Evangelho Solenidade da Assunção de Nossa Senhora – Lc 1, 39-56
46 Então Maria disse: “A minha alma engrandece o Senhor, o
meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador, ‘ porque olhou para a humildade
de sua serva. Doravante todas as gerações Me chamarão Bem-Aventurada,
porque o Todo-Poderoso fez grandes coisas em meu favor, O seu nome é Santo, 50
e sua misericórdia se estende, de geração em geração, a todos os que O
respeitam.
51 Ele mostrou a força de seu braço: dispersou os soberbos de
coração. 52 Derrubou do trono os poderosos e elevou os humildes. Encheu de bens
os famintos, e despediu os ricos de mãos vazias. Socorreu Israel, seu
servo, lembrando-Se de sua misericórdia, conforme prometera aos nossos
pais, em favor de Abraão e de sua descendência, para sempre”. 56 Maria ficou
três meses com Isabel: depois voltou para casa (Lc 1, 39-56).
O penhor marial
de nossa ressurreição
Na Assunção da
Virgem Maria aos Céus, Deus antecipa seu desígnio em relação à humanidade: a
ressurreição e triunfo dos justos no dia do Juízo Final.
I - GLORIOSO CUME DE
SANTIDADE
Santa Igreja
Católica, ao comemorar a Solenidade da Assunção de Maria Santíssima, compõe a
Liturgia com um objetivo definido, sintetizado na Oração do Dia:
“Deus eterno e
todo-poderoso, que elevastes à glória do Céu em corpo e alma a Imaculada Virgem
Maria, Mãe do vosso Filho, dai-nos viver atentos às coisas do alto, a fim de
participarmos da sua glória”.1 Nossa condição humana, tão cheia de lutas e de
dramas, e ao mesmo tempo de graças, tende a voltar-se para as realidades
concretas que nos cercam — saúde, dinheiro, relações, etc. —, esquecendo-se das
maravilhas sobrenaturais, quando na verdade sua contemplação é essencial para
nos tornarmos partícipes da glória de Nossa Senhora.
Sinal da
importância de nos atermos em primeiro lugar aos bens do alto é que eles nos
serão concedidos por todo o sempre, se nos salvarmos. O estado de prova no qual
nos encontramos é efêmero e, ao se concluírem os breves dias de nossa
existência, entraremos na eternidade, onde viveremos em permanente convívio com
Deus, os Anjos e os Santos, no Céu, ou com os demônios e os condenados, no
inferno.
“Um grande combate
travou-se no Céu”
A primeira leitura,
extraída do Apocalipse (11, 19a; 12, l.3-6a.l0ab), nos coloca na perspectiva da
prova à qual foram submetidos os Anjos. Estes saíram das mãos de Deus no
primeiro dia da criação, quando Ele ordenou: “Faça-se a luz” (Gn 1, 3),2
concomitantemente ao Céu Empíreo, cujo nome evoca as belezas do fogo, mas não o
seu poder de destruição. Como Deus tinha em vista a constituição de um único
universo, onde coexistissem seres espirituais e materiais, não haveria sentido
em criar matéria sem governadores ou administradores sem ter o que tutelar.3
Antes de gozarem da
visão beatífica, é provável que Deus tenha comunicado a estes seus ministros o
plano da criação, revelando-lhes os desígnios relativos à Encarnação do Verbo,
sua obra mais perfeita, em que brilharia a figura de Nossa Senhora. Como afirma
São Bernardo, “não parece difícil crer que, estando cheio de sabedoria e
elevado ao mais alto cume de perfeição, [Lúcifer] soubesse que haveria homens
que chegariam ao um grau de glória igual ao seu”.4 Ora, Maria Santíssima, em
sua condição de mera criatura humana, deve ter causado não pouca aversão aos
anjos que se revoltariam, pois não estavam impostados numa perspectiva de
humildade e disponibilidade total à vontade divina.
Estes, como ensina
São Tomás,5 citando Santo Agostinho, haviam se demorado demais na consideração
imediata das coisas, baseando-se na própria inteligência, sem remontar ao
Criador. E ao fazer uma comparação entre o dia, a tarde e a noite, o Doutor
Angélico mostra como quem procura compreender as coisas em Deus possui um
conhecimento que pode ser qualificado de matutino, e os que as veem
diretamente, para só depois elevar-se a quem as criou, têm conhecimento
vespertino. “Sempre é dia na contemplação da Verdade imutável, e continuamente
tarde no conhecimento da criatura em si mesma”,6 afirma o Doutor da Graça.
Acautelemo-nos, então, para não demorarmos na mera consideração dos seres em
si, pelo risco de nos dissociarmos da Sabedoria Eterna e cairmos em pecado.
Pois bem, foi o que
se deu com a terça parte dos anjos. E em consequência, quando lhes foi
apresentado o plano da Redenção, tão tomados estavam por si próprios que o
orgulho os tornou cegos e se revoltaram. Lúcifer, o mais elevado de todos,
levantou-se vociferando: “Non serviam! — Não servirei!” (Jr 2, 20); nem a Deus,
nem a Jesus Cristo, Deus e Homem verdadeiro, nem Aquela que viria a ser a
Rainha dos Anjos. Tal ato de insubmissão suscitou o brado de indignação de São
Miguel: “Quis ut Deus? — Quem como Deus?”. Após uma batalha acirrada, os
amotinados foram lançados no inferno (cf. Ap 12, 4.7-9).
Caídos do Céu, eles — sobretudo Lúcifer —
tiveram o delírio de querer impedir a Encarnação do Verbo, que traria a
salvação ao gênero humano. O demônio é mostrado na leitura do Apocalipse
querendo devorar o Messias e atingir sua Mãe, mas, apesar de todo o empenho e
da capacidade angélica do príncipe das trevas e de seus sequazes, Deus destrói
suas artimanhas infernais e a Virgem Santíssima concebe e dá à luz seu Filho,
que realiza a obra da Redenção. Como corolário, ambos sobem aos Céus em corpo e
alma e são glorificados: “Agora realizou-se a salvação, a força e a realeza do
nosso Deus, e o poder do seu Cristo” (Ap 12, l0b).
Cristo ressuscitado,
fundamento de nossa fé
Já na segunda
leitura escutamos a voz de São Paulo, o arauto da Ressurreição, dirigindo-se
aos Coríntios (I Cor 15, 20-27a).
Quis a Providência
que ele desenvolvesse boa parte de seu apostolado entre os gregos, povo que não
admitia a ressurreição dos corpos no último dia, porque se a aceitassem
tornar-se-ia forçoso reconhecer a existência de uma vida post mortem, em função da qual
deveriam seguir a moral. Como eles não estavam dispostos a assumir um
comportamento íntegro, deixaram-se rolar precipício abaixo impelidos pelo vício
da impureza. Sua depravação de costumes ficou conhecida na História. A eles São
Paulo declara em um versículo anterior: “Se Cristo não ressuscitou, vã é nossa
pregação e vã é também vossa fé” (I Cor 15, 14).
Dada a firme
convicção que caracteriza sua doutrina acerca deste mistério, somos levados a
crer que o Apóstolo tenha tratado com o próprio Nosso Senhor a respeito disto,
que lhe terá fornecido elementos claríssimos para sustentar tal verdade. Por
isso, diz importar-se pouco com o sofrimento, a alegria ou com qualquer
circunstância adversa, pois nada pode separá-lo de Cristo (cf. Rm 8, 35),
considerando a morte como um lucro (cf. Fl 1, 21) e um meio para unir-se ainda
mais ao Salvador. De fato, São Paulo deposita uma esperança extraordinária na
ressurreição, do que dão testemunho suas epístolas, nas quais encontramos a
cada passo alguma referência a este grandioso acontecimento.
Precedidos por um
membro eminente do Corpo Místico
O ensinamento
paulino a respeito da ressurreição, que procura nos estimular à esperança —
“Cristo ressuscitou dos mortos como primícias dos que morreram” (I Cor 15, 20)
—, pode ser aplicado com propriedade também a Nossa Senhora. A partir do
momento em que o Redentor constituiu seu Corpo Místico, do qual Ele é a Cabeça,
não se compreenderia que só Ele ressuscitasse, pois seu desígnio consiste em
abrir o caminho para o Corpo inteiro gozar do mesmo benefício. Caso Nosso
Senhor ressurgisse dos mortos e todos os membros da Igreja triunfante
permanecessem no Céu apenas em alma, mesmo após o Juízo Final, esta seria uma
obra disforme, pouco condizente com o seu modo divino de proceder.
Por isso, continua
São Paulo: “Com efeito, por um homem veio a morte e é também por um homem que
vem a ressurreição dos mortos. Como em Adão todos morrem, assim também em
Cristo todos reviverão” (I Cor 15, 21-22). Ao traçar um paralelo entre Cristo e
Adão, o Apóstolo mostra que não conheceríamos a morte se não fosse o pecado do
primeiro homem, sendo necessário que outro homem triunfasse sobre ele. Nossas
almas já foram purificadas da mancha original pelo Batismo, mas falta-nos ainda
vencer a morte com os nossos corpos ressurrectos. “Porém, cada qual segundo uma
ordem determinada: em primeiro lugar, Cristo, como primícias; depois os que
pertencem a Cristo, por ocasião da sua vinda” (I Cor 15, 23). Entre os que são
d’Ele destaca-Se Nossa Senhora, a mais excelsa criatura humana, que adquire
corpo glorioso e ocupa no Céu um lugar especial por ser a Mãe de Deus.
Embora a Igreja não
tenha definido se Maria morreu ou não, é dogma de Fé que Ela transpôs os
umbrais da eternidade em corpo e alma, realizando o plano de Deus. Sua Assunção
oferece-nos um penhor de esperança, que em certo sentido pode ser considerado
maior que o da Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo. Esta ousada afirmação
prende-se a que Ela, enquanto pura criatura, é a Filha primogênita da Igreja, o
membro de máxima elevação do Corpo Místico de Cristo, e Se encontra, portanto,
mais próxima de nossa contingência humana que seu Divino Filho, que é Homem mas
também é Deus.
A exemplo de Maria
Na passagem de
Maria Santíssima deste mundo para a eternidade vislumbramos desde já o que nos
acontecerá no Juízo Final, caso venhamos a morrer em estado de graça. Todos nós
— esta é uma profecia que qualquer um pode fazer, sem risco de incorrer em erro
— partiremos desta vida. E quanto tempo mediará entre a morte e a ressurreição?
Não importa, pois para Deus nada é impossível. Nossa alma foi por Ele criada a
partir do nada e o corpo, embora tenha origem humana nos pais, foi constituído
por Ele. Adão, o mais belo ser de toda a obra da criação, foi modelado como um
boneco de barro por um artista chamado Deus, e também o barro foi criado sem
qualquer matéria preexistente, como o resto do universo. Isto nos mostra que
Deus, sendo onipotente, pode criar e recriar todos os seres. Assim como nos
formou individualmente e infunde a alma em cada criança recém-concebida, pode
mandar que os restos mortais de homens falecidos — alguns há milhares de anos,
como nossos pais Adão e Eva — sejam reunidos e seus corpos reconstituídos em
estado glorioso. Em última análise, a ressurreição certifica a onipotência
divina. Pela simples lembrança de que morreremos, seremos sepultados e
esperaremos até sermos recompostos de forma gloriosa, a ponto de adquirirmos um
corpo espiritualizado, já antegozamos esse momento de extraordinária beleza em
que triunfaremos, como Nossa Senhora no dia da Assunção.
Maria não podia
conter mais graça
É edificante
considerar que, independentemente de Maria Santíssima ter morrido ou não, pelo
fato de ser imaculada nunca sofreu Ela nenhuma enfermidade, não envelheceu ou
padeceu a menor mazela decorrente do pecado, e seu corpo não esteve sujeito à
decomposição, sendo esta uma das razões de sua Assunção ao Céu. Levantemos,
porém, algumas hipóteses a respeito de outros motivos que terão levado Nossa
Senhora a passar desta vida para a eternidade com seu corpo glorioso.
Ensina a doutrina
católica ser a caridade uma virtude que se radica na vontade.7 Quando é muito
forte, o amor impele quem ama a unir-se a quem é amado. Todo cristão, no dia do
Juízo, deve apresentar seu progresso na caridade, por ser ela imprescindível
para entrar no Céu. Ora, houve alguém que partiu desta vida não com amor, mas
por amor: Nossa Senhora. Afirma Santo Alberto Magno que “mais obrigação tem de
amar aquele a quem se dá mais. A Beatíssima Virgem foi dado mais que a todas as
criaturas; logo, estava obrigada a amar mais do que qualquer outra”.8 E assim o
fez, conclui o santo doutor. N’Ela, a caridade intensificou-se de tal maneira
que o corpo não mais podia sustentar a alma, e o desejo de contemplar a Deus
face a face para unir-Se a Ele fez com que a alma de Maria Santíssima, ao
subir, levasse também o corpo. A par disso, é certo que n’Ela a graça, embora
plena desde sua concepção, aumentou incessantemente ao longo da vida a ponto de
mais não comportar quando ocorreu a Assunção. Eis a maravilha de uma criatura
humana que, de plenitude em plenitude, de perfeição em perfeição, havia chegado
ao extremo limite de todas as medidas, até quase não existir diferença entre a
sua compreensão do universo e a própria visão de Deus. O que Lhe faltava?
Apenas a Assunção. Sua alma atingiu tal sublimidade, alcandoramento e
esplendor, que o véu de separação entre a natureza humana e a visão beatífica
tornou-se tênue, se desfez, e — sem necessidade de passar por qualquer
julgamento — Ela viu a Deus. Em consequência, seu corpo tornou-se glorioso e
Ela elevou-Se ao Céu.
Em função disso é
indispensável corrigir certa visualização oferecida por algumas obras de arte,
até piedosas, em que Maria aparece em volta numa nuvem, elevada ao Céu por uns
anjinhos, representados na maioria das vezes como se fizessem esforço para
conduzi-La.
Na verdade, por ter
a alma na visão beatifica, seu corpo glorificado já gozava da agilidade, uma
das qualidades deste estado. Ela deslocava-Se com extraordinária facilidade, com a rapidez do pensamento podendo
subir ao Céu por Si mesma, Os Anjos A teriam acompanhado? Sim, mas por
veneração, sem precisar transportá-La, uma vez que Ela possuía mais glória que
todos eles juntos.
Em que consiste,
então, a diferença entre a Assunção de Maria e a Ascensão do Senhor? Ele subiu
aos Céus tanto por seu poder divino — pois é o próprio Deus — quanto pela
virtude de sua Alma glorificada, que movia seu Corpo.9 E a Assunção de sua Mãe
Virginal teve como causa apenas a glória de seu corpo, submisso à sua alma
bem-aventurada.
A humanidade
divinizada entra na glória
Outra razão da conveniência deste magnífico
acontecimento é a restituição prestada a Deus por todos os benefícios
concedidos ao gênero humano. Uma vez que a Segunda Pessoa da Santíssima
Trindade desceu dos Céus, para Se encarnar, trazendo ao mundo a divindade
humanizada, seria justo que uma pessoa humana fizesse um oferecimento
harmonicamente contrário e levasse para o Céu o melhor da santidade, o que de
mais belo, excelente e extraordinário pudesse existir na Terra: a humanidade
divinizada. Tal missão foi reservada a Maria. Por outro lado, Ela foi o
sacrário do Filho de Deus durante os nove meses nos quais gerou a humanidade
santíssima de Cristo. Era compreensível que havendo-O recebido como tabernáculo
na Terra, também Ele A recebesse em seu Santuário Celeste.
Júbilo na eternidade
Que gáudio incomparável experimentaram todas as almas bem-aventuradas quando Nossa Senhora ali entrou em corpo e alma! Embora seu Divino Filho já estivesse ressurrecto na companhia dos eleitos, o fato de unir-Se a eles, sendo a mais bela, elevada e santa das puras criaturas, foi um surto de consolação para quantos aguardavam a ressurreição de seus corpos. No que diz respeito aos Anjos, vinham eles esperando havia muito tempo tal acontecimento, pois Maria fora a pedra de escândalo, o sinal de contradição que dividira o mundo angélico, e a fidelidade a Ela, enquanto protagonista do plano divino, havia sido a causa da beatitude dos bons.
Que gáudio incomparável experimentaram todas as almas bem-aventuradas quando Nossa Senhora ali entrou em corpo e alma! Embora seu Divino Filho já estivesse ressurrecto na companhia dos eleitos, o fato de unir-Se a eles, sendo a mais bela, elevada e santa das puras criaturas, foi um surto de consolação para quantos aguardavam a ressurreição de seus corpos. No que diz respeito aos Anjos, vinham eles esperando havia muito tempo tal acontecimento, pois Maria fora a pedra de escândalo, o sinal de contradição que dividira o mundo angélico, e a fidelidade a Ela, enquanto protagonista do plano divino, havia sido a causa da beatitude dos bons.
Ao lado deste,
outro motivo os fazia ansiar pela chegada da Virgem Santíssima: ao criar o Céu
Empíreo, Deus o fez de modo definitivo, tendo preparado desde o início todos os
tronos destinados aos Bem-aventurados e, dentre estes, o de Nosso Senhor Jesus
Cristo Homem e o de Nossa Senhora Rainha. Assim, desde muito antes que ambos
nascessem, os Anjos observavam e admiravam a magnificência dos lugares
reservados para Eles, perguntando-se quando seriam ocupados. No caso de Maria,
é possível que Deus os tenha deixado em certo suspense, sem revelar pormenores
sobre a sua natividade, a fim de que levantassem hipóteses ao longo da História
da salvação, permanecendo sempre atentos para discernir quando a prevaricação
do povo eleito O levaria a suscitar aquela filha perfeita. Ávidos de vê-La
sentada no trono que Lhe fora destinado, queriam venerá-La, prestar honras e
homenagens a uma Rainha que, sendo apenas criatura humana, teria mais graça que
todos eles juntos. E no instante de sua subida aos Céus que, finalmente, veem a
realização desse anseio, e com quanto júbilo!
A coroação da
Santíssima Virgem
Tendo Nossa Senhora
completado sua missão, bem podemos imaginar como foi seu triunfo no Céu: as
três Pessoas da Santíssima Trindade A receberam e A glorificaram. Coroada pelo
Pai, que Lhe conferia o poder impetratório e depositava em suas mãos o governo da
criação, Maria Santíssima passou a ser a administradora dos tesouros divinos;
um suspiro d’Ela é capaz de mover a vontade do Criador, O Filho, a Sabedoria
Eterna e Encarnada, Lhe deu toda a sabedoria, e o Espírito Santo, enquanto seu
Esposo, Lhe concedeu a faculdade de santificar as almas.
II - HUMILDADE, FONTE
DA GRANDEZA
Toda a grandeza que
contemplamos em Maria Santíssima tem origem em sua humildade, o que se torna
patente no trecho do Evangelho recolhido pela Santa Igreja para esta
Solenidade. Em sua primeira parte vemos, sobretudo, o quanto Santa Isabel A
elogia e exalta. Como já tivemos oportunidade de fazer extensas considerações a
esse respeito,10 limitemo-nos, no restrito espaço do presente artigo sobre a
Assunção, a comentar de modo breve as palavras de Maria, isto é, o Magnificat.
Riquíssimo e de
incomparável beleza, como convém a um cântico nascido dos lábios da Santíssima
Virgem, bem pode ser considerado como um marco na História, dividindo-a em duas
fases: o que veio antes, o egoísmo; e o que veio depois, a santidade, fruto da
humildade. Com o pecado original o orgulho foi introduzido na humanidade,
maculando sua trajetória, até o momento em que, sem nenhuma sombra desse vício,
nasceu Maria. Sua Visitação a Santa Isabel é para nós exemplo da preocupação
que precisamos ter uns com os outros, procurando que cada um venha a ser mais
do que é.
A humildade de Maria
Lhe fez merecer a glória
46 Então Maria disse: “A minha alma engrandece o Senhor, o meu
espírito se alegra em Deus, meu Salvador, 48 porque olhou para a humildade de
sua serva. Doravante todas as gerações Me chamarão Bem-Aventurada, 8 porque o
Todo-Poderoso fez grandes coisas em meu favor. O seu nome é Santo, 50 e sua
misericórdia se estende, de geração em geração, a todos os que O respeitam”.
Deus é a Bondade e,
portanto, sumamente dadivoso, pois é próprio à sua natureza a constante
disposição de dar. O grande problema somos nós mesmos, já que, com frequência,
colocamos obstáculos à sua generosidade. Nos primeiros versículos do
Magnificat, Nossa Senhora mostra como o Senhor olha para suas criaturas com
amor e desejo de conceder seus dons. Ele nos quer tanto que, em virtude desse
amor, vai infundindo em nossas almas o Bem — que é Ele mesmo. Este é o
princípio e a raiz de toda perfeição e santidade, e não o esforço pessoal,
como, talvez, poderíamos ser levados a crer. Maria não levantou obstáculos a
esta ação divina devido ao reconhecimento de seu próprio nada, e a claríssima
consciência de sua contingência fez com que o olhar criador de Deus pousasse
sobre Ela e operasse maravilhas. Sua humildade Lhe deu mérito para ser a Mãe de
Deus e, tendo-se acrisolado ao longo da vida terrena, tomou-A digna da Assunção
aos Céus.
Uma figura pode
ajudar a entendermos com mais clareza esta verdade: imaginemos uma grande
bordadeira que, ao receber de presente certo tecido de linho branco, idealiza
um bordado extraordinário. Contudo, se lhe for oferecido um tecido estampado
ela não terá como exercer suas habilidades. O mesmo se passa quando Deus
encontra em nossas almas o vazio, pois decide realizar nelas um magnifico
“bordado”, como o fez com a Virgem Maria.
Quando conhecemos
pessoas cheias de si ficamos compadecidos, pois damo-nos conta de que impedem a
Deus de cumulá-las com sua graça. Falta-lhes a humildade. Esta vai se tornando
rara em nossos dias e não deve ser confundida com uma falsa virtude propugnada
pelo igualitarismo, desdobramento do orgulho, por sua vez pai de todos os
vícios e causa mais profunda de tantos desvarios sentimentais e impuros. A
autêntica despretensão existe quando há disponibilidade em relação a Deus,
inteira consonância com Ele, abandono em suas mãos e desejo de cumprir sua
santíssima vonta de. Quanto falta à sociedade de hoje esse estado de espírito!
As promessas do mundo
face às promessas de Deus
51 Ele mostrou a força de seu braço: dispersou os soberbos de
coração. 52 Derrubou do trono os poderosos e elevou os humildes. Encheu de bens
os famintos, e despediu os ricos de mãos vazias”.
O cântico do
Magnificat passa, nestes versículos, para uma segunda parte. Na primeira, como
vimos, Maria descreve os favores recebidos, e nesta segunda mostra o nada do
mundo, a fim de ressaltar o quanto ele e o demônio, com aparência de grande
poder, fazem promessas muito diferentes das divinas. A paz mundana pareceria
acalmar todos os nossos desejos ilegítimos, fruto do pecado original. No
entanto, quando algo nos é proposto pelo adversário de Deus, tenhamos a certeza
de ser precisamente o que ele nos irá roubar. O demônio promete a glória, e é a
glória eterna que nos arrebata; promete o bem-estar, e é o bem-estar que nos
tira, porque se pecarmos seremos infelizes nesta vida e depois por toda a
eternidade, tal como ele.
A paz oferecida por
Deus exige luta. “Si vis pacem, para bellum — Se quereis a paz, preparai-vos
para a guerra”.1’ Dentro de nós, para adquirir a verdadeira paz, é preciso
guerrear contra nossas más inclinações e sermos heróis. E então que se
manifesta em nós “a força de seu braço”, que é onipotente e derruba os
orgulhosos, enquanto “levanta do pó o indigente e tira o pobre do monturo,
para, entre os príncipes, fazê-lo sentar-se” (Sl 112, 7-8).
Ao mesmo tempo, Ele
enche de dons e graças aquele que tem sede e fome de justiça, e despede de mãos
vazias os que se julgam cheios dos bens do mundo, ou seja, prestígio, fortuna,
ciência, etc.
Deus sempre supera
nossas expectativas
54 “Socorreu Israel, seu servo, lembrando-Se de sua misericórdia,
55 conforme prometera aos nossos pais, em favor de Abraão e de sua
descendência, para sempre”.
Na última parte de
seu inspirado cântico, Nossa Senhora frisa como Deus — opostamente ao demônio,
ao mundo e à carne — dá tudo quanto promete e o faz em superabundância. Ele nos
oferece uma vida eterna extraordinária, e quando virmos a realidade nos daremos
conta de que nos concedeu muito mais do que éramos capazes de imaginar. A luz
da contemplação da glória de Maria, neste dia somos convidados, com o
Magnificat, a ter o coração repleto de confiança no Senhor que, em sua
prodigalidade divina, quer nos cumular de bens desde que não coloquemos
obstáculos.
III - UM CAMINHO DE
LUZ É ABERTO A TODOS
Liturgia desta
Solenidade nos abre grandes portas e um caminho florido e cheio de luz, no que
diz respeito à salvação eterna. Diante do penhor de nossa ressurreição, que nos
é dado pelo mistério da Assunção de Maria Santíssima, deveríamos nós considerar
mutuamente uns aos outros segundo esse ideal, como se estivéssemos já
ressurrectos, pois acima do abatimento e das provações desta vida brilha a
esperança da glorificação para a qual rumamos.
Vivamos buscando os
bens do alto, e que nosso pensamento acompanhe o trajeto seguido por Maria
Virgem. Ela penetrou no Céu em corpo e alma e foi exaltada; nós, na hora
presente, como não podemos adentrá-lo fisicamente, façamo-lo ao menos em desejo.
Voltemo-nos para o trono de Maria Assunta, e assim receberemos graças sobre
graças para estarmos sempre postos nesta via que nos conduzirá à ressurreição
feliz e eterna, quando recuperaremos os nossos corpos em estado glorioso.
1) SOLENIDADE DA ASSUNÇÃO DE NOSSA SENHORA. Oração do Dia.
In:MISSAL ROMANO. Trad. Portuguesa da 2a. edição típica para o Brasil realizada
e publicada pela CNBB com acréscimos aprovados pela Sé Apostólica. 9.ed. São
Paulo: Paulus, 2004, p.638.
2)Cf. STO AGOSTINHO De Civitate Dei. L.XI, c.19. In: Obras. 3.ed. Madrid: BAC, 1977, v.XVI, p.717.
3) Cf. SAO TOMAS DE AQUINO. Suma Teológica. I, q.61, a.4.
4) SÃO BERNARDO. Sermones sobre el Cantar de los Cantares. Sermón
XVII, n.4. In: Obras Completas. Madrid: BAC, 1955, v.11, p.106.
5) Cf. SAO TOMAS DE AQUINO, op. cit., q.58, a.6; a.7.
6) SANTO AGOSTINHO. De Genesi ad litteram. L.IV, c.30, n.47. In: Obras. 2.ed. Madrid: BAC, 1969, v.XV, p.632.
7) Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO, op. cit., II-II, q.24, al.
8) SANTO ALBERTO MAGNO. Mariale.
Q. XLVI, n.l. Buenos Aires: Emecé, 1948, p.235.
9) Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO, op. cit, III, q.57, a.3.
10) Cf. CLÁ DIAS, EP, João Scognamiglio. A arrebatadora excelência
da voz de Maria. In:Arautos do Evangelho. São Paulo. N.132 (Dez., 2012);
p.10-17; Comentário ao Evangelho do IV Domingo do Advento — Ano C
11) Este adágio latino provém de um antigo texto romano, de fins
do século IV, dC: “Igitur qui desiderat pacem, prceparet bellum; qui victoriam
cupit, milites imbuat di ligenter; qui secundos optat eventus, dimicet arte,
non casu. Nemo provocare, nemo audet offendere, quem intellegit superiorem esse
pugnaturum” (VEGETI RENATI, Flavii. Epitoma rei militaris. L.III, proem.
Lipsiæ: B. G. Teubneri, 1869, p.64).
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