Comentários ao Evangelho Jo 2, 13-22
13 Estava próxima a
Páscoa dos judeus e Jesus subiu a Jerusalém. 14 No Templo, encontrou os
vendedores de bois, ovelhas e pombas e os cambistas que estavam aí sentados.
15 Fez então um chicote
de cordas e expulsou todos do Templo, junto com as ovelhas e os bois; espalhou
as moedas e derrubou as mesas dos cambistas. 16 E disse aos que vendiam pombas:
“Tirai isto daqui! Não façais da casa de meu Pai uma casa de comércio!”
17 Seus discípulos
lembraram-se, mais tarde, que a Escritura diz: “O zelo por tua casa me
consumirá”. 18 Então os judeus perguntaram a Jesus: “Que sinal nos mostras para
agir assim?” 19 Ele respondeu: “Destruí este Templo, e em três dias o
levantarei”.
20 Os judeus disseram: “Quarenta
e seis anos foram precisos para a construção deste Santuário e Tu o levantarás
em três dias?” 21 Mas Jesus estava falando do Templo do seu Corpo. 22 Quando
Jesus ressuscitou, os discípulos lembraram-se do que Ele tinha dito e
acreditaram na Escritura e na palavra d’Ele (Jo 2, 13-22).
Senhor, purificai este templo!
Mons João Clá Dias
I – A cabeça e mãe de todas as igrejas
A Igreja celebra
com esplendor a festa da Dedicação da Basílica de São João de Latrão, que
ostenta o título honoríficode “Omnium urbis et orbis ecclesiarum mater et
caput”, ou seja, “Mãe e cabeça de todas as igrejas da cidade [de Roma] e
do mundo”. É ela a Catedral do Papa, ao contrário do que se costuma pensar
devido ao papel hoje desempenhado pela Basílica de São Pedro, a qual, na verdade,
é apenas uma das quatro basílicas papais da Cidade Eterna.
Até o exílio dos Papas em Avignon, no século
XIV, viviam eles no Palácio de Latrão, antiga propriedade da família Laterano, nome
pelo qual ficou conhecido. O cônsul romano Pláucio Laterano, por suspeita de
conspiração, foi morto pelo infame Nero que lhe confiscou os bens, dentre os
quais esse edifício, na mesma época em que movia a perseguição aos cristãos.1 Não
imaginava o tirano que, anos mais tarde, tudo aquilo seria doado à Igreja pelo
Imperador Constantino, e tornar-se-ia residência dos sucessores de Pedro e primeira
Basílica da Cristandade. O Papa São Silvestre dedicou-a no ano 324.2
Nesta Basílica encontramos não só vestígios
de variados estilos artísticos, graças às obras de embelezamento e ampliação realizadas
ao longo dos séculos, mas também numerosas e valiosíssimas relíquias. Dentre as
principais contam-se a mesa onde foi celebrada a Santa Ceia (cf. Mt 26, 20-28;
Mc 14, 18-24; Lc 22, 14-17), parte do tecido purpúreo com que os soldados
revestiram o Divino Redentor na Paixão (cf. Mc 15, 17; Jo 19, 2), as cabeças de
São Pedro e de São Paulo, e a taça na qual São João Evangelista, segundo uma
antiga tradição, foi obrigado a tomar um veneno que, por milagre, não lhe fez
mal.
Um elo entre o Céu e a Terra
Por ser a Catedral de Roma, São João de
Latrão possui um estreito vínculo com a pessoa do Sumo Pontífice, elo entre nós
e a eternidade: “tudo o que ligares na Terra será ligado nos Céus, e tudo o
desligares na Terra será desligado nos Céus” (Mt 16, 19). Devido a esta
prerrogativa a Basílica passou a ser um símbolo da unidade da Igreja.
Convém ainda levarmos em consideração que,
em sua sabedoria, a Santa Igreja estabelece o Ciclo Litúrgico, dentre outras razões,
com o intuito de prolongar pelos séculos afora as graças concedidas no momento
histórico comemorado. E assim como ao celebrar cada Natal com verdadeira
piedade somos favorecidos com as bênçãos dadas a Nossa Senhora, São José e aos
pastores no Presépio, na festa de hoje somos convidados a participar das graças
e da alegria sobrenatural dos católicos de Roma quando o Papa tomou posse de sua
sede episcopal oficialmente, podendo gozar de plena liberdade religiosa.
Nascida sob o signo da perseguição
Para melhor compreendermos a importância
desta data, lembremo-nos de que a Santa Igreja Católica nasceu sob o signo da
perseguição, em circunstâncias por vezes tão violentas que obrigavam os
primeiros cristãos a se refugiar nas catacumbas — os cemitérios cristãos — para
praticar o culto.3 Era costume na Roma Antiga escavar extensas galerias
subterrâneas, verdadeiros labirintos, nas quais sepultavam os mortos. Transitar
por elas era perigoso, pois quem o fizesse podia se perder com facilidade, sem ter
como retornar. Nas épocas de perseguição, os irmãos que nos precederam com o
sinal da Fé precisavam embrenhar-se nessas profundezas — naquele tempo sem
dispor de luz elétrica —, com grande risco de serem denunciados, presos e
supliciados. No Coliseu e no Circo Máximo grande número de cristãos
manifestaram sua adesão à Fé com a própria vida, ao serem mortos pelas feras na
arena diante do público ou em meio a terríveis tormentos.
Nas catacumbas também se comemorava devotamente o aniversário
do martírio dos que tinham derramado o sangue para dar testemunho de Cristo,
junto a seus restos mortais lá conservados, costume que deu início à veneração
das relíquias dos Santos. Três séculos de fidelidade nessa situação nos
mostram, sem dúvida, a extraordinária força da Igreja em seu nascedouro!
A liberdade de culto outorgada por Constantino com a
promulgação do Edito de Milão, em 313, por influência de sua mãe Santa Helena,
e o consequente pulular de incontáveis igrejas por todo o império — dentre as
quais a Basílica de Latrão ocupa um posto proeminente — representaram para os
fiéis indescritível alívio e alegria. Expressivo é o testemunho de Eusébio de
Cesareia ao retratar o exultar do povo cristão com o advento dessa nova era da
História da Igreja: “um dia esplendoroso e radiante, sem nuvem alguma que lhe
fizesse sombra, ia iluminando com seus raios de luz celestial as igrejas de
Cristo pelo universo inteiro, […] transbordávamos de indizível gozo, e para
todos florescia uma alegria divina em todos os lugares que pouco antes se
encontravam em ruínas pela impiedade dos tiranos, como se revivessem, depois de
uma longa e mortífera devastação. E os templos surgiam de novo desde os
fundamentos até uma altura imprevista, e recebiam uma beleza muito superior à
dos que anteriormente haviam sido destruídos”.4
Por isso a festa da Dedicação da Basílica do Latrão foi instituída em Roma, expandindo-se mais tarde, e hoje
consideramos com júbilo esse templo grandioso, que até nossos dias impressiona por
seu esplendor.
II – Leituras altamente simbólicas
Para a Missa desta festa foram
escolhidas leituras altamente simbólicas, sendo a primeira delas extraída da Profecia
de Ezequiel (47, 1-2.8-9.12), belíssima e rica em significado. Narra ele a
visão em que é levado ao Templo de Jerusalém, de onde manam águas que vão se
tornando cada vez mais caudalosas a ponto de ser impossível transpô-las.
Trata-se de uma imagem da fundação da Igreja Católica.
Por sua influência benéfica, rios de graça
são derramados sobre o mundo, fecundando suas margens e fazendo nascer árvores pródigas
em frutos: as virtudes, os dons de Deus, o bom exemplo e a santidade que ela
promove e alimenta. De seus ramos brotam folhas com propriedades curativas,
pois se uma alma adquire um vício, sofre uma queda ou apresenta qualquer
fraqueza, junto a ela está a Igreja com os remédios para saná-la: a Penitência
e os demais Sacramentos, a direção espiritual e a oração.
As figuras — tomadas de elementos da
natureza — empregadas nesta passagem mostram a força do Corpo Místico de
Cristo, que não só goza de imortalidade, mas está em contínuo desenvolvimento, comparável
a um rio já impetuoso em suas origens, que se vai alargando, fertiliza,
transforma e dá vida a tudo. Essa é a Igreja!
Outro importante aspecto desta leitura é a
sua harmoniosa conjugação com o Evangelho, dando o tonus de como este
deve ser analisado.
A polêmica marca o início da vida pública de Jesus
Estava próxima a Páscoa dos judeus e
Jesus subiu a Jerusalém.
A
magnífica cena da expulsão dos vendilhões do Templo, descrita por São João,
ocorreu durante a primeira Páscoa da vida pública de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Cumpre ressaltar que, segundo consta nos outros Evangelhos, Jesus tomou
semelhante atitude nesse recinto sagrado ao menos duas vezes. Uma foi no início
de sua pregação, narrada neste trecho, e outra alguns dias antes da paixão. Em
ambas as situações encontramos Nosso Senhor manifestando um aspecto de sua
divina personalidade que desconheceríamos se não fosse a circunstância referida
pelo texto sagrado: a cólera do próprio Deus, a indignação do Onipotente, vista
através dos véus da natureza humana.
Intolerável profanação do lugar santo
No
Templo, encontrou os vendedores de bois, ovelhas e pombas e os cambistas que
estavam aí sentados.
As
necessidades do culto acima descritas deram margem ao estabelecimento de um
verdadeiro comércio de animais e de uma praça de cambistas no átrio do Templo,
chamado Pátio dos Gentios, onde o acesso aos estrangeiros ainda era permitido.
Ali a movimentação se assemelhava à de um mercado ou de uma feira cheia de vida
dos dias de hoje, acrescida de manifestações do temperamento oriental, muito
comunicativo e afeito a cânticos e discussões. A soma de todos esses elementos
resultava num tumulto inadmissível naquele recinto incomparavelmente sagrado, a
ponto de a simples lembrança desses fatos nos dar a impressão de um Templo
profanado.
Mãos que abençoam também castigam
Fez
então um chicote de cordas e expulsou todos do Templo, junto com as ovelhas e
os bois; espalhou as moedas e derrubou as mesas dos cambistas.
Como devemos entender o fato de Jesus, a substância da própria Bondade,
dar vazão ali à sua divina cólera? Ele, de quem São
Pedro diz que “pertransivit benefaciendo — andou fazendo o bem” (At 10, 38).
Ele, que Se comove às portas da cidade de Naim com a desolação de uma viúva junto
ao féretro de seu filho, e o ressuscita (cf. Lc 7, 12-16); quando o vento e a
procela ameaçam a barca dos discípulos, uma ordem sua acalma por completo a
tempestade (cf. Mt 8, 26); preocupa-Se com cinco mil homens e suas respectivas
famílias que O seguem a um lugar deserto, e lhes proporciona alimento (cf. Mt
14, 15-21); mais tarde, o timbre de sua voz, tão imponente e poderosa, ergue do
sepulcro o amigo cuja morte O fizera chorar, morto havia quatro dias: “Lazare,
veni foras! — Saia fora, Lázaro!” (Jo 11, 43). Ninguém recorre a Ele sem receber
um benefício. Tão longe leva o Mestre a disposição de nos socorrer, que
promete: “Qualquer coisa que Me pedirdes em meu nome, vo-lo farei” (Jo 14, 14).
Caminhando para o fim da vida terrena, desejoso de afastar a perturbação das
almas dos Apóstolos, diz: “Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz” (Jo 14, 27); e
no Cenáculo, após a Ressurreição, volta a confortá-los antes de partir para o
Pai: “A paz esteja convosco!” (Lc 24, 36).
Aquelas mãos
curam todos os que se aproximam acometidos por qualquer enfermidade: tocam os
olhos de um cego e este recupera a vista (cf. Mc 8, 25), os ouvidos de um
surdo-mudo e, somando-se o gesto à palavra “Éfeta! — Abre-te!”, ele não só ouve
como também fala (cf. Mc 7, 34-35). Mãos que livram a sogra de Pedro de uma
febre (cf. Mt 8, 14-15), e ao segurarem a mão da falecida filha de Jairo
restituem-lhe a vida (cf. Lc 8, 54-55).
Aquelas mãos feitas para abençoar, em
determinado momento decidem dar uma bênção especial, com um hissope peculiar:
um látego. Jesus, conhecedor de todos os segredos da natureza, terá escolhido
fibras adequadas para tecer esse instrumento com maestria única. Não imaginemos
que Ele acariciasse com suavidade e doçura as costas dos que lá se encontravam.
Pelo contrário, usa de violência pondo-os para fora e derrubando as mesas dos
cambistas, de maneira a fazer rolar as moedas pelo chão. Segundo se calcula,
eram nada menos que duas mil pessoas transitando nessa área, e Cristo as
expulsou sozinho, valendo-Se apenas de um chicote. Isso nos ajuda a medir não
apenas a intensidade da cólera e a força de seu braço, mas, sobretudo, o ímpeto
vindo do fundo de sua Alma, inteiramente aliado à ira divina. E assim como
sabemos existir n’Ele quatro formas de conhecimento — o divino, o beatífico, o
infuso e o experimental —, poderíamos considerar sua indignação sob cada um
desses aspectos.
O grave pecado dos fautores do comércio
E
disse aos que vendiam pombas: “Tirai isto daqui! Não façais da casa de meu Pai
uma casa de comércio!”
As
palavras de Nosso Senhor — “Tirai isto daqui!” — são impositivas,
permitindo-nos comprovar mais uma vez seu império absoluto. Em seguida acusa-os
por terem transformado um local tão sagrado quanto a casa de seu Pai numa “casa
de comércio”. No futuro, ao expulsar de novo os vendilhões, Ele externará sua
ira pela reincidência neste grave pecado, denominando o Templo conspurcado com
um termo ainda mais incisivo: “covil de ladrões” (Mt 21, 13; Mc 11, 17; Lc 19,
46).
De fato, essa situação criada com o passar
dos anos proporcionava renda ilícita não só aos vendedores e cambistas, mas em
primeiro lugar aos membros do Sinédrio, de maneira particular à família
sacerdotal de Anás. Haviam eles instituído um sistema de controle desse
comércio e um monopólio sobre todos os trâmites ali efetuados. Livres de
qualquer concorrência, aproveitavam-se das exigências legais para impor valores
inflados, configurar roubos e extorquir do povo as mais variadas quantias.7
A verdadeira origem da indignação do Divino Mestre
Seus
discípulos lembraram-se, mais tarde, que a Escritura diz: “O zelo por tua casa
me consumirá”.
O
modo de proceder de Nosso Senhor sugere uma pergunta: deixou Ele de ser bondoso
naquela ocasião? Ele, Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, não pode ter
nenhuma reação desequilibrada ou defectiva; n’Ele tudo é perfeito, por ser a
própria Perfeição. Como discernir, então, a sua misericórdia no momento em que
emprega a força física? Como descobrir as qualidades do “Príncipe da Paz” (Is
9, 5) n’Aquele que empunha um açoite?
Quando se fala em paz, se esquece com
frequência da célebre definição de Santo Agostinho: “pax omnium rerum,
tranquilitas ordinis — a paz é a tranquilidade da ordem”.8 Onde não se
estabelece a tranquilidade, ainda que haja ordem, não há paz; e tampouco se
deve afirmar que ela existe havendo tranquilidade, mas sem ordem. Ora, os
vendilhões atentavam contra a ordem e, além disso, perturbavam a tranquilidade.
Cabia a Cristo, sublime modelo para todos os homens, constituir-Se como exemplo
também dos que são chamados a utilizar a força para instaurar a disciplina e
manter a paz, o que muitas vezes só é possível através de métodos impositivos.
Sendo Deus, Ele poderia ter agido nessa hora
como mais tarde no Horto das Oliveiras. Ao se aproximarem os enviados dos pontífices
e dos fariseus para prendê-Lo, Ele Se adiantou e perguntou: “A quem buscais?”.
Responderam eles “A Jesus Nazareno”, e Ele disse “Ego sum! — Sou Eu” (Jo 18,
4-5). No mesmo instante todos caíram com a face por terra, pelo impacto de sua
personalidade. Agora, entretanto, Ele mesmo confecciona e usa um chicote.
Em nossos dias, muitos manifestam
dificuldade em compreender a conduta do Salvador nesse episódio, por não
vislumbrarem ali os efeitos de sua misericórdia. Lembremo-nos de que Jesus
assim procedeu para benefício das almas, com enorme empenho em perdoar,
corrigir e conceder a salvação. É com o intuito de favorecer todos, movido pelo
mesmo zelo que manifesta pela casa de seu Pai, que vê maculada por um tumulto
comercial e por interesses alheios à Religião.
Os judeus pedem um sinal
Então
os judeus perguntaram a Jesus: “Que sinal nos mostras para agir assim?”
Com a insolente atitude de exigir de Nosso Senhor um
sinal, na realidade eles pedem explicações sobre sua autoridade e a razão que O
levou a expulsar os comerciantes. Querem uma prova, fiéis ao mau costume —
característico de seus antepassados, desde remotos tempos — de acreditar tão só
pela confirmação de acontecimentos espetaculares. Custa-nos avaliar que espécie
de fé possuíam essas almas, pois se para crer precisavam testemunhar milagres
estrondosos, onde estava o mérito?
No entanto, se realmente esperavam um sinal, deveriam
reconhecer que o fato de um só homem afugentar milhares de pessoas era a
demonstração claríssima de estar agindo por força sobre-humana. Numa época em
que não existiam as armas de fogo, Ele nem sequer Se
serviu da espada ou da lança, mas teceu um chicote de cordas, de si
insuficiente para amedrontar todos os presentes. Em tese, bastaria dominar o
seu braço para impedi-Lo de continuar e a vitória dos negociantes estaria
assegurada. Eles poderiam tê-Lo prendido, interrogado e levado à morte no mesmo
dia.
É
evidente que não o tentaram fazer porque estavam tomados de pavor. Na verdade,
ninguém teve coragem de se levantar contra Ele! Que outro sinal buscavam? Essa
falta de reação dos maus, paralisados pelo temor imposto por Nosso Senhor, era
demonstração de um tão extraordinário poder, que bem poderia afirmar Jesus: “O
sinal que vós quereis é o medo que tendes de Mim!”. Todavia, Ele vai
atendê-los, concedendo por misericórdia aquilo que pedem.
Um Templo superior ao Templo
Ele
respondeu: “Destruí este Templo, e em três dias o levantarei”. Os judeus
disseram: “Quarenta e seis anos foram precisos para a construção deste
Santuário e Tu o levantarás em três dias?”. 21 Mas Jesus estava falando do
Templo do seu Corpo. Quando Jesus ressuscitou, os discípulos lembraram-se do
que Ele tinha dito e acreditaram na Escritura e na palavra d’Ele.
A
enigmática resposta do Filho de Deus fê-los pensar, não sem grande culpa, que
Ele pretendia destruir o Templo. Esta blásfema suposição seria mais tarde alegada
junto ao sumo sacerdote e a todo o Sinédrio para endossar a sua condenação à morte
(cf. Mt 26, 61; Mc 14, 58). Tanto a intenção quanto o dito do Divino Mestre
foram, na verdade, bem diferentes.
Qual era a prova que Ele haveria de dar? A
sua própria Ressurreição, pois os judeus iam matá-Lo, destruindo o Templo “do
seu Corpo”, e Ele triunfaria da morte, cumprindo com exatidão esta profecia.
Nosso Senhor Jesus Cristo era plenamente
homem, tinha Corpo e Alma, com inteligência, vontade e sensibilidade. Como todos
nós, padecia cansaço, fome, sede e outras consequências do estado de
contingência que assumira — exceto o pecado (cf. Hb 4, 15) —, como recorda São
Cirilo de Alexandria: “Com efeito, está dito que Ele
teve fome, que suportou as fadigas de longas caminhadas, o abatimento, o temor,
a aflição, a agonia e a morte na Cruz. […] E assim como Ele é completo em sua
divindade, também é completo em sua humanidade”.9
A partir do momento em que Deus, Segunda
Pessoa da Santíssima Trindade, Se encarna e assume a nossa natureza, seu Corpo
passa a ser o Templo perfeitíssimo de Deus — não apenas do Filho, mas também do
Pai e do Espírito Santo — estabelecido na face da Terra como pedra angular,
peça principal e Cabeça da Santa Igreja. Esse Templo, encontramo-Lo ainda hoje
de forma invisível, mas real, na Eucaristia. E Deus deseja que se construam
templos para abrigar o Templo verdadeiro da Santíssima Trindade, o Corpo,
Sangue, Alma e Divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo, oculto sob as Sagradas
Espécies.
III – Nós também somos templos de Deus
O ensinamento do Apóstolo na segunda leitura
(I Cor 3, 9c-11.16-17) nos dá o desfecho da Liturgia de hoje: “Acaso não sabeis
que sois santuário de Deus e que o Espírito de Deus mora em vós?” (I Cor 3, 16).
Pelo Sacramento do Batismo também nós nos tornamos templos de Deus, a um título
muito superior ao do templo puramente material ou do tabernáculo. Este, por
mais nobre e valioso que seja, não pode manter um colóquio com Cristo Jesus nem
ser inabitado por Ele, e apenas O protege.
O primeiro Templo de Jerusalém, considerado
como o ponto de referência máximo em todo Israel, foi destruído. Após a
reedificação ele já não possuía a magnificência de outrora, e houve quem
lamentasse o fato. Contudo, o profeta Ageu chegou a afirmar que o edifício anterior
não conhecera a grandeza reservada ao segundo (cf. Ag 2, 9), a glória de ser
visitado pelo Homem-Deus. De modo análogo, o templo que somos nós atinge a
plenitude de sua beleza pela infusão da graça divina e pelos efeitos da
presença do Corpo, Sangue, Alma e Divindade do Senhor na Sagrada Eucaristia.
Nosso templo deve ser sempre embelezado
Por
isso, devemos cuidar desse templo vivo como Jesus cuidava de Si mesmo e estar
totalmente dispostos a vencer qualquer paixão ou má inclinação para mantê-lo intacto,
lembrando a justa ameaça de São Paulo: “Se alguém destruir o santuário de Deus,
Deus o destruirá, pois o santuário de Deus é santo, e vós sois esse santuário” (I
Cor 3, 17).Na medida em que somos íntegros, enriquecemos e aprimoramos nosso
templo com vitrais, pinturas, símbolos, cores e belos mármores, e conforme
crescemos em piedade eucarística, entregamo-nos a Nosso Senhor, fugimos do
pecado e combatemos os nossos defeitos e caprichos, mais as suas paredes se
tornam abençoadas e somos penetrados pela presença da Santíssima Trindade, que
passa a falar com mais frequência no interior da alma.
Não permitamos a profanação desse templo
Portanto,
que a acolhida de Jesus em nosso templo não se assemelhe à que Lhe foi dada no
Templo de Jerusalém, que, embora O tenha recebido na Apresentação e nas suas
múltiplas pregações, depois não quis reconhecê-Lo como Redentor, Sumo Pontífice
e seu verdadeiro Senhor. Não profanemos nosso recinto sagrado, como não pode
ser profanado o tabernáculo que contém o Santíssimo Sacramento.Não permitamos
de maneira alguma o estabelecimento de um comércio ilegítimo em nossa alma,
pior que o câmbio de moedas ou a venda de animais: a admiração pelas coisas do
mundo que nos distanciam de Deus. Em quantas ocasiões da vida, especialmente
neste tempo em que o pecado campeia por toda a Terra, corremos o risco de
transformar nosso templo num “covil de ladrões”! Tomemos muito cuidado nessas
circunstâncias para não trocarmos a “moeda” da eternidade pela do mundo.
Dois caminhos a escolher
Hoje somos colocados diante de dois
caminhos: um no qual nos constituímos o templo vivo de Nosso Senhor Jesus
Cristo que será glorificado, outro o do Templo de Jerusalém, que recusou o Homem-Deus
e foi destruído, sem dele restar “pedra sobre pedra” (Lc 21, 6). Não é possível
enveredarmos por uma terceira via: ou é a da aceitação
plena ou a da rejeição total, iniciada muitas vezes por uma adesão a meias.
Lembremo-nos de que toda mediocridade na busca da plenitude do espírito do
Redentor significa uma recusa, e neste caso torna-se necessária uma reconstrução.
Portanto, esta festa nos conduz a um exame de consciência e a uma tomada de
atitude face à santidade séria, forte, rigorosa, vibrante e entusiasmada que Nosso
Senhor espera de nós. Deus fez de nós um templo e, em certo momento, deveremos
restituí-lo em ordem. Afinal, o templo do corpo foi-nos dado para que nós nos
adoremos nele ou para rendermos culto ao Criador?
Senhor, purificai este templo!
Se
em alguma ocasião nosso templo foi profanado, hoje é o dia de pedir: “Senhor,
vinde com vosso chicote e expulsai os vendilhões que estão dentro de mim!”.
Este é o dia da expulsão dos vendilhões do templo de nossa alma, caso tenhamos
permitido que nela se fizesse comércio, transformando-a num “covil de ladrões”.
Aproveitemos esta festa para assimilar com ardor o ideal de integridade e
sermos verdadeiramente honestos, abandonando qualquer má inclinação que possa
macular, ainda que seja num ponto mínimo, o vitral de nosso templo. Façamos
desde já o propósito de tratar nosso corpo com todo respeito e veneração, e de
nunca usá-lo para ofender a Deus. É preferível morrer que pecar, pois ao
manter-se livre de qualquer comércio, o templo de cada um ressuscitará com a
glória extraordinária que lhe é prometida por Aquele que recebeu do Pai o poder
de fazer justiça.
1) Cf. DARRAS, Joseph-Epiphane. Histoire générale de l’Église depuis la création
jusqu’a nos jours. Paris: Louis Vivès, 1889,
t.VI, p.183.
2) A doação havia sido feita pelo imperador ao Papa
São Melquíades. Entretanto, este faleceu no início do ano 314 e foi em tempos
de seu sucessor, o Papa São Silvestre, que a Basílica foi propriamente
construída, decorada e consagrada.
3) Cf. LLORCA, SJ, Bernardino. Historia de la Iglesia Católica. Edad Antigua. Madrid:
BAC, 1950, t.I, p.355-357.
4) EUSÉBIO DE CESAREIA. História
Eclesiástica. X, 1,8; 2,1. Madrid: BAC, 1973, v.II, p.592-593.
5) Cf. FILLION,
Louis-Claude. Vida de Nuestro Señor Jesucristo. Infancia y Bautismo. Madrid: Rialp, 2000, v.I, p.340-341; GOMÁ Y TOMÁS, Isidro. El Evangelio explicado. Años primero y segundo de la vida
pública de Jesús. Barcelona: Rafael Casulleras, 1930, v.II, p.10.
6) Cf. TUYA, OP, Manuel de. Biblia
Comentada. Evangelios.
Madrid: BAC, 1964, v.V, p.1015- 1016;
SCHUSTER, Ignacio; HOLZAMMER, Juan B. Historia
Bíblica. Barcelona: Litúrgica Española, 1935,
t.II, p.152, nota 1; FILLION, op. cit., p.338; WILLAM, Franz Michel. A vida de Jesus no país e no povo de Israel. Petrópolis: Vozes, 1939, p.103-104.
7) Cf. EDERSHEIM,
Alfred. The Life and
Times of Jesus the Messiah. Grand Rapids (MI): Eerdmans, 1976, v.I, p.370-373;
RICCIOTTI, Giuseppe. Vita di Gesù Cristo. 14.ed.
Città del Vaticano: T. Poliglotta Vaticana, 1941, p.49-50; 66; 69; BONSIRVEN, SJ,
Joseph. Textes
rabbiniques des deux premiers
siècles chrétiens. Roma:
Pontifício Instituto Bíblico, 1955, p.206; 594; Le
judaïsme palestinien au temps de Jésus-Christ.
2.ed. Paris:
Gabriel Beauchesne, 1935, t.II, p.132-133.
8)
SANTO AGOSTINHO. De Civitate Dei. L.XIX, c.13, n.1. In: Obras. Madrid: BAC, 1958, v.XVI-XVII, p.1398.
9) SÃO CIRILO DE ALEXANDRIA. Dialogue sur l’Incarnation du
monogène, 692c; 694d. In: Deux Dialogues Christologiques. Paris: Du Cerf, 2008, p.233; 241
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