Comentários ao
Evangelho Solenidade de Todos os Santos
"Naquele tempo, 1 vendo Jesus as multidões,
subiu ao monte e sentou-Se. Os discípulos aproximaram-se, 2 e Jesus começou a
ensiná-los: 3 ‘Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o Reino
dos Céus. 4 Bem-aventurados os aflitos, porque serão consolados. 5
Bem-aventurados os mansos, porque possuirão a Terra. 6 Bem-aventurados os que
têm fome e sede de justiça, porque serão saciados. 7 Bem-aventurados os
misericordiosos, porque alcançarão misericórdia. 8 Bem--aventurados os puros de
coração, porque verão a Deus. 9 Bem-aventurados os que promovem a paz,
porque serão chamados filhos de Deus. 10 Bem-aventurados os que são perseguidos
por causa da justiça, porque deles é o Reino dos Céus. 11 Bem-aventurados sois
vós, quando vos injuriarem e perseguirem, e, mentindo, disserem todo tipo de
mal contra vós, por causa de Mim. 12a Alegrai-vos e exultai, porque será grande
a vossa recompensa nos Céus'" (Mt 5, 1-12a).
Mons. João Scognamiglio Clá Dias, EP
Na Solenidade de Todos os Santos
a Igreja celebra todos aqueles que já se encontram na plena posse da visão
beatífica, inclusive os não canonizados. A Antífona da entrada da Missa nos faz
este convite: "Alegremo-nos todos no Senhor, celebrando a festa de Todos os
Santos".1 Sim, alegremo-nos, porque santos são também - no sentido lato do
termo - todos os que fazem parte do Corpo Místico de Cristo: não só os que
conquistaram a glória celeste, como também os que satisfazem a pena temporal no
Purgatório, e os que, ainda na Terra de exílio, vivem na graça de
Deus. Quer estejamos neste mundo como membros da Igreja militante, quer no
Purgatório como Igreja padecente, quer na felicidade eterna, já na Igreja
triunfante, somos uma única e mesma Igreja. E como seus filhos temos irmandade,
conforme diz São Paulo aos Efésios: "já não sois hóspedes nem
peregrinos, mas sois concidadãos dos Santos e membros da família de Deus"
(Ef 2, 19).
É por isso que o Prefácio desta
Solenidade reza: "Festejamos, hoje, a cidade do Céu, a Jerusalém do alto,
nossa mãe, onde nossos irmãos, os Santos, vos cercam e cantam eternamente
o vosso louvor. Para essa cidade caminhamos pressurosos, peregrinando na
penumbra da fé. Contemplamos, alegres, na vossa luz, tantos membros da Igreja,
que nos dais como exemplo e intercessão".2
Assim, caminhando "na
penumbra da fé", voltemos a atenção para os Bem-aventurados, - nossos irmãos,
se vivermos na graça de Deus -, pois eles estão mais perto d'Aquele que é a
Cabeça desse Corpo, Nosso Senhor Jesus Cristo. Eles são motivo de esperança
para os que padecem nas chamas do Purgatório. E para nós, que possuímos
pelo Batismo o germe dessa glória da qual eles já gozam, são modelo da
santidade de vida que devemos alcançar. Todo nosso empenho será pouco para
obter que essa semente se transforme em árvore frondosa, no pleno
desabrochar de suas flores e com abundância de frutos, isto é, a glória eterna,
nossa meta última.
Precisamos avançar, então, rumo
aos que estão na presença de Deus com o mesmo desejo com que procuraríamos
nossa família, caso não a conhecêssemos, pois, entre os membros de uma família
harmônica e bem constituída existe um imbricamento, fruto da
consanguinidade, tão inquebrantável que, por exemplo, se um dos irmãos
atinge uma situação de prestígio, todos os demais se regozijam. Muito maior há
de ser a união daqueles que, pela filiação divina, pertencem à família de Deus,
e maior também a alegria ao contemplarmos nossos irmãos louvando a Deus no Céu,
por todo o sempre, e intercedendo por nós junto a Ele.
Tais pensamentos nos dão a clave
para analisar o florilégio das leituras que a Santa Igreja separou para esta
Solenidade.
A primeira leitura, do Apocalipse
(7, 2-4.9-14), é cheia de beleza e, ao mesmo tempo, difícil de ser explicada
com profundidade, em todos os seus simbolismos. Detenhamo-nos apenas em
dois aspectos que a relacionam especialmente com esta comemoração. "Eu,
João, vi um outro Anjo que subia do lado onde nasce o Sol. Ele trazia a
marca do Deus vivo, e gritava, em alta voz, aos quatro Anjos que tinham
recebido o poder de danificar a terra e o mar, dizendo-lhes: ‘Não façais
mal à terra, nem ao mar, nem às árvores, até que tenhamos marcado na fronte os
servos do nosso Deus'" (Ap 7, 2-3). Este bonito trecho deixa patente que
Deus só promoverá o fim do mundo quando forem ocupados todos os lugares do
Céu e a coorte dos Bem-aventurados se tenha completado. Vemos como Deus, para
além das ofensas cometidas contra Ele e antes de enviar o castigo à Terra,
cuida de seus Santos, daqueles que Ele escolheu.
Logo em seguida, continua São
João: "Ouvi então o número dos que tinham sido marcados: eram cento e
quarenta e quatro mil, de todas as tribos dos filhos de Israel" (Ap
7, 4). Este número dos que seguem o Cordeiro por toda parte (cf. Ap 14, 4) é
simbólico, pois a quantidade de Santos do Céu é incalculável. Ao criar o
Céu Empíreo - que, segundo São Tomás,3 foi a primeira criatura a sair das mãos
de Deus, junto com os Anjos -, tinha Ele, desde toda a eternidade, o plano de
povoá-lo com outros seres inteligentes que, além dos espíritos angélicos,
fossem partícipes da natureza divina e, portanto, sócios de sua felicidade
eterna.
Eis o apelo feito a nós na
Liturgia de hoje: desejar e abraçar a via da santidade para fazer parte destes
cento e quarenta e quatro mil.
Ora, a partir do pecado original
o homem passou a se interessar de forma intemperante pelas coisas materiais, e
aos poucos se esqueceu de Deus. Estabeleceu-se na face da Terra a luta entre o
bem e o mal, entre as volúpias da carne e o chamado de Deus à santidade, e no
relacionamento humano entrou o mal com uma virulência extraordinária, pois
este é dinâmico, enquanto o bem é apenas difusivo.4 Com efeito, se não
fosse a sustentação da graça, o mal dominaria completamente em nós e
derrotaria o bem.
Isto se faz patente logo após a
saída de Adão e Eva do Jardim do Éden, na história de seus dois primeiros
descendentes, Caim e Abel. Abel era um filho da luz, reto e justo, cujos
sacrifícios oferecidos a Deus eram aceitos com enorme benevolência (cf. Gn
4, 4). Caim, pelo contrário, nutria em sua alma o nefasto vício da inveja que,
tendo chegado ao auge, levou-o a matar seu irmão, derramando sangue
inocente. Em seguida, tomado de amargura e depressão, em consequência de seu
pecado, Caim quis fugir da face do Senhor, com a ilusão característica do
pecador que julga poder ocultar-se de Deus, assim como se esconde do olhar dos
homens (cf. Gn 4, 8.14).
Qual não terá sido o espanto de
Eva ao carregar o cadáver de seu filho nos braços e deparar-se, pela primeira
vez, com o efeito do pecado cometido no Paraíso! A alma de Abel, porém, no
instante em que se destacou do corpo foi para o Limbo dos Justos, à espera da
vinda do Salvador que lhe abriria as portas do Céu. Precedendo os pais,
ele encabeçou o cortejo dos Santos, daqueles que, aos poucos,
constituiriam o número dos que deveriam passar desta vida à eterna
bem-aventurança.
Entretanto, a Encarnação do Verbo
e sua presença visível entre os homens trouxe ao mundo uma plêiade de Santos:
desde os mártires inocentes, até o Bom Ladrão que, tendo implorado
misericórdia, obteve dos lábios do próprio Deus o prêmio de ser perdoado e
santificado: "Hoje estarás comigo no Paraíso" (Lc 23, 43).
Quando Jesus expirou na Cruz, sua Alma desceu ao Limbo, onde, decerto, o
primeiro a recebê-Lo foi São José, que O aguardava havia poucos anos. Mas foi no
dia de sua gloriosa Ascensão que o Redentor levou consigo essa coorte
exultante de justos, introduzindo-os no Céu a fim de começar a povoá-lo. Em
certo momento, com gáudio para os Bem-aventurados, Maria Santíssima subiu em
corpo e alma, e foi coroada como Rainha do universo.
Ao longo dos vinte séculos de
História da Igreja, as moradas eternas acolheram os mártires, os doutores, os
confessores... pois foi Nosso Senhor Jesus Cristo quem abriu
definitivamente as portas da santidade a todos os homens, com a superabundância
de sua graça e sua doutrina nova dotada de potência (cf. Lc 4, 32; Mc 1,
22).
Sinopse desta doutrina é o Sermão
da Montanha, cujo centro é o Evangelho escolhido para esta Solenidade: a
proclamação das Bem-aventuranças. De fato, elas são o resumo de toda a moral
católica, de toda via de perfeição, de toda a prática da virtude, e se neste
dia comemoramos as miríades de Santos que habitam o Paraíso Celeste, é porque
eles realizaram em sua vida aquilo que o Divino Mestre delineia como causa de
bem-aventurança.
Tendo comentado este Evangelho em
outras ocasiões,5 nos limitaremos agora a dar uma síntese dos ensinamentos nele
contidos, em harmonia com a Solenidade hoje celebrada.
Em primeiro lugar, apreciemos o
contraste desta cena do Sermão da Montanha com outro importante discurso da
História Sagrada: a promulgação da Antiga Lei, no Monte Sinai (cf. Ex 19-23).
Parece que Nosso Senhor quis estabelecer de propósito uma contraposição entre
ambos os episódios, a fim de mostrar a beleza existente na Nova Lei que Ele
veio trazer, levando a Lei Antiga a maior perfeição (cf. Mt 5, 17). No
Sinai, Deus permanece no cume da montanha e Moisés tem de subir até lá para
receber as Tábuas da Lei. Cristo, pelo contrário, desce à meia altura do monte
para Se encontrar com o homem e entregar-lhe, Ele próprio, a Nova Lei. Assim,
uma Lei é promulgada no cimo da montanha, outra na orla. Enquanto no Sinai o
homem deve subir até Deus, na montanha em que Jesus faz seu sermão, Deus desce
até o homem.
No Sinai, o Todo-Poderoso se
apresenta em meio a trovões, relâmpagos, escuridão e som ensurdecedor de
trombeta; na montanha, o Salvador senta-Se entre os homens, num ambiente
suave, sereno e tranquilo, sem especiais manifestações da natureza. No Sinai, o
povo tinha proibição de tocar a base do monte, pois morreria se o fizesse; na
montanha, a multidão está próxima de Jesus e pode tocá-Lo, porque d'Ele emana
uma virtude que cura a todos.
No Sinai, foi dado a Moisés um
código de leis, verdadeiro código penal, com severos castigos para quem o
transgredisse; na montanha, Nosso Senhor mostra, com misericórdia sem limites,
quais os prêmios, os benefícios e as maravilhas concedidas por Deus a quem
pratica a virtude e cumpre a Lei. No Sinai, Moisés representa a Lei, servindo
de exemplo por seu zelo em cumprir essa mesma Lei; namontanha, Jesus Cristo é o
modelo perfeito da lei da bondade.
No Sinai, para ouvir as
prescrições divinas poderia subir qualquer homem, desde que fosse eleito por
Deus; na montanha, porém, só o Homem-Deus, Nosso Senhor Jesus Cristo,
Segunda Pessoa da Santíssima Trindade Encarnada, podia pronunciar aquele
Sermão, pois unicamente Ele, enquanto Messias, tinha autoridade para
aperfeiçoar a Lei Antiga.
Nessa perspectiva de bondade,
Jesus proclama as Bem-aventuranças, mostrando a que alturas é capaz de se
elevar uma alma pelo florescimento dos dons do Espírito Santo, produzindo atos
de virtude heroica. Tais frutos podem brotar de maneira isolada, mas, em
geral, quando o santo chega à plenitude da união com Deus, todas as bem-aventuranças
se verificam numa única florada. Ser santo, então, significa ser um
bem-aventurado no tempo para depois sê-lo na eternidade.
Em que consiste, pois, essa
bem-aventurança? Na segunda leitura (I Jo 3, 1-3) desta Liturgia, um lindíssimo
trecho da Primeira Epístola de São João - o Apóstolo do Amor, exímio
espiritualista, sempre dado a ressaltar a vida sobrenatural - nos dá a
resposta,lembrando o valor da nossa condição de filhos de Deus: "Vede
que grande presente de amor o Pai nos deu: de sermos chamados filhos de
Deus. E nós realmente o somos" (I Jo 3, 1a). Na verdade, por ocasião do
Batismo, embora a natureza humana continue a mesma,com inteligência, vontade e
sensibilidade, acrescenta-se em nós uma qualidade: a participação na própria
natureza divina, que nos assume por completo. A graça, explica São
Boaventura, "é um dom que purifica, ilumina e aperfeiçoa a alma; que a
vivifica, a reforma e a consolida; que a eleva, a assimila e a une a Deus,
tornando-a aceitável; pelo que semelhante dom justamente chama-se graça,
pois nos faz gratos, isto é, graça gratificante".6
Sendo um bem do espírito, não
pode ser vista com os olhos materiais, pois estes captam só o que é sensível,
mas comprovamos, isto sim, seus efeitos. Santa Catarina de Sena, a quem
Nosso Senhor concedera a graça de contemplar o estado das almas, chegou a
afirmar a seu confessor: "Meu pai, se vísseis o fascínio de uma alma
racional, não duvido que daríeis cem vezes a vida pela sua salvação, porque
neste mundo nada há que se lhe possa igualar em beleza".7
Certas imagens podem servir para
termos uma ideia, ainda que pálida, das maravilhas operadas pela graça nas
almas. Imaginemos um vitral esplendoroso, com uma perfeita combinação de cores,
fabricado com vidro da melhor qualidade, contendo até ouro na sua composição.
Uma vez posto na janela, se não é iluminado, que valor terá peça tão
espetacular? Entretanto, a partir do momento em que os raios de luz sobre ele
incidem, brilhará com extraordinários matizes, desdobrando-se em mil reflexos
multicoloridos.
Outra comparação que também nos
aproxima da realidade sobrenatural é a de um litro de álcool no qual são
derramadas algumas gotas de fabulosa essência, finíssima e de requintado
aroma. Sem deixar de ser álcool, o líquido torna-se perfume, pois é assumido
pela essência.
Da mesma forma como a luz ilumina
o vitral e a essência assume o álcool - e ainda poderíamos encontrar na
natureza outras imagens ilustrativas -, também a graça confere nova qualidade à
alma humana, que é, por assim dizer, submersa na natureza divina, como
comenta Scheeben: "Se dentre todos os homens e todos os Anjos escolhesse
Deus uma só alma, para comunicar-lhe o esplendor de tão inesperada dignidade,
[...] deixaria estupefatos não só os mortais, mas ainda os mesmos Anjos, que se
sentiriam quase tentados a adorá-la, como se fora Deus em pessoa".8 Tal é
a excelência da filiação divina!
Filhos de Deus... "nós o
somos! Se o mundo não nos conhece é porque não conheceu o Pai. Caríssimos,
desde já somos filhos de Deus, mas nem sequer se manifestou o que seremos"
(I Jo 3, 1b-2a). De fato, enquanto permanecemos neste mundo, em estado de
prova, temos a graça santificante, recebida no Batismo, e as graças atuais, que
Deus derrama sobre nós ao longo da nossa existência. Todavia, estamos apenas
no começo do caminho, pois, só quando contemplarmos a Deus face a face,
esta graça se transformará em glória e chegaremos ao "estado de homem
feito, a estatura própria da maturidade de Cristo" (Ef 4, 13).
Esta é a felicidade absoluta da
qual nossos irmãos, os Santos, já gozam em plenitude na eternidade e com a qual
nenhuma consolação desta vida é comparável. Nossa ideia a propósito da
felicidade é tão humana, que julgamos, muitas vezes, possuí-la em grau máximo
ao obter algo que muito desejamos. A mera inteligência do homem não alcança a
compreensão da felicidade do Céu, pois em relação a Deus somos como formigas
que, andando pela terra, levantassem a cabeça para olhar o voo de uma
águia no céu. A diferença entre uma formiga e uma águia é ridícula perto da
infinitude existente entre a razão humana e a inteligência divina. E ainda que,
dotados de uma capacidade incomum, passássemos trezentos bilhões de anos estudando,
nosso verbo continuaria falho e não encontraríamos termos para nos expressarmos
devidamente a respeito de Deus.
A essência divina é definida pela
teologia como o Ser subsistente por Si mesmo,9 que Se conhece, Se entende e Se
ama por inteiro, tal qual é.10 Desde toda a eternidade, isto é, sem haver
princípio, Deus, contemplando-Se, Se compreende inteiramente enquanto Ser
incriado, necessário e superexcelente, que não depende de ninguém, que se
basta; e nisto consiste sua felicidade absoluta. Contudo, seu próprio
conhecimento é tão rico que gera uma Segunda Pessoa, o Filho, idêntico a Ele e
tão feliz como Ele. Ambos Se amam, e deste mútuo amor entre Pai e Filho procede
uma Terceira Pessoa, também feliz: o Espírito Santo. Assim, há três Pessoas,
num só Deus, a Se conhecerem, Se entenderem e Se amarem, numa perpétua alegria,
sem origem no tempo e sem fim, eternamente!
Pois bem, em seu infinito amor,
Deus quis dar às criaturas inteligentes, Anjos e homens, um empréstimo de sua
luz intelectual, o lumen gloriæ, para que possam nela entendê-Lo tal qual Ele
Se entende - guardadas as proporções entre criatura e Criador -, já que,
segundo explica São Tomás, "a capacidade natural do intelecto criado não
basta para ver a essência de Deus" sem ser aumentada pela "graça
divina". 11 E por mais que seccione sua luz, Ele sempre permanecerá
imutável e em nada será diminuído, pois é infinito.
O eminente dominicano padre
Santiago Ramírez define o lumen gloriæ como "um hábito intelectual
operativo, infuso per se, pelo qual o entendimento criado se faz deiforme e
torna-se imediatamente disposto à união inteligível com a própria essência
divina, e se torna capaz de realizar o ato da visão beatífica".12
Esse "fazer-se
deiforme" significa que quem entra na bem-aventurança e contempla a Deus
face a face se torna semelhante a Ele, como afirma São João na continuação de
sua Epístola: "Sabemos que, quando Jesus se manifestar, seremos
semelhantes a Ele, porque O veremos tal como Ele é" (I Jo 3, 2b). Só no
Céu veremos a Nosso Senhor Jesus Cristo de fato, uma vez que enquanto
viveu na Terra ninguém O viu tal qual Ele é. Nem mesmo na Transfiguração,
quando tomou, enquanto qualidade passageira, a claridade inerente ao corpo
glorioso13 - como tivemos oportunidade de analisar em comentários
anteriores -, São Pedro, São Tiago e São João chegaram a contemplar a essência
de sua divindade, pois, do contrário, a alma deles ter-se-ia destacado do
corpo.
"Todo o que espera n'Ele
purifica-se a si mesmo, como também Ele é puro" (I Jo 3, 3). Quanto mais
aumenta em nós a esperança desse encontro e dessa visão, e, portanto,
quanto mais crescemos no desejo de nos entregarmos a Deus e de Lhe pertencermos
por inteiro na caridade, mais nos purificamos do amor-próprio e do egoísmo
profundamente enraizados em nossa natureza. Devemos ter bem presente que
não existem três amores, mas apenas dois: o amor a Deus levado até o
esquecimento de si mesmo ou o amor a si levado até o esquecimento de
Deus.14
O homem, ainda quando privado da
graça, tem uma apetência de infinito que não descansa enquanto não for saciada
pela união com Deus. É o que revela Santo Agostinho, em suas Confissões:
"E eis que Tu estavas dentro de mim e eu fora, e fora Te procurava; e, disforme
como era, lançava-me sobre as coisas belas que criaste. Tu estavas comigo,
mas eu não estava contigo. Retinham-me longe de Ti aquelas coisas que, se
não estivessem em Ti, não existiriam".15 Essa felicidade imensa e
indescritível, para a qual todos nós somos criados, só a
atingiremos seguindo os passos daqueles que nos precederam com o sinal da
Fé e que já gozam dela, por sua fidelidade a tal chamado.
Peçamos que essa bem-aventurança
eterna seja também para nós um privilégio, pelos méritos de Nosso Senhor Jesus
Cristo, das lágrimas de Nossa Senhora e da intercessão de todos os Santos
que hoje comemoramos, a fim de um dia nos encontrarmos em sua companhia
no Céu. Enquanto lá não chegarmos, podemos nos relacionar com essa enorme
plêiade de irmãos celestes, membros do mesmo Corpo, por um canal direto
muito mais eficiente do que qualquer meio de comunicação moderno: a oração, o
amor a Deus e o amor a eles enquanto unidos a Deus. Tenhamos a certeza de
que, do alto, eles nos olham com benevolência, rogam por nós e nos protegem.
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