Comentário ao Evangelho III – Domingo Da Páscoa
Mons. João Scognamiglio Clá Dias, EP
“E eles contaram
também o que lhes tinha acontecido no caminho, e como O tinham reconhecido ao
partir o pão. 36 Enquanto falavam nisto, apresentou-Se Jesus no meio deles e
disse-lhes: 37 ‘A paz seja convosco!’. Mas eles, turbados e espantados,
julgavam ver algum espírito. 38 Jesus disse-lhes: ‘Por que estais turbados, e
por que se levantam dúvidas nos vossos corações? 39 Olhai para as Minhas mãos e
os Meus pés, porque sou Eu mesmo; apalpai e vede, porque um espírito não tem
carne, nem ossos, como vós vedes que Eu tenho’. 40 Dito isto, mostrou-lhes as
mãos e os pés. 41 Mas, estando eles, por causa da alegria, ainda sem querer
acreditar e estupefatos, disse-lhes: 42 ‘Tendes alguma coisa que se coma?’.
Eles apresentaram-Lhe uma posta de peixe assado. 43 Tendo-o tomado, comeu-o à
vista deles. 44 Depois disse-lhes: ‘Isto é o que Eu vos dizia quando ainda
estava convosco; que era necessário que se cumprisse tudo o que de Mim estava
escrito na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos’. 45 Então abriu-lhes o
entendimento para compreenderem as Escrituras, 46 e disse-lhes: ‘Assim está
escrito que o Cristo devia padecer e ressuscitar dos mortos ao terceiro dia, 47
e que em Seu nome havia de ser pregado o arrependimento e a remissão dos
pecados a todas as nações, começando por Jerusalém. 48 Vós sois as testemunhas
dessas coisas’” (Lc 24, 35-48).
Cristo ressuscitou!
Viva é nossa Fé!
A
notícia da Ressurreição de Jesus despertou, no Cenáculo e no Sinédrio, um clima
de febricitação. O tema era o mesmo, as testemunhas, porém, bem diferentes, e
muito mais os destinatários dos relatos. O dogma da Ressurreição seria
fundamentalíssimo para o futuro da Religião e era indispensável haver vários
que comprovassem com solidez de declaração o terem visto Jesus vivo, nos dias
logo posteriores à Sua morte.
I – Os Apóstolos e o
sinédrio perante a ressurreição
A hipótese de que,
tendo morrido Jesus, Seus discípulos roubaram e ocultaram Seu corpo, com o
intuito de espalhar o boato de Sua Ressurreição, reaparece com frequência ao
longo da História.
Originou-se ela
momentos depois de o Salvador ter operado o grande milagre de retomar Sua vida
humana em corpo glorioso. Seus adversários, aqueles mesmos que haviam planejado
e exigido Sua morte, compraram o testemunho de soldados venais e — por temor e
ódio — puseram em circulação essa hipótese (cf. Mt 28, 11-15).
Ainda nos dias de
hoje, não é raro ouvir ecos dessa insolente zombaria.
O contrário de fanáticos e alucinados
Por outro lado, a
ideia de considerar a Ressurreição do Senhor um mito nascido da alucinação
sofrida por alguns poucos não esteve alheia aos próprios Apóstolos. Foi o que
se deu quando ouviram a narração feita pelas Santas Mulheres após seu encontro
com Jesus naquele “primeiro dia” (cf. Lc 24, 1-11).
Este mesmo fato
comprova que os discípulos não podem ter sido os autores de uma fábula sobre
esse milagre, pois a experiência nos mostra o quanto é em função de um grande
desejo, ou de um grande temor, que o alucinado passa a ver miragens.
Entretanto, a hipótese de que — por pura alucinação — foram os Apóstolos os
autores do “mito” da Ressurreição do Senhor não deixou de circular por meio dos
lábios e plumas de hereges, nestas ou naquelas épocas.
Na realidade, eles
não haviam compreendido o alcance das afirmações do Divino Mestre sobre o que
se passaria no terceiro dia após Sua morte e, portanto, nem chegaram a temer ou
desejar a Ressurreição. E isso a tal ponto que não hesitaram em negar a
veracidade da narração feita pelas Santas Mulheres. Ou seja, eles demonstraram
estar bem no oposto da acusação de terem sido uns fanáticos e alucinados a
propósito da Ressurreição, pois não aceitavam sequer a simples possibilidade de
ela vir a se tornar efetiva. O exemplo máximo dessa impostação de espírito
deu-se com São Tomé, o qual só se rendeu diante de um fato irrefutável: colocar
o dedo nas adoráveis chagas de Jesus.
Ademais, negar a
veracidade da Ressurreição, lançando a calúnia de ter sido ela uma invenção de
alucinados, corresponderia, ipso facto, a reconhecer a existência de um milagre
não muito menor: o da conquista e reforma do mundo, levada a cabo por um reduzido
número de desvairados.
A História nos faz
conhecer o quanto, na manhã daquele domingo, os Apóstolos estavam na dor e na
tristeza (cf. Mc 16, 10). Faltava-lhes a esperança, pois nenhum deles
acreditava na hipótese de o Mestre retornar à vida.
Os fatos se sucediam,
mas apesar de as Santas Mulheres haverem entrado no Cenáculo com muita agitação
para relatar o surpreendente acontecimento de terem encontrado vazio o sepulcro
e um Anjo em seu interior, ninguém era levado a supor a Ressurreição. Sem
embargo, Pedro e João se deslocaram, em seguida, com Maria Madalena para o
sepulcro. Ao retornarem, os dois Apóstolos, disseram ser real o relato das
Santas Mulheres: o sepulcro estava vazio (cf. Lc 24, 1-12). Os que viviam em Emaús
voltaram para casa muito abatidos, desconsolados e comentando os exageros —
segundo eles — da imaginação feminina.
Nesse meio tempo,
Maria Madalena regressou ao Cenáculo para euforicamente anunciar o encontro que
havia tido com o Senhor. Logo a seguir, as outras Santas Mulheres entraram para
narrar a aparição do Senhor quando iam pelo caminho. Contudo, mesmo somando
esses episódios aos anteriores, uma vez mais, não creram na palavra delas (cf.
Mc 16, 1-11). Pedro, porém, saiu para o sepulcro e, ao regressar, afirmou que
de fato o Senhor tinha ressuscitado, pois Ele lhe aparecera (cf. Lc 24, 34).
Uns creram, outros não (cf. Mc 16, 14).
À noite, foi a vez
dos dois discípulos de Emaús darem seu minucioso testemunho sobre o famoso
acontecimento que culminaria com a abertura dos olhos de ambos, “ao partir o
pão” (Lc 24, 35). No Cenáculo, depararam-se com todos reunidos e comentando a
aparição do Senhor a Pedro. Ainda assim, a maioria continuava negando a
Ressurreição de Jesus.
O Sinédrio considera de frente o milagre
Paralelamente ao que
se tratava com tensão, suspense e certo medo no Cenáculo, os príncipes dos
sacerdotes e o Sinédrio em geral discorriam sobre a narração feita pelos
soldados, a qual tornava patente que Jesus havia ressuscitado. Era uma hipótese
árdua igualmente para eles, mas sabiam considerá-la de frente, medindo bem
todos os prejuízos que de uma realidade dessas poderiam
decorrer.
Na cidade, celebrado
já o sábado, os trabalhos haviam sido retomados com toda normalidade, no
transcurso do dia. Só no Cenáculo e no Sinédrio dominava a febricitação,
àquelas horas de após-ceia. O tema era o mesmo, as testemunhas, porém, bem
diferentes, e muito mais os destinatários dos relatos. O dogma da Ressurreição
seria fundamentalíssimo para o futuro da Religião e era indispensável haver
vários que testemunhassem com solidez de declaração o terem visto Jesus vivo,
nos dias logo posteriores à Sua morte. Apesar de Seus insistentes avisos e
profecias, se não houvesse testemunhas visuais, difícil seria crer em tão
grande milagre.
É bem a essa altura
que, estando trancadas as portas e janelas, entrou Jesus no Cenáculo,
iniciando-se o trecho evangélico da Liturgia de hoje.
II – Aparição do Senhor no Cenáculo
As sete palavras
proferidas por Nosso Senhor no Calvário têm, com muita razão, merecido
belíssimos comentários ao longo da História. Mas a primeira palavra por Ele
dita aos Apóstolos, ao penetrar no Cenáculo, não merece menos atenção.
Jesus deseja aos Apóstolos a verdadeira paz
36 “Enquanto falavam nisto, apresentou-Se Jesus no meio
deles e disse-lhes: 37 ‘A paz seja convosco!’”.
A paz desejada por
Nosso Senhor é a única verdadeira entre tantas outras distorcidas e falsas.
Quem a deseja para os Apóstolos é o próprio Príncipe da Paz: trata-se da paz
messiânica, riquíssima de toda espécie de bens.
Cifra-se ela na
tranquilidade nascida de uma vida ordenada, como nos ensina São Tomás, ao
afirmar ser impossível sua existência fora do estado de graça: “Ninguém é
privado da graça santificante a não ser em razão do pecado, razão pela qual o
homem se afasta do verdadeiro fim e estabelece o fim em algo não verdadeiro.
Assim sendo, seu apetite não adere principalmente ao verdadeiro bem final, mas
a um bem aparente. Por esta razão, sem a graça santificante, não pode haver
verdadeira paz, mas somente uma paz aparente”.1
Quando alguém comete
um pecado, o corpo, com suas paixões, rebela-se contra a alma, à qual deveria
estar submisso. Por sua vez, a alma, que deveria estar na obediência a Deus,
fazendo Sua vontade, revolta-se contra Ele. Assim, fica destruída a ordem e, em
consequência, a própria paz. Por isso diz-nos o Espírito Santo: “Não há paz
para os ímpios” (Is 48, 22).
A única e verdadeira
paz foi, portanto, a que Jesus desejou aos discípulos, ao transpor as paredes
do Cenáculo, devido à subtileza de Seu corpo glorioso. Ali penetrou Ele da
mesma forma como um raio de Sol atravessa o cristal: sem sofrer a menor
alteração. Quão grande, divina e paternal doçura deveria caracterizar Seu
timbre de voz nessa ocasião!
Os discípulos estavam absorvidos pelo temor
“Mas eles, turbados e espantados, julgavam ver algum
espírito”.
A um medo, sucedia
outro! Os discípulos enclausuram-se, tomados pelo pânico de que o Sinédrio
pudesse acusá-los de haver roubado o corpo do Senhor, e, de forma súbita, veem
um “fantasma” que se introduz no hermético recinto através das paredes ou
portas e janelas fechadas, sem sequer se anunciar. Por mais essa reação de
todos, torna-se demonstrado o quanto lhes era difícil crer na Ressurreição do
Senhor, apesar de ser a quarta vez que Ele aparecia.
“O Evangelista indica
que o temor influiu nos discípulos para não reconhecerem Jesus, mas julgar que
estavam vendo algum espírito. O medo costuma prejudicar o conhecimento claro, e
faz com que a pessoa imagine estar vendo fantasmas ou monstros estranhos. [...]
“O motivo para os discípulos
suspeitarem que se tratava de algum espírito é certamente o fato de Ele ter
entrado — como diz São João — com as portas fechadas, coisa que só um espírito
poderia fazer”.2 Apesar de havê-los saudado com insuperável afeto e feito ouvir
o inconfundível timbre de voz do qual tantas saudades tinham, o temor os
absorvia. Outro fato determinaria tratar-se do próprio Salvador, e não de um
fantasma: Jesus penetrara em seus corações e discernira seus pensamentos, prova
patente de ser Ele o próprio Deus,3 pois isto não é possível nem a um espírito.
As chagas, símbolo do poder do Homem-Deus contra o demônio
38 “Jesus disse-lhes: ‘Por que estais turbados, e por que
se levantam dúvidas nos vossos corações? 39 Olhai para as Minhas mãos e os Meus
pés, porque sou Eu mesmo; apalpai e vede, porque um espírito não tem carne, nem
ossos, como vós vedes que Eu tenho’. 40 Dito isto, mostrou-lhes as mãos e os
pés”.
Segundo nossos
critérios estritamente humanos, parecer-nos-ia mais lógico, após a
Ressurreição, Jesus retomar Sua integridade física, fazendo desaparecer os
sinais dos tormentos de Sua Paixão. Por outro lado, considerando os sentimentos
de nossa natureza, o exibir as chagas aos discípulos poderia causar-lhes um
maior sofrimento, por relembrar-lhes os dramas daqueles terríveis dias de
provação. Mas a boa conduta teológica toma como base o princípio infalível: se
Deus fez, era o melhor; por isso, resta-nos perguntar quais os motivos de tal
conduta.
Antes de mais nada,
para Sua própria glória, como também se dará com os santos mártires ao
retomarem seus respectivos corpos, no dia do Juízo. As cicatrizes oriundas dos
tormentos por eles sofridos em defesa da Fé reluzirão por toda a eternidade.
“Com efeito, as cicatrizes das feridas recebidas por causa digna e justa são um
eloquente e glorioso testemunho dos méritos e valor de quem as ostenta”.4 Jesus
Cristo tinha todo poder para fazer desaparecer Suas chagas cicatrizadas, mas
desejou conservá-las para levar em Si próprio um magnífico símbolo de Seu poder
contra o demônio.
Obstáculo à divina cólera
Ademais, quis
beneficiar-nos junto ao Pai. A conservação dessas cicatrizes é-nos de
fundamental importância, pois constituem elas um poderoso obstáculo a que a
santa e divina cólera desabe sobre nós, devido às nossas culpas.
“Com esse detalhe,
Ele os robustece na Fé e estimula à devoção, pois, em vez de eliminar as
feridas que por nós recebeu, preferiu levá-las para o Céu e apresentá-las a
Deus Pai como resgate de nossa liberdade. Por isso, o Pai deu-Lhe um trono à
Sua direita, abraçando os troféus de nossa salvação”.5
Na Terra, servia-Se
Ele da palavra a fim de pedir ao Pai perdão para os carrascos: “Perdoai-lhes
porque não sabem o que fazem” (Lc 23, 34). No Céu, não necessita abrir os
lábios para nos obter o beneplácito: suficiente é mostrar-Lhe Suas cicatrizes.
Prova de Seu ilimitado amor de Salvador
Os Santos Padres
afirmam ter Nosso Senhor querido conservar as marcas dos tormentos sofridos por
Ele, com vistas ao Juízo Final, para a confusão dos maus e alegria dos bons.
Serão elas um símbolo de Sua infinita misericórdia, prova de Seu ilimitado amor
de Salvador, desprezado, renegado e ultrajado por alguns, e fonte inesgotável
de bênçãos e graças para outros, objeto de ação de graças e adoração por toda a
eternidade.
Confusão para uns,
júbilo para outros. Naquele dia, dies iræ, todas as criaturas humanas verão as
chagas dEle; portanto, também eu poderei adorá-las e nelas me alegrar, se tiver
andado pelos caminhos da virtude, da graça e da santidade. Através desse meio,
Jesus fortificava a Fé dos Apóstolos, eliminando qualquer pretexto para a
incredulidade, ou até mesmo para uma simples dúvida, tornando-os verdadeiras
testemunhas, pelos séculos afora. Manifesta, ademais, seu amor por eles e, em
consequência, também por nós, proporcionando-nos um poderoso estímulo para
retribuirmos Seu incomensurável afeto, pela disposição de a Ele nos entregarmos
inteiramente.
Ali, naquelas santas
chagas, encontramos uma excelente âncora para a nossa confiança. Elas como que
nos dizem: “Não temais, Eu venci o mundo!” (Jo 16, 33). Vivamos o conselho dado
por São Paulo: “Corramos com perseverança ao combate proposto, com o olhar fixo
no autor e consumador de nossa Fé, Jesus. Em vez de gozo que Se lhe oferecera,
Ele suportou a Cruz e está sentado à direita do trono de Deus” (Hb 12, 1-2).
Incutem-lhes forças para aceitar os suplícios
Não podemos descartar
a hipótese de que Jesus quis fazer os Apóstolos apalparem Suas santas chagas
para facilitar-lhes a paciência que deveriam praticar, face às imensas dificuldades
que sobre eles adviriam, na difusão do Evangelho, de parte dos tiranos, gentios
e dos seus próprios conacionais. Os sagrados estigmas, ora glorificados,
incutiam-lhes forças para aceitar com resignação, fortaleza e ânimo todos os
suplícios a eles reservados.
Dessa forma, também
nós, na adoração a essas chagas, somos estimulados a, com calma, serenidade e
paz, suportar as adversidades tão comuns à nossa passagem por este vale de
lágrimas. Quando algo desagradável, doloroso ou dramático vier atravessar nossa
caminhada, adoremos as marcas dos tormentos aceitos pelo Salvador em nosso
benefício, e saibamos, em algo, retribuir tão incomensurável misericórdia. E,
no Céu, teremos inegável alegria em considerar as chagas que nos obtiveram a
salvação eterna: “Vosso coração se alegrará e ninguém tirará vossa alegria” (Jo
16, 22).
Os Apóstolos as viram e apalparam
Teriam os Apóstolos
tocado as Chagas de Jesus? Sim, tal qual fez São Tomé. Oh felix culpa! Autores
de peso são de parecer que os Apóstolos contaram-lhe a graça de terem posto o
dedo na chaga de Jesus, e daí seu famoso dito (Jo 20, 25).
“Não só os convidara
a ver e apalpar, mas mostrou-lhes Seus pés e mãos. Não parece, pois, crível que
eles deixassem de tocá-Lo, curiosos como estavam de conhecê-Lo. Além disso, se
não O tivessem tocado, seria pelo fato de acreditarem, sem necessidade dessa
prova; consta, porém que não creram somente por vê-Lo, como se diz em
seguida”.6
Essa reação dos
Apóstolos pareceria, à primeira vista, ocasionada por pura incredulidade, mas
bem poderia ser o fruto de tal inebriamento que mais se julgavam em estado de
sonho do que de realidade. Estavam penetrados de tão grande júbilo por vê-Lo
ressuscitado, que não podiam crer no que os próprios olhos lhes mostravam.
“O Evangelista
escreve isso como sendo uma atenuante para a falta dos discípulos em não
acreditar, insinuando que, se eles não creram, foi mais pelo desejo da verdade
do que por obstinação contra a verdade. Às vezes nos acontece de não acreditar
naquilo que mais desejamos, como sucedeu a Jacó, quando lhe contaram que seu
filho José estava vivo; e com São Pedro, ao ser libertado do cárcere contra
todas as suas expectativas: julgava ser um sonho, e não realidade, o que se
passava com ele. [...]
“Tomando-se ao pé da
letra o que aqui está dito (que eles não acreditavam), não se deve estender
essa descrença a todos quantos se encontravam no Cenáculo, pois pelo menos
aqueles que disseram ter visto o Senhor — como São Pedro e talvez algum outro —
certamente criam”.7
Jesus come para fortalecer-lhes a Fé
41 “Mas, estando eles, por causa da alegria, ainda sem
querer acreditar e estupefatos, disse-lhes: 42 ‘Tendes alguma coisa que se
coma?’ Eles apresentaram-Lhe uma posta de peixe assado. 43 Tendo-o tomado,
comeu-o à vista deles”.
Uma prova evidente de
estar Jesus entre eles, em corpo e alma, não sendo, portanto, um fantasma, era
o fato de Ele comer diante de todos. Esta é uma explicação unânime entre os
comentaristas; porém, parece ser também que Jesus desejava manifestar de modo
especial Sua estima por eles, aceitando algum alimento que Lhe pudessem
oferecer.
Sendo glorioso Seu
Sagrado Corpo, não tinha Ele nenhuma necessidade de alimentar-Se; entretanto,
por pura caridade e divina didática, deseja auxiliá-los, fortalecendo-lhes a
virtude da Fé ao comer “à vista deles”. É o que a esse respeito comenta São
Cirilo de Alexandria: “Para fortalecer mais ainda sua fé na Ressurreição,
pediu-lhes algo para comer. Tratava-se de um pedaço de peixe assado, que Jesus
tomou e comeu na presença deles. Não fez isso senão para mostrar com clareza
que era Ele mesmo, ressuscitado, Ele que — como antes e durante todo o tempo de
Sua Encarnação — comia e bebia com eles”.8
Abriu-lhes o entendimento e o coração
44 “Depois disse-lhes: ‘Isto é o que Eu vos dizia quando
ainda estava convosco; que era necessário que se cumprisse tudo
o que de Mim estava escrito na Lei de Moisés, nos
Profetas e nos Salmos’”.
É interessante notar
a diferença apontada por Jesus — “quando ainda estava convosco” — entre Seu
corpo padecente e, agora, glorioso. No primeiro caso, segundo Ele mesmo afirma,
encontrava-Se em meio aos Apóstolos porque as Suas condições físicas possuíam
as mesmas características que as dos outros. Após a Ressurreição, porém, já não
mais Se acha entre eles, por não estar em carne mortal.
A Lei de Moisés, os
Profetas e os Salmos correspondem à divisão das Sagradas Escrituras, conforme o
costume hebraico: o Pentateuco, os Profetas e os livros poéticos; entre estes
últimos, os Salmos.
45 “Então abriu-lhes o entendimento para compreenderem as
Escrituras”.
Face aos
acontecimentos tão grandiosos verificados naqueles últimos dias, as revelações
feitas anteriormente pelo Divino Mestre retornavam à memória dos Apóstolos com
mais colorido e contornos mais definidos. “Quando seus pensamentos se amainaram
pelo que Jesus dissera — pois O haviam tocado e Ele tinha comido —, o Senhor
abriu-lhes o entendimento para compreenderem ter sido necessário que Ele
sofresse cravado na Cruz. Move, portanto, Seus discípulos a recordarem o que
lhes havia dito, isto é, que já lhes tinha anunciado Sua Paixão na Cruz, da
qual antecipadamente falaram os profetas. Abre-lhes, ademais, os olhos da
mente, para que compreendam as antigas profecias”.9
Precisaram eles de um
especial auxílio da graça, para entenderem as revelações. “Sem Mim, nada podeis
fazer” (Jo 15, 5), afirmara Nosso Senhor. É necessário que o próprio Cristo
Jesus nos ajude a interpretar as Sagradas Escrituras: “...o qual ensine como a
realidade se ajusta à profecia; mais ainda, nem isto nos basta, é preciso que
Ele nos abra os olhos da mente para podermos vê-Lo. É este o sentido próprio da
frase grega: ‘Abriu-lhes então as mentes, para que pudessem entender as
Escrituras’. Como observa muito bem São Beda, ‘apresentou Seu corpo para ser
visto com os olhos e apalpado com as mãos pelos discípulos. Isto não basta:
recordou-lhes as Escrituras. Ainda não é suficiente: abriu-lhes as mentes para
que entendam o que leem’”.10
46 “E disse-lhes: ‘Assim está escrito que o
Cristo devia padecer e ressuscitar dos mortos ao terceiro dia’ ...”.
São inúmeras as
profecias a esse respeito, e certamente eram muito conhecidas pelos Apóstolos.
Sobre essa matéria, é riquíssimo o caudal de comentários surgidos da pluma dos
Doutores e Padres da Igreja.
III – Jesus continua operando por meio de seus ministros
47 “...‘e que em Seu nome havia de ser pregado o
arrependimento e a remissão dos pecados a todas as nações, começando por
Jerusalém. 48 Vós sois as testemunhas dessas coisas’”.
Encerra-se o
Evangelho deste III Domingo da Páscoa com o esclarecimento formal e categórico
da parte de Jesus aos Apóstolos, a respeito da missão que lhes outorgava.
Aproveita essa ocasião para conversar sobre o mais importante tema para eles e,
portanto, para a Santa Igreja nascente. Tratava-se de assumirem a mesma missão
de Nosso Senhor Jesus Cristo, pois Este permaneceria no mundo por meio deles.
Nada deveria ser
olvidado: nem a Paixão com seus méritos, nem a própria vida do Divino Mestre,
com Seus ensinamentos. Concretiza-se, nessa ocasião, uma identidade de missão
entre Jesus e os Apóstolos. Aliás, na oração dirigida ao Pai, na Última Ceia,
havia já Ele revelado essa aproximação: “Eu lhes transmiti as palavras que Me
confiaste e eles as receberam e reconheceram verdadeiramente que saí de Ti, e
creram que Me enviaste. Dei-lhes a Tua palavra, mas o mundo os odeia, porque
eles não são do mundo, como também Eu não sou do mundo. Como Tu me enviaste ao
mundo, também Eu os enviei ao mundo” (Jo 17, 8.14.18).
Anteriormente,
chegara mesmo a afirmar: “Quem vos ouve, a Mim ouve, quem vos rejeita, a Mim
rejeita, e quem Me rejeita, rejeita Aquele que Me enviou” (Lc 10, 16).
Por isso São Paulo
diria mais tarde, em tom de plena certeza: “O apóstolo é ministro de Cristo” (I
Cor 4, 1); e “Deus mesmo é que fala por seus lábios” (II Cor 5, 20). Os
discípulos deverão pregar e implantar a Igreja em todas as partes, com a mesma
autoridade divina com que Cristo realizou Sua missão no mundo, tal como nos
relata São Mateus: “Tudo o que ligardes sobre a Terra será ligado no Céu; e
tudo o que desligardes sobre a Terra, será desligado no Céu” (18, 18). E São
Marcos: “Ide por todo o mundo, e pregai o Evangelho a toda criatura” (16, 15).
Cristo os constituiu
sacerdotes da Igreja, para salvação e santificação das almas, fazendo-os
herdeiros e participantes de Seu sumo e eterno sacerdócio. Esta missão continua
ainda nos dias atuais e deverá perdurar até o fim dos tempos, através do
ministério sacerdotal. Tal como Jesus, o presbítero dá “glória a Deus no mais
alto dos Céus, e paz na Terra aos homens objeto da boa vontade de Deus” (Lc 2,
14). É ele alter Christus: “Como o Pai Me enviou, assim Eu vos envio” (Jo 20,
21). Assim, a obra universal de redenção e de transformação do mundo trazida
por Nosso Senhor Jesus Cristo, com toda a sua divina eficácia, Ele continua a
operá-la, e continuará sempre, por meio de seus ministros.11
1 Suma Teológica II-II, q. 29, a. 3 ad 1.
2 MALDONADO, SJ, Pe. Juan de. Comentarios a los
cuatro Evangelios – II Evangelios de San Marcos y San Lucas. Madrid:
BAC, 1951, p. 817.
3 Cf. idem, ibidem.
4 PETRARCHA,
Franciscus. De remediis utriusque fortunæ. l. 2, 77.
5 AMBROSIUS
MEDIOLANENSIS, Sanctus. Expositio Evangelii Secundum Lucam, l. 10 (PL
15:1.846).
6 MALDONADO, SJ, Op. cit., p. 820.
7 Idem, ibidem.
8 CIRILLUS
ALEXANDRINUS, Sanctus. Explanatio in Lucæ Evangelium, 24, 38 (PG 72, 948).
9 Idem, in Lc. 24, 45
(PG 72, 949).
10 MALDONADO, SJ, Op. cit., p. 826827.
11 Cf. PIO XI. Encíclica Ad
catholici sacerdotii, 20/12/1935, n.12.
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