Comentários ao Evangelho Lc 9, 11b - 17 Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo ( Corpus Christi)
Naquele tempo, 11b Jesus
acolheu as multidões, falava-lhes sobre o Reino de Deus e curava todos os que
precisavam.
12 A tarde vinha chegando. Os
doze Apóstolos aproximaram-se de Jesus e disseram: “Despede a multidão, para
que possa ir aos povoados e campos vizinhos procurar hospedagem e comida, pois
estamos num lugar deserto”. Mas Jesus disse: “Dai-lhes vós mesmos de comer”.
Eles responderam: “Só temos cinco pães e dois peixes. A não ser que fôssemos
comprar comida para toda essa gente”.
14 Estavam ali mais ou menos
cinco mil homens. Mas Jesus disse aos discípulos: “Mandai o povo sentar-se em
grupos de cinquenta”.15 Os discípulos assim fizeram, e todos se sentaram. 16
Então Jesus tomou os cinco pães e os dois peixes, elevou os olhos para o céu,
abençoou-os, partiu-os e os deu aos discípulos para distribuí-los à multidão.
17 Todos comeram e ficaram
satisfeitos. E ainda foram recolhidos doze cestos dos pedaços que sobraram (Lc
9, I lb- I 7).
Ao criar o homem com necessidade
de se alimentar, quis Deus estabelecer na nutriçõo o sustento da vida natural.
Esta situação é imagem da vida da graça, cuja base também é um alimento celeste:
a Eucaristia.
A ALIMENTAÇÃO É CONATURAL
AO HOMEM
A vida no Paraíso proporcionava
ao homem inúmeros gozos e alegrias, pois a harmoniosa disposição de todas as coisas
o cumulava de bem-estar. Nossos primeiros pais encontravam-se cercados de muitos
privilégios concedidos por Deus, com vistas a que a felicidade da existência
terrena os levasse a amá-Lo de maneira mais perfeita. Um desses deleites, quiçá
pouco considerado, porém valioso, era a facilidade com que podiam servir-se dos
melhores alimentos. Ensina São Tomás de Aquino que, sendo a alimentação parte
do mandato divino (cf. Gn 2, 16), o homem pecaria caso não comesse.’ Não era necessário,
entretanto, trabalhar para preparar o alimento, pois a própria natureza
oferecia as mais deliciosas iguanas, prontas para serem degustadas. Prova disso
é que Adão, quando foi posto fora do Éden, escutou de Deus estas duras
palavras: “Ganharás o pão com o suor de teu rosto” (Gn 3, 19). 0 castigo revela
que antes ele o recebia sem fadiga, embora não saibamos exatamente como isso se
passava.
Com o pecado original, o homem
perdeu este e tantos outros benefícios, conforme recorda São João Crisóstomo:
“Foi como se Deus lhe dissesse: Eu te preparei, ao criar-te, uma existência
isenta de dores, de trabalho, de fadigas e inquietudes. Tu gozaste de uma felicidade
perfeita e, sem conhecer nenhuma das tristes sujeições do corpo, gozaste em
plenitude de todas as delícias da vida. Mas tu não soubeste apreciar este feliz
estado, e eis que Eu amaldiçoo a terra. Daqui em diante, se não a trabalhares e
não a cultivares, ela já não te dará como antes seus, diversos produtos; Eu
inclusive acrescentarei, aos trabalhos e penosos labores, as doenças e contínuas
fadigas, de sorte que tu não possuirás coisa alguma senão ao preço de teus
suores, e esta tão dura existência será uma contínua lição de humildade e uma
lembrança de teu nada”.2
Apesar da severidade da
repreensão, Deus agiu com misericórdia e uniu a demência ao rigor, não
submetendo a humanidade a uma alimentação mesquinha. Vemos que, ao longo dos séculos,
levando em conta essa necessidade do homem, foi Ele unindo as bênçãos
concedidas a um povo, a um grupo ou a uma família, à fácil e abundante produção
dos alimentos. Por exemplo, ao prometer aos judeus uma terra em sinal de
Aliança, ressaltou que nela correria “leite e mel” (cf. Ex 3, 8.17; Dt 6, 3; Nm
13, 27).
O alimento, alegria para o homem
A comida de boa qualidade e
farta proporciona alegria ao homem. Isso se verifica quando temos, por exemplo,
a possibilidade de ir a um bom restaurante e provar algum prato especialmente
saboroso: saímos dali satisfeitos e até generosos. Pitoresca é a atitude de
Santo Inácio de Loyola, que costumava convidar comprazido o jovem Benedetto
Palmio para participar de suas refeições pelo gosto de vê-lo comer bem,
estimulando-o a que o fizesse à vontade e sem se ruborizar.3 Além disso, em qualquer
cultura, quando alguém deseja comemorar um acontecimento social importante,
como uma formatura ou um casamento, costuma oferecer um banquete, convidando
familiares e amigos para festejar em torno da boa mesa. O alimento possui a
indispensável função de sustentar a vida e a saúde, é verdade, mas não é este
seu papel mais elevado, uma vez que tem a utilidade social de favorecer o
convívio dos que participam da mesma refeição. Ele torna possível um particular
entendimento entre as pessoas.
O Príncipe de Talleyrand,
grande diplomata francês, quando tinha casos importantes a tratar com
representantes de outras nações mandava pedir ao rei que lhe cedesse seu
cozinheiro pessoal e se munia das melhores especialidades culinárias nacionais,
tais como vinhos, champanhes e queijos. E era durante uma festa, ao redor da
mesa repleta de iguanas, que resolvia os assuntos mais intrincados da alta
diplomacia. Uma espirituosa afirmação feita por ele a Luís XVIII, antes do crucial
Congresso de Viena, deixou consignada sua convicção da eficácia desse método:
“Sire, eu preciso mais de panelas do que de instruções escritas”.4 A mesa é um
meio de facilitar o convívio e amenizar os ânimos, coisa que nem sempre se
obtém com meras palavras.
A Santa Igreja, portanto, com
muita propriedade, escolheu para a Solenidade de Corpus Christi a narração
evangélica na qual o próprio Criador do Céu e da Terra oferece àqueles que O
seguiam uma incomparável refeição. E prenunciadora do banquete espiritual de
seu Corpo e Sangue, no qual Ele é o Divino Anfitrião e ao mesmo tempo o
Alimento. Poderá haver em torno de uma mesa convívio mais íntimo e sublime?
UM MILAGRE
PORTENTOSO PREPARA A EUCARISTIA
O milagre da multiplicação dos
pães é o único que está relatado nos quatro Evangelhos, pormenor bastante expressivo
para indicar sua importância. O fato se situa no período áureo da vida pública
de Nosso Senhor e concorreu, em grande medida, para consagrar em Israel sua fama
de Profeta e Taumaturgo. Nessa ocasião Ele partira acompanhado apenas pelos
Apóstolos e Se encontrava na retirada região de Betsaida Júlia, a nordeste do Lago
de Tiberíades. Havia pouco ocorrera a morte de São João Batista promovida por
Herodes, cujas curiosas cogitações agora se voltavam para o Divino Redentor, um
Personagem infinitamente maior que o Precursor. Por isso o governante estava à espreita
de uma oportunidade para aproximar-se de Jesus, motivado, ao que tudo indica,
por levianas ou perversas intenções. A sabedoria d’Aquele que sonda os rins e
corações, no entanto, não ignorava a astúcia deste homem, e “com esse rápido
afastamento parece ter querido evitar a vizinhança do tetrarca”,5 diz Fillion.
Contudo, se o pretensioso Herodes perdeu a ocasião desejada, o mesmo não
aconteceu com o povo, que logo ficou sabendo do paradeiro da barca do Mestre e
pôs-se a caminho, por terra, para encontrá-Lo.
A recompensa dos que procuram o Reino de Deus
Naquele tempo, 11b Jesus acolheu as multidões,
falava-lhes sobre o Reino de Deus e curava todos os que precisavam.
Qual foi a razão que levou a
multidão a seguir Nosso Senhor? Como narram os evangelistas, não houve um só
doente que, ao aproximar-se d’Ele com fé, pedindo a cura, ficasse sem ser
atendido. Isso impressionava a opinião pública, dado que naquele tempo a
medicina ainda não atingira grande progresso, o que concorria para tornar os
milagres mais impactantes. Ele supria a ineficácia da ciência com um olhar, uma
imposição de mãos, um desejo ou um toque que fosse, e curava todos num só
instante. Aquela gente estava deslumbrada com os sinais divinos que transpareciam
na humanidade de Cristo e dava-se conta do quanto os ensinamentos d’Ele
mereciam todo crédito e acatamento e O seguia.
2 A tarde vinha chegando. Os doze Apóstolos
aproximaram-se de Jesus e disseram: “Despede a multidão, para que possa ir aos povoados
e campos vizinhos procurar hospedagem e comida, pois estamos num lugar
deserto”.
Nosso Senhor ensinou: “Buscai o
Reino de Deus e a sua justiça e o resto vos será dado por acréscimo” (Mt 6,
33). A multidão, em consonância com o conselho divino, acompanhava Jesus
naquela circunstância pela convicção de que Ele era um extraordinário Profeta.
Estavam desejosos de curas, sim, mas também buscavam a verdade, a doutrina,
queriam conhecer mais a Deus e as realidades eternas.
Os Apóstolos, porém,
encontravam-se preocupados com as providências materiais. Não atinavam que se o
Mestre curava daquela maneira podia também realizar outros milagres e quiçá temessem
ser mandados providenciar alimento para tão grande multidão. Por esse motivo propõem
logo a Nosso Senhor despedir o povo, numa fuga sutil dessa responsabilidade.
Ora, Ele podia perfeitamente matar a fome de todos, porque quem cura um coxo,
um cego ou um surdo-mudo é capaz de remediar também outra doença muito mais leve
chamada fome. Todavia, como o que Ele tinha em mente era formar os Apóstolos,
deu-lhes uma resposta surpreendente.
Nosso Senhor põe os Apóstolos à
prova
13 Mas Jesus disse: “Dai-lhes vós mesmos de comer”.
Eles responderam: “Só temos cinco pães e dois peixes. A no ser que fôssemos comprar
comida para toda essa gente”. 14a Estavam ali mais ou menos cinco mil homens.
O Salvador ordenou aos Apóstolos,
então, que dessem de comer à multidão, para pô-los à prova, pois sabia o que ia
fazer (cf. Jo 6, 6). Mas eles, desconfiados, comentavam que, como disse Filipe
(cf. Jo 6, 7), mesmo se tivessem duzentas moedas de prata não seria suficiente
para comprar pão e distribuir um pedaço para cada um dos que ali estavam: cinco
mil homens, além das mulheres e crianças, o que perfazia um número bem maior. E
ainda que possuíssem o dinheiro, onde encontrar tamanha quantidade de pão à venda
naquela hora tardia? Santo André inclusive sublinha a situação, dizendo que o
único vendedor de alimento no meio daquela aglomeração era um menino que
carregava cinco pães e dois peixes (cf. Jo 6, 8-9). “Acreditava” — comenta São
João Crisóstomo — “que o Autor dos milagres com pouco faria pouco, e com mais
faria mais; o que, com toda clareza, não era assim”.6
Sendo Deus, Nosso Senhor tinha
domínio absoluto sobre a matéria e podia tirar criaturas do nada, sem
necessitar dos cinco pães e dois peixes, uma vez que sua própria vontade era
suficiente para produzir o alimento que saciasse a multidão. “Com efeito,
era-Lhe fácil fazer surgir indistintamente, de muitos ou de poucos, uma grande
quantidade de pães, já que não precisava de matéria-prima”.7 No entanto, Ele
pediu aos Apóstolos o que estava ao alcance deles, embora fossem tão só esses
parcos víveres. Aprendamos, pelo exemplo que esta passagem nos oferece, a não
negar até o pouco que temos quando o pede Jesus, lembrando-nos de que este pouco
pode servir de pretexto para que Ele realize grandes maravilhas.
14b Mas Jesus disse aos discípulos: ‘Mandai o povo
sentar-se em grupos de cinquenta’. Os discípulos assim fizeram, e todos se sentaram.
Nessa simples recomendação, o
Divino Mestre manifesta seu perfeito senso de ordem. Para evitar febricitação
ou correria, e para que a distribuição fosse feita com calma e até de modo cerimonioso,
dispõe que as pessoas se sentem em grupos. Ademais, segundo observa também São João
Crisóstomo, Ele agiu dessa maneira “para mostrar que, antes de comer, deve-se
agradecer a Deus”.8
Milagre que é imagem da eucaristia
6 Então Jesus tomou os cinco pães e os dois peixes,
elevou os olhos para o céu, abençoou-os, partiu-os e os deu aos discípulos para
distribuí-los à multidão. I7a Todos comeram e ficaram satisfeitos.
Difícil é não relacionar os gestos
de Jesus nesta cena com aqueles que mais adiante adotaria para instituir o
Sacramento da Eucaristia. Ia Ele, com isso, preparando as multidões para o grande
mistério que seria revelado algum tempo depois. A magnitude do milagre é
indicada pelas palavras: “todos comeram e ficaram satisfeitos” ou, como escreve
São João, “tanto quanto queriam” (6, 11). Podemos supor que cada um dos
presentes também obteve, além da medida para matar a fome do momento, uma
quantidade excedente para levar para os seus lares. Tão imenso benefício
afluía, nas palavras de São Gregório de Nissa, “dos celeiros inesgotáveis do
divino poder”.9
7b E ainda foram recolhidos doze cestos dos pedaços que
sobraram.
Mais uma vez o texto evangélico
deixa transparecer em Nosso Senhor o apreço pela ordem e até pela limpeza, e o
quanto Ele é amante da disciplina, não deixando as sobras pelo chão. Foram
recolhidos os pedaços restantes que encheram doze cestos. Quis Jesus que o
número coincidisse com o dos Apóstolos, para que eles mesmos carregassem os
fardos e comprovassem a dimensão do milagre de que antes desconfiaram. “Isso
ocorreu com vistas à instrução dos discípulos. [...] Pelo mesmo motivo aconteceu
que o número de canastras fosse exatamente igual ao dos discípulos. [...] Não
me admira apenas a grande quantidade de pães, como também, e ao lado disso, a
exatidão das sobras, de sorte que não fez com que sobrassem nem mais nem menos,
mas justamente o que queria”.10
Fica patente o poder de Nosso
Senhor Jesus Cristo sobre a matéria em geral, sobre o alimento e, em concreto,
sobre o pão, pelo modo com que Ele o multiplica conforme seus desígnios, não
permitindo sequer que os restos sejam menosprezados. Ao instituir a Eucaristia,
mais tarde, também não queria que os fragmentos do Pão consagrado fossem
tratados sem veneração, como pretendem certos incrédulos que defendem a
Presença Real nas espécies eucarísticas só durante o ato litúrgico. Igualmente
é digno de nota que Ele, por um princípio simbólico, não permitiu jogar nada
fora para nos ensinar que não se deve perder ninguém. Ainda que uma alma esteja
trilhando as vias do pecado, é preciso empreender todos os esforços para
recuperá-la, pois não é outro o divino anseio: “Daqueles que me destes, Eu não
perdi nenhum” (Jo 18, 9).
Ele quis que o milagre se desse
com todas essas características para facilitar a compreensão do grande dom que
em breve lhes ofereceria: a Sagrada Eucaristia. Tendo demonstrado possuir
tamanho poder sobre o pão, tornava patente que, se o desejasse, poderia retirar
dele a substância original para dar lugar a seu Corpo, Sangue, Aima e
Divindade,11 embora permanecessem os mesmos acidentes — sabor, aparência,
textura, odor. Dessa forma, Jesus criava as condições para que as pessoas com fé
correspondessem à dádiva inigualável que, desde toda a eternidade, havia
preparado.
O IMENSO DOM DA EUCARISTIA
A partir deste episódio que
contemplamos aqui pela pena de São Lucas, São João, por sua vez, em seu Evangelho,
demonstra na sequência da sua narração que com esse milagre Nosso Senhor tinha
em vista a revelação formal da Eucaristia. O milagre da multiplicação dos pães
é apenas uma introdução — pálida, mas quão cuidadosa — escolhida pelo Redentor
para sublinhar o tema eucarístico e desenvolvê-lo com extraordinária clareza no
discurso sobre o Pão da Vida (cf. Jo 6,22-59). Eis a razão de ser lembrado pela
Igreja ao comemorar a Solenidade de Corpus Christi.
O significado profundo do milagre
está no fato de Deus ter criado o homem com a necessidade digestiva — como
aludimos a princípio — porque iria oferecer-Se em alimento. Ele, que poderia
ter-nos criado com a subsistência baseada somente no ar, por exemplo, quis que
tivéssemos a necessidade de comer, para ficar patente que, assim como na
alimentação se encontra a base da vida natural, a essência da vida da graça
está na Eucaristia.’2
Um banquete para a alma
A Eucaristia é um sagrado banquete
— “o sacrum convivium”,’3 diz a bela
antífona composta por São Tomás para o Ofício Divino desta Solenidade —, no
qual temos especial convívio com Nosso Senhor Jesus Cristo; um banquete divino porque
é oferecido por Deus, realizado com Deus, a propósito de Deus. Incomparavelmente
mais que uma champanhe de excelente qualidade, mais que um caviar russo, mais
do que qualquer iguaria que se possa conceber, na mesa da Eucaristia é
oferecido o Corpo, Sangue, Alma e Divindade do Salvador. E o próprio Deus
dando-Se a nós como alimento de valor infinito, cujo efeito os curtos limites
de nossa inteligência não al-cançam. É o mysterium fidei. Se São Tomás afirma
que a menor participação na vida da graça supera todo o universo criado,14 que
dizer do valor do próprio Criador da graça? A Eucaristia é, por conseguinte, o
mais importante de todos os Sacramentos quanto à substância, por consistir no
próprio Deus e Autor da graça, enquanto os demais apenas transmitem a graça, a
participação criada na vida divina incriada.’5 E por isso, ensina ainda o Doutor
Angélico, que todos os outros Sacramentos existem em função da Eucaristia,
embora não seja esta a porta dos demais, como o é o Batismo.16 Todas as riquezas
da Terra são como poeira perto do Santíssimo Sacramento, manifestação do
extraordinário amor de Deus para conosco!
Os efeitos do mais excelso Sacramento
Qual é, então, a união com
Nosso Senhor produzida por tão alto dom? Diz o Evangelho: “Assim como o Pai que
me enviou vive, e Eu vivo pelo Pai, assim também aquele que comer a minha Carne
viverá por mim” (Jo 6, 57). Sempre que estamos na graça de Deus, Ele permanece
em nós e nós permanecemos n’Ele, pois por sua divindade é o único Ser que pode
inabitar em nós. Essa união se intensifica na hora da Comunhão, quando, além da
inabitação da Santíssima Trindade, acrescenta-se a presença do Corpo glorioso,
Sangue e Alma de Nosso Senhor Jesus Cristo: “mens impleturgratia”,’7 a alma
fica repleta de graça. “Não há Sacramento mais salutar que este para purificar
os pe cados, dar novas forças e enriquecer o espírito com a abundância de todos
os dons espirituais”,’8 afirma o Doutor Angélico. É um verdadeiro manancial de toda
graça, pelo que, em rigor, uma só Comunhão seria suficiente para nos tornar
santos!
Esta união é tão alta que custa
encontrar um exemplo na natureza que se aproxime dessa realidade sobrenatural.
Uma esponja seca logo se embebe ao ser lançada na água, mas a união com Cristo
na Eucaristia é muito maior, pois na esponja a água ocupa espaços vazios, na
Eucaristia, porém, Ele nos “embebe” por inteiro. Para empregar outra imagem, é
como se tirassem todo o nosso sangue por uma das veias e por outra fosse
introduzido o Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo. A fim de exprimir tão
sublime realidade, São Cirilo de Alexandria propõe a metáfora da cera: “Assim
como a cera derretida acrescentada a outra cera se mistura perfeitamente,
constituindo-se uma só, também aquele que recebe o Corpo e o Sangue do Senhor
fica unido a Ele tão estreitamente, que Cristo está nele e ele em Cristo”.19 E uma
união de tal maneira forte que bem poderíamos chamar de “mútua compenetração”,
a qual dura enquanto as espécies eucarísticas permanecem em nós.
Não é sem razão que continua
dizendo com agudeza São Tomás, na mesma antífona, que a Eucaristia é “penhor de
nossa salvação e ingresso na vida eterna”.20 De fato, para aí chegarmos há uma
série de condições, entre as quais a de comungar. Enquanto estamos na Terra,
vivemos fora da verdadeira Pátria: o Céu. Deus nos faz passar pelas aflições
deste vale de lágrimas porque nos dará tanta glória que, se não tivéssemos
experimentado a dor, julgaríamos merecer o prêmio oferecido, o qual, na verdade,
está muito acima de nós.
FAÇAMOS CRESCER ESSA SEMENTE!
Quando analisamos uma semente,
sabemos que dali pode nascer uma enorme árvore. E a graça é uma semente da
glória. Se nesta vida formos fiéis às graças recebidas para nos manter com
integridade dentro da prática da virtude e obedientes à Lei de Deus, protegeremos
nossa semente e a faremos germinar. Basta colocá-la na terra e tratá-la com
esmero que ela se desenvolverá. Pelo contrário, pequenos atos de inveja, de
comparação, uma mentira sem importância ou, pior ainda, um pecado mortal, tiram
o viço daquele germe e impedem que dele nasça a árvore, ou seja, que desabroche
para a glória eterna. Como devemos agir para conservar nossa semente, de tal
forma que não só venha a dar uma árvore, mas que seja repleta de frutos?
Através da comunhão frequente. A comunhão é penhor de glória futura, é como uma
certidão assinada por Deus de que nos serão abertas as portas do Céu. Todos
aqueles que se alimentam do Corpo e do Sangue de Nosso Senhor vão ressuscitar
no último dia e obterão a eternidade feliz, pois Ele prometeu: “Quem come minha
Carne e bebe meu Sangue terá a vida eterna e Eu o ressuscitarei no último dia”
(Jo 6, 54). Quem vai nos ressuscitar é Ele. E assim como acreditamos que Ele
está na hóstia e no vinho consagrados, que é realmente a Segunda Pessoa da
Santíssima Trindade encarnada, que morreu na Cruz para nos redimir e agora está
sentado à direita de Deus Pai, também devemos crer com toda a segurança na sua
promessa de sermos ressuscitados em corpo glorioso se seguirmos sua recomendação.
Sem embargo, comprovamos, com
pesar, como esta dádiva é esquecida e, por vezes, até desprezada, pois a
maioria das pessoas não dá suficiente valor à Eucaristia e negligencia a Comunhão,
além de abandonar Jesus Hóstia no sacrário. Se soubéssemos, por exemplo, que tomando
todos os dias um elixir misterioso nos transformaríamos na pessoa mais rica,
mais bela ou mais inteligente do mundo, estaríamos dispostos a qualquer sacrifício
para obter tal bebida. Ora, com a Eucaristia não se trata de ficarmos ricos, belos
ou inteligentes, mas sim de receber a maior riqueza, beleza ou inteligência que
possa haver: a eterna bem-aventurança.
Nosso Senhor adverte para o
valor desse dom na parábola do banquete (cf. Mt 22, 2-14), na qual um rei
convida seus súditos para participar de uma grande festa. Deus chama todos os homens
para o banquete eterno, e este começa aqui na Terra, com a Eucaristia. Podemos
comungar sempre que quisermos. O Santíssimo Sacramento permanece à nossa disposição
em inúmeras igrejas e muitos ainda fazem o mesmo que os servos maus da
parábola, que preferiram tratar de seus negócios e deixaram o rei sozinho. Se
tivéssemos a possibilidade de comungar uma única vez durante a vida poderíamos
dar toda a nossa existência por muito bem empregada. E Ele Se oferece a nós
diariamente... Que insondável misericórdia!
Ação de graças junto com Maria
Diante de tanta sublimidade,
como deveria ser nossa acção de graças ao comungar? Deveria ser um êxtase de
amor! Feita com todo carinho e devoção, profunda e séria, cheia de piedade,
encanto, fogo e entusiasmo, e não um palavrório vazio, entrecortado por
distrações, alheio ao tesouro que levamos dentro de nós.
Com que recolhimento e adoração
terá comungado Maria Santíssima! O Prof. Plinio Corrêa de Oliveira compôs uma
bela oração dirigida a Nossa Senhora, na qual interpreta a súplica de um fiel
que gostaria de receber a Eucaristia com disposições semelhantes às d’Ela:
“Minha Mãe, quando Jesus estava em vosso claustro, Vós encontrastes inúmeras
coisas para Lhe dizer; vede, entretanto, que misérias eu digo no momento em que
O recebo na Sagrada Eucaristia! Por isso eu Vos peço: falai por mim, minha Mãe,
e dizei-Lhe tudo quanto eu quereria ser capaz de dizer, mas não o sou. Adorai-O
como eu quereria adorá-Lo; dai-Lhe a ação de graças que eu quereria dar-Lhe;
apresentai-Lhe atos de reparação pelos meus pecados e pelos do mundo inteiro, com
um calor de reparação que, infelizmente, eu não tenho” 21.
Sejamos, a exemplo de Nossa
Senhora, muito cuidadosos em nossa ação de graças: compenetrados do quanto
temos para agradecer a Jesus, para louvá-Lo e adorá-Lo, sem nos esquecer de
pedir perdão por nossas faltas. Que esta Solenidade de Corpus Christi seja a
ocasião ideal para afervoramos nosso coração com um amor mais intenso pela Sagrada
Eucaristia, pois é neste alimento celeste que encontraremos as forças para
enfrentar as dificuldades da vida, até alcançarmos a eternidade feliz. Guiados pelo
insuperável exemplo de Maria, tenhamos a firme convicção de que Ele se compraz
com a ação de graças de um pecador que se reveste dos méritos d’Ela: “Devemos
pedir que Nossa Senhora esteja espiritualmente presente em nossa Comunhão a fim
de que preencha, de algum modo, o infinito espaço que nos separa de seu Divino
Filho, o qual nos acolherá, satisfeito por havermos recorrido à sua Mãe. Ele
então nos dirá: ‘Tu és um filho de Maria, minha Mãe, pede-me o que queres” .22
Além dos pedidos individuais que podemos e devemos fazer, imploremos a graça de
realizar com fruto tudo o que estiver ao nosso alcance para a maior glória de
Deus e exaltação da Santa Igreja.
1) Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma
Teológica. I, q.97, a.3, ad 3.
2) SÃO JOÃO CRISÓSTOMO. Homilice in Genesim.
In Cap. III Genes., hom.XVII, n.9: MG 53, 146.
3) Cf.
GARCÍA-VILLOSLADA, SJ, Ricardo. San Ignacio de Loyola. Nueva Biografía. Madrid:
BAC, 1986, p.598.
4)
CASTELOT, André. Talleyrand ou le cynisme. Paris: Perrin, 1980, p.536.
5)
FILLION, Louis-Claude. Nuestro Señor Jesucristo según los Evangelios. Madrid:
Edibesa, 2000, p.205.
6) SÃO
JOÃO CRISÓSTOMO. Homilía XLII, n.2. In: Homilías sobre el Evangelio de San Juan
(30-60). Madrid: Ciudad Nueva, 2001, v.11,
p.141.
7) Idem, ibidem.
8) Idem, p.141-142.
9) SÃO GREGÓRIO DE NISSA, apud SÃO TOMÁS
DE AQUINO. Catena Aurea. In Lucam, c.IX, v.10-17.
10) SAO JOAO CRISÓSTOMO. Homilía XLII,
n.3. In:
Homilías sobre el Evangelio de San Juan (30-60), op. cit., p.143.
11) Cf. SAO TOMÁS DE AQUINO. Suma
Teológica. III, q.75, a.4.
12) Cf. Idem, q.79, a.1.
13) SAO TOMAS DE AQUINO. Officium
Corporis Christi “Sacerdos”. Vesp. II, antiph.
ad Magnificat.
14) Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma
Teológica. I-II, q.113, a.9, ad 2.
15) Cf. Idem, III, q.65, a.3.
16) Cf. Idem, ibidem.
17) SAO TOMÁS DE AQUINO, Officium Corporis
Christi “Sacerdos”, op. cit.
18) Idem, noct.1, lect.2.
19) SÃO CIRILO DE ALEXANDRIA. In bannis
Evangelium. L.PvÇ c.2: MG 73, 365.
20) SAO TOMÁS DE AQUINO. Officium
Coiporis Christi “Sacerdos”. Vesp. II, antipli. ad Magnificat
21) CORREA DE OLIVEIRA, Plinio.
Conferência. São Paulo, 24 mar. 1984.
22) CORREA DE OLIVEIRA, Plinio. Mane
nobiscum Domine. In: Dr Plinio. São Paulo. Ano XIII. N.143 (Fey., 2010);
p.17.
Arautos do Evangelho