op. cit., p.119.
20 SAN AGUSTÍN, apud SANTO TOMÁS DE
AQUINO, Catena Aurea.
21 Idem.
22 GOMÁ Y TOMÁS, op. Cit., p.285.
23 SAN BEDA, apud SANTO TOMÁS DE
AQUINO, Catena Aurea.
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