Continuação dos comentários ao Evangelho XXVII Domingo do Tempo Comum – Ano C - 2013 - Lc I 7, 5-10
por Mons João Clá Dias
por Mons João Clá Dias
Nosso Senhor já os advertira, em ocasiões anteriores,
a respeito do risco do amor desordenado às riquezas – conforme já
consideramos nas parábolas do administrador infiel e a do pobre
Lázaro -, consequência de uma fé apequenada. Os discípulos foram,
pois compreendendo a necessidade dessa fundamental virtude, sem a
qual seria impossível perseverar até o fim de sua missão. Ensina
São Tomás que essa é a principal virtude para ter-se o
desprendimento dos bens materiais, bem como para a prática das
outras virtudes, as quais, nas palavras de Royo Marín, “ nela se
estribam, como o edifício sobre os seus alicerces […]. Informada
pela caridade, dela vivem e, graças a ela, progridem”. 10 É,
portanto, indispensável pedi-la a Deus, conforme nos demonstra o
Evangelho desta Liturgia.
A fé é passível de
crescimento?
Naquele tempo, os Apóstolos
disseram ao Senhor: “Aumenta nossa fé!”
Mas era preciso pedir esse aumento
de fé, se já a possuíam em seu interior? Todavia, o pedido dos
Apóstolos tinha fundamento. A virtude infusa da fé é passível de
acréscimo ou de diminuição, e tanto pode se fortalecer como
enlanguescer-se. Segundo explica ainda são Tomás, 11 ela cresce ou
diminui de forma proporcional ao número de verdades conhecidas. Por
esse motivo, além dos atos de piedade e devoção praticados -os
quais tambén tornam a fé mais robusta -, fortalecerá essa virtude
quem estudar a Doutrina Católica, ampliando o quadro de verdades
conhecidas pela própria inteligência.
Aumentaremos a fé se adaptarmos
nossa vida diária – trabalhos, obrigações e responsabilidades
-à fé professada, pois, se houver dicotomia entre esta virtude e a
vida prática, entre aquilo que cremos e o que fazemos, a fé
terminará por evaporar-se. É necessário, portanto, que a fé coroe
todas as nossas atividades, como destaca o padre Royo Marín: “as
almas que tiverem progredido na vida cristã, procupar-se-ão com o
incremento desta virtude fundamental até conseguir que toda a sua
vida esteja informada por um autêntico espírito de fé que as
transponha a un plano estritamente sobrenatural, a partir do qual possam ver e julgar todas as coisas”.12 Contudo, tal conduta não é
tão fácil de ser mantida. As dificuldades do dia a dia nos fazem
chegar a uma conclusão: é indispensável suplicar com fervor o
auxilio divino. Agiram, então, muito bem os Apóstolos ao pedir o
aumento de sua fé, a qual, segundo podemos julgar pela resposta de
Nosso Senhor, era bem frágil...
Era preciso ter fé antes de pedir
seu aumento
6 O Senhor respondeu: “Se vós
tivésseis fé, mesmo pequena como un grão de mostarda, poderíeis
dizer a esta amoreira: 'Arranca-te daqui e planta-te no mar', e ela
vos obedeceria”.
Sua
resposta reveste-se de certa dureza. De fato, a fé de seus
escolhidos era ainda menor que o minúsculo grão de mostarda, quase
do tamanho de uma partícula de açúcar. Ora, bastava uma fé de
diminuta dimensão para mandar uma árvore sólida como a amoreira
jogar-se ao mar. Afirmação surpreendente! A amoreira desta passagem
de São Lucas provavelmente corresponde ao Shiquemah
-sicômoro-,
árvore de raízes vigorosas, que se fixam no chão com toda a força.
13 Seria possível que alguém realizar tamanha proeza? Entretanto,
não fez o Mestre tal declaração apenas de forma metafórica. A fé
é, de fato, capaz de mover montanhas, pois por detrás dela está o
poder de Deus, e quando alguém se une à força divina pela robustez
de tão valiosa virtude, torna-se forte quanto é forte o próprio
Deus.
Ante
essa concepção verdadeira da fé, Nosso Senhor contrapõe o
conceito errado do mundo a respeito do relacionamento do homem com
Deus.
Uma
situação humana, imagem do relacionamento sobrenatural
“Se
algum de vós tem um empregado que trabalha a terra o cuida dos
animais, por acaso vai dizer-lhe, quando ele volta do campo: 'Vem
depressa para a mesa?' 8 pelo contrário, não vai dizer ao
empregado: 'Prepara-me o jantar, cinge-te e serve-me, enquanto eu
como e bebo; depois disso tu poderás comer e beber?' 9 Será que vai
agradecer ao empregado porque fez o que lhe havia mandado? 10 Assim
também vós: Quando tiverdes feito tudo o que vos mandaram, dizei:
'Somos servos inúteis; fizemos o que devíamos fazer”.
O Divino Mestre tem diante de si
ouvintes com acentuado senso hierárquico, portanto, sem os
igualitarismos dos dias hodiernos, e para quem todas as funções
sociais eram muito bem definidas. Por essa razão pôde fazer uso,
nesta parábola, da figura do servo, 14 ou seja, daquele homem sem
direitos, cujo trabalho consistia em cuidar dos animais e dos campos
de seu senhor, sem que jamais alguém se tivesse posto o problema de
ocorrer a hipótese por Ele levantada. Embora entre o povo eleito o
tratamento dispensado aos escravos fosse incomparavelmente mais
compassivo do que entre os povos pagãos, 15 era inconcebível
imaginar o próprio servo sentado à mesa do amo. Ao voltar do
trabalho do campo, o criado se lavava e cingia os rins para servir o
patrão. Só depois tomava sua refeição.
Esta cena, narrada por Cristo com
sabedoria infinita, ilustra qual deve ser nosso relacionamento com
Deus. Quando conseguimos cumprir inteiramente os Mandamentos ou
nossas próprias obrigações, devemos reconhecer não ter sido por
esforço próprio, nem como fruto de qualidades ou capacidades
pessoais, mas, sim, da graça. Antes mesmo de termos realizado algum
ato bom, Nosso Senhor já nos pagou com antecipação, concedendo-nos
sua ajuda. Por isso, mesmo tendo feito o bem, não temos o direito,
por nós mesmos, de merecimento algum. Com efeito, assim o declara
Santo Ambrósio, Padre e Doutor da Igreja: “ninguém se glorie de
seu bom proceder, pois por uma justa dependência devemos nosso
serviço ao Senhor. […] Ele não pode admitir que te apropries do
mérito de uma ação ou trabalho, já que, enquanto estejamos vivos,
é dever nosso trabalhar sempre. Portanto, vive de acordo com a
convicção de seres um servo ao qual se encomendaram muitos afazeres
[…] Não te acredites mais do que és pelo fato de te chamarem
filho de Deus -deves reconhecer, sim, a graça, mas não podes
esquecer a tua natureza -, nem te enchas de vaidade por ter servido
com fidelidade, pois esse era teu dever”. 16 Ainda quando cumprimos
nossas obrigações, continuamos sendo servos inúteis, ensina-nos
hoje Jesus.
Concepçao comercial da
religião
Dada a natureza decaída pelo
pecado, a tendência geral do homem é não reconhecer que tudo lhe
vem do Alto, forjando para si uma religião marcada pela mentalidade
comercial. Muitas vezes transferimos o intercâmbio mercantilista de
interesses -tão profundo nas relações humanas de todos os tempos-
para o trato com Deus, e queremos apresentar-nos diante d'Ele
cobrando aquilo que julgamos pertencer-nos pelo fato de termos feito
algum bem. Na realidade, ninguém seria capaz de pronunciar sequer
uma jaculatória ou fazer um sinal da cruz com mérito sobrenatural
se não estivesse unido, e até “enxertado”, em Nosso Senhor
Jesus Cristo, que afirmou: “Sem mim, nada podeis fazer” (Jo 15,
5). No campo sobrenatural, todos os nossos méritos estão ligados a
Ele e nos são transferidos por Ele. Somos meros servos! D'Ele
recebemos o ser, a redenção e o sustento da graça. 17
A imagem desta parábola
encontra-se, então, ainda distante da realidade, pois o servo ali
figurado conserva alguma liberdade enquanto nós estamos dentro de
uma escravidão compulsória -nossa origem é a escravidão-, a qual,
após a Redenção, mais se intensificou.
Deus nos premeia por aquilo que
Ele mesmo nos concede
O homen deve, pois, considerar-se
um ser contingente, dependente dos outros e consciente de que, em
relação a Deus, essa dependência deverá ser absoluta. Se
existimos, é porque em primeiro lugar Ele existe e, em sua infinita
bondade, tirou-nos do nada, sem nosso consentimento, para dar-nos uma
alma na qual pudesse ser introduzida a vida da graça. Ele nos
redimiu e a cada instante sustenta nosso ser. Tudo é, portanto,
gratuito, e quando agimos com perfeição estamos tão só
restituindo-Lhe aquilo que d'Ele mesmo recebemos. Con quanta
propriedade afirma a Sagrada Liturgia: “na assembleia dos Santos,
vós sois glorificado e, coroando seus méritos, exaltais vossos próprios dons!”. 18 De fato, quando as obras humanas merecem algum
prêmio da parte de Deus, isso é devido aos dons ou graças dadas
com antecipação por Ele mesmo. Sendo Ele a Humildade e a
Generosidade, faz-nos trabalhar para sua glória, ajuda-nos a
praticar atos de virtude e ainda nos torna merecedores de sua
recompensa, escondendo-Se, como se os merecedores fôssemos nós.
Entretanto, tal prodigalidade
divina exige de nossa parte reciprocidade: nunca nos apropriemos
daquilo que pertence só a Deus. Somos “servos inúteis”, devendo
pedir muito a virtude da fé, a fim de compreender que Ele é o
único a levar tudo adiante, e a nós cabe apenas o cumprimento de um
mandato ou desígnio seu. Assim, não podemos exigir d'Ele, como se
fosse nossa, a glória dos nossos pretensos méritos. Só com essas
disposições de alma estaremos tomando a atitude perfeita no
relacionamento com Ele.
A perfeita contingência em
relação a Deus
Uma só criatura soube ter fé
ardente e compreender a contingência de modo perfeito, em sua
plenitude, tendo sido objeto de um dom insuperável da parte de Deus,
“porque olhou para a humilhação de sua escrava”. (Lc 1, 48).
Somente Ela teve a noção clara e sublime do seu nada e de sua
dependência completa do Altíssimo. A partir desse reconhecimento do
próprio nada, Deus se inebriou de amor por Ela, escolhendo-A e
constituindo-A um paraíso para Si, superior ao dos próprios Anjos. A
estes fora dado o Céu Empíreo, a nós o Paraíso Terrestre, mas
para a Santíssima Trindade foi escolhida Aquela que disse “eis
aqui a escrava do Senhor” (Lc 1, 38): Maria Santíssima! Belíssimo
comentário a esse respeito nos deixou São Luís Maria Grignion de
Montfort: “A divina Maria, direi com os santos, é o paraíso
terrestre do novo Adão, onde Ele se encarnou por obra do Espírito
Santo, para realizar ali maravilhas incompreensíveis; é o excelso e
divino mundo de Deus, que encerra belezas e tesouros inefáveis; a
magnificência do Altíssimo, onde Ele ocultou, como em seu próprio
seio, seu Filho único e, n'Ele, tudo o que há de mais excelente e
precioso”. 19
Nunca
perder a Fé perante as dificuldades
O Evangelho deste domingo nos
ensina o papel fundamental da fé, na gozosa dependência de Deus. As
desilusões e dificuldades humanas, imprevistas ao longo da vida, são
permitidas pela Providência Divina para marcar em nós o momento
culminante no qual Deus ou o demônio se torna vencedor no campo de
batalha interior da alma. Ao presenciar o desabamento dos sonhos
construídos sobre os fundamentos frágeis de nosso instinto de
sociabilidade desregrado, a fé pode diminuir e ficarmos egoístas,
procurando a segurança nos bens materiais. Não obstante, se, pelo
contrário, mantivermos a confiança -esperança fortalecida pela fé-
recomendada por Nosso Senhor neste trecho do Evangelho, teremos a
possibilidade de uma vida feliz nesta terra, ainda que sempre
acompanhados da cruz, de toda e qualquer circunstância, devido a
nosso estado de prova. Só essa fé firme e sem faça nos faz viver,
de fato, numa submissão total a Deus, tornando-nos capazes de
enfrentar os sofrimentos com ânimo.
Crescer na fé significa, muitas
vezes, presenciar ou sofrer um desastre e manter, no fundo da alma,
uma confiança inabalável. Cena mais pungente não poderia enfrentar
quem, ao chegar ao Calvário, se deparasse com Jesus crucificado
entre dois ladrões! No entanto, com a alma partida diante de tal
drama, encontraria consolo se soubesse pensar nas maravilhas que
daquela Cruz iriam surgir, tal como fazia Nossa Senhora, que ali
estava, de pé, sem esmorecer. Sejamos confiantes, pois os desastres
são permitidos por Deus para se obter algum bem maior. A fé é o
unguento para todas as nossa dores, é o ânimo e a alegria em meio
aos sofrimentos deste grande deserto -a existência no exílio
terreno- , até atingirmos um dia a felicidade eterna, na glória
celestial.
A fé conquistará o mundo!
Vivemos em uma época de ateísmo
em que a fé vai cada vez mais se esvaecendo no coração das
pessoas. O terrível orgulho predomina em face de Deus, e o mundo não
aceita nem adere às suas verdades. Diante de tal humanidade afastada
de seu próprio fim, nosso anseio de católicos é o de ver a
Boa-nova do Evangelho conquistar a face da Terra, de maneira a
produzir os mais belos resultados em matéria de santidade. Temos bem
presente o quanto as condições do momento estão longe de tornar
isso naturalmente possível. Por isso, nos é pedido um dos maiores
atos de fé jamais vistos e exigidos até os dias atuais.
Se os Apóstolos – escolhidos
diretamente por Nosso Senhor – pediram um aumento de sua fé, como
não o devemos pedir para nós? Peçamos, pois, a Ele, uma fé
robustíssima, suplicando: Senhor, Vós sois Todo-Poderoso e criastes
o dom da fé para infundi-lo nas almas; Vós tendes a possibilidade
de criar essa virtude em grau infinito. Dai-nos, então, a fé de que
tanto precisamos! Vinde e concedei-nos um fulgor de fé como nunca
existiu na história!
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