A voz do Pai nos atrai e conduz a
Cristo
45Está escrito nos profetas: ‘Todos serão
discípulos de Deus’. Ora, todo aquele que escutou o Pai, e por ele foi
Uma vez
que não acreditavam nas Suas obras, Jesus invoca a autoridade dos profetas,
para insinuar que estava se realizando uma das previsões indicativas da chegada
da era messiânica.
Fillion
assim comenta esta passagem: “O texto citado por Jesus, ‘serão todos ensinados
por Deus’, é tomado do profeta Isaías (54, 13) que, num quadro admirável, expõe
os benefícios que o Senhor derramará sobre Seu povo na época do Messias. Um de
Seus favores mais valiosos consistirá, justamente, em que as almas de boa
vontade serão instruídas e atraídas diretamente por Ele”.5
Gomá y
Tomás afirma ser este “divino magistério a forma com que Deus atrairá os homens
a Si”. Mas, para que a atração seja eficaz, é preciso ouvir Sua voz “como se
ouve a voz do mestre, e aprender, ou seja, prestar humilde assentimento àquilo
que se ouve: é a conjugação dos dois fatores da vida sobrenatural, a graça e a
liberdade”.6
Como se
fará ouvir essa voz inefável, se não podemos escutá-Lo e falar com Ele, como o
fazia Moisés no Sinai e na Tenda da Reunião, onde Deus lhe falava como a um
amigo? (cf. Ex 33, 11).
Santo
Agostinho explica mais claramente como se realiza esse ensinamento de Deus:
“Muito distante está dos sentidos corporais essa escola na qual o Pai é ouvido
e ensina que se vá ao Filho. Porque esta operação, Ele não a realiza pelos
ouvidos da carne, mas sim pelos do espírito”.7
Com
efeito — explica a teologia mística —, assim como o corpo tem cinco sentidos
através dos quais a pessoa entra em contato com o mundo exterior, pode-se
atribuir à alma, figurativamente, sentidos por meio dos quais ela se comunica
com o mundo sobrenatural.
É
possível, então, ouvir a voz de Deus? Sim. Ele pode falar-nos de diversas
formas. Sobretudo, quando nos recolhemos para rezar, para ouvir a Palavra, para
elevar a alma até Ele. E Deus fala-nos com mais frequência quando fazemos
silêncio à nossa volta, dificilmente Ele Se comunica conosco no meio do
tumulto, da agitação do corre-corre. Será, por exemplo, durante uma visita ao
Santíssimo Sacramento, durante uma celebração litúrgica, num momento de oração
ao fim do dia, quando todo movimento cessa e o silêncio da noite convida à
reflexão. E como, por vezes, o silêncio é eloquente! É nesses momentos
preciosos que o Pai nos fala e nos ensina a ir ao encontro de Seu Filho.
O Santo
Padre Bento XVI, em discurso a uma delegação de Bispos recém-nomeados,
ressaltou a importância do silêncio para se poder ouvir a voz de Deus: “Nas
cidades em que viveis e trabalhais, frequentemente agitadas e rumorosas, onde o
homem corre e se perde, onde se vive como se Deus não existisse, sabei criar
lugares e ocasiões de oração, onde no silêncio, na escuta de Deus, mediante a
lectio divina, na oração pessoal e comunitária, o homem possa encontrar Deus e
fazer a experiência viva de Jesus Cristo que revela o autêntico rosto do Pai”.8
46Não que alguém já tenha visto o Pai. Só
aquele que vem de junto de Deus viu o Pai.
Os
judeus sabiam que ninguém podia ver a Deus face a face, tal como Ele mesmo
havia dito a Moisés, quando este Lhe pedira: “Mostra-me a Tua glória” (Ex 33,
18). Pois ver a Deus implicaria na morte: “Não poderás ver a Minha face porque
ninguém Me pode ver e permanecer vivo” (Ex 33, 20). Mas Jesus, ao afirmar que
tinha visto o Pai — “Esse viu o Pai” —, revelava Sua divindade. Com esta
declaração, afirma Gomá y Tomás, “respondeu Jesus à murmuração dos judeus”.9
Fonte de vida para a alma e para
o corpo
47Em verdade, em verdade vos digo, quem
crê, possui a vida eterna.
A
expressão “em verdade, em verdade vos digo” era considerada uma espécie de
juramento entre os judeus. Algo análogo à fórmula “palavra de honra”, usada na
língua portuguesa para conferir mais veracidade a um testemunho ou declaração.
Quando Nosso Senhor queria chancelar com Sua autoridade determinada afirmação,
fazia-a preceder dessa expressão. Maldonado transcreve as palavras de São
Cirilo de Alexandria para interpretar esta passagem: “Sabia Cristo que os
judeus eram homens rudes e que nem sequer acreditavam plenamente nos profetas;
por isso intercala este juramento, para forçá-los a crer”.10
Continuando
seu lúcido comentário, Maldonado analisa o tempo em que o verbo “ter” é aqui
usado por Nosso Senhor: “Diz tem, em vez de terá, porque ainda que não a tenha
atualmente [a vida eterna], já tem direito a ela. Porta e caminho para a vida
eterna é a fé, diz Cirilo. Portanto, quem crê já passou a porta; se quiser,
pode salvar-se; quem não crê, muito longe está da vida eterna; embora queira
salvar-se, não poderá se primeiro não vier a fé”.11
48Eu sou o pão da vida. 49Os vossos pais
comeram o maná no deserto e, no entanto, morreram. 50Eis aqui o pão que desce
do céu: quem dele comer, nunca morrerá. 51Eu sou o pão vivo descido do céu.
Quem comer deste pão viverá eternamente. E o pão que eu darei é a minha carne
dada para a vida do mundo”.
A
interpretação desta passagem originou grande controvérsia ao longo dos séculos.
Os que comeram o maná no deserto morreram, como todos os homens, mas também
morrem, fisicamente, os que comem o “Pão vivo”. Qual o sentido em que Jesus usa
os conceitos de morte e vida?
Maldonado,
depois de analisar extensamente as várias opiniões, opta por uma interpretação
mais abarcativa. Segundo este eminente exegeta, Jesus usa os referidos
conceitos com duplo sentido: “trata-se, ao mesmo tempo, da vida e da morte do
corpo e da alma”.12 Da morte do corpo, quando se refere ao maná, pois os judeus
o comeram e todos morreram, como o comum dos homens; e a vida da alma, quando
menciona o “Pão vivo descido do Céu”, que dá a vida eterna à alma. Nessa
duplicidade de sentido está a “força e a elegância da frase de Cristo”.13 O uso
destas figuras de linguagem, por Jesus, era frequente, segundo Maldonado, e
tinha a intenção de “elevar os judeus, que eram carnais, das coisas materiais
às espirituais”.14
Mas o
Pão de que fala Nosso Senhor, não dá vida só à alma. Também a dá ao corpo: “Eu
o ressuscitarei no último dia” (Jo 6, 54).
“Quando
[o Corpo de Cristo] dá a vida à alma, isto é, a graça, outorga ao corpo um
penhor e como que início da bem-aventurança, a qual chamamos vida eterna. A
bem-aventurança da alma transborda no corpo, como os méritos da alma
repercutiram no corpo (Agostinho). [...] O Corpo de Cristo, que pela união
hipostática com a Divindade tem em si vida infinita e divina, engendra-a também
em nós com seu contato físico quando O recebemos realmente no Sacramento da
Eucaristia. Põe em nossos corpos uma semente de imortalidade que depois
floresce na ressurreição, bastante diferente da dos corpos dos condenados”.15
Afirmava
Santo Irineu que, assim como o grão de trigo tem uma força germinativa pela
qual, lançado à terra, se decompõe e se reproduz, assim também o Corpo de
Cristo tem uma eficácia geradora que é comunicada a nossos corpos. E mesmo
decompostos e reduzidos a pó, ressurgirão, nascendo de novo.16 É assim, conclui
Maldonado, que o “Corpo de Cristo Sacramentado, que recebemos, torna imortal
nosso corpo mortal”.17
Alimento que comunica a virtude
vivificante
Recorramos
ainda à ciência teológica e ao talento de Dom Guéranger para melhor explicitar
os efeitos maravilhosos e sobrenaturais da Eucaristia, naqueles que a recebem
em condições dignas. Como é próprio do alimento aumentar e manter a vida,
explica ele, o Verbo de Deus “fez-Se alimento vivo e vivificante, descido dos
Céus. Participando Ele mesmo da vida eterna, que Ele haure diretamente no seio
do Pai, a carne do Verbo comunica esta vida a quem dela se alimenta. Aquilo que
é corruptível por sua natureza, diz São Cirilo de Alexandria, não pode ser
vivificado a não ser pela união corporal ao corpo dAquele que é vida por
natureza. Do mesmo modo que dois pedaços de cera fundidos pelo fogo passam a
ser um só, assim acontece conosco e com o Corpo de Cristo, devido à
participação no Seu Corpo e Sangue preciosos. [...] Como um pouco de fermento,
diz o Apóstolo, leveda toda a massa (I Cor 5, 6), assim este Corpo, penetrando
no nosso, o transforma todo inteiro em Si. Nada pode penetrar assim nossa
substância corporal a não ser pela comida e a bebida. É este o modo, próprio à
sua natureza, pelo qual o nosso corpo adquire a virtude vivificante”.18
A mulher Eucarística
Embora
o Evangelho não mencione Maria, Mãe de Jesus, sabemos pela teologia e pelo
Magistério da Igreja que Ela foi a primeira criatura humana a beneficiar-Se
desta promessa de Nosso Senhor: “Eu o ressuscitarei”. Pois Maria Santíssima foi
assunta ao Céu em corpo e alma.
Maria desejou ardentemente a
Eucaristia
Em
relação à Eucaristia, Ela não só nunca duvidou — como o fizeram tantos dos Seus
coetâneos —, mas desejou ardentemente que chegasse o dia no qual Nosso Senhor
cumpriria a promessa de dar Sua Carne em alimento e Seu Sangue como bebida. Em
consequência, podemos conjecturar quanto Ela deve ter exultado de alegria ao
ouvir o discurso de Jesus na Sinagoga de Cafarnaum, e recordado o inefável
convívio místico que tivera com o Verbo Encarnado, durante os nove meses em que
Ele permanecera no claustro materno.
De
outro lado, afirma Jourdain: “Pode-se dizer, sem receio de enganar-se, que foi
principalmente para Sua Santíssima e Beatíssima Mãe que Nosso Senhor Jesus
Cristo instituiu o Sacramento da Eucaristia. Sem dúvida, Ele o instituiu para
toda a Igreja, mas, depois de Jesus, Maria é a parte principal da Igreja”.19 E
assim como Ela deu Seu consentimento para que Seu Filho Se oferecesse como
vítima ao Pai, pela redenção do gênero humano, da mesma forma “deu Seu assentimento
ao ato pelo qual Seu Divino Filho [...] Se entregou a nós como vítima, como
alimento e como companheiro de exílio nesta vida”, 20 no Sacramento da
Eucaristia.
A Igreja é chamada a imitá-La
“Maria
é mulher ‘eucarística’ na totalidade da sua vida” — afirma o servo de Deus João
Paulo II na Encíclica Ecclesia de Eucharistia. Por isso, “a Igreja, vendo em
Maria o seu modelo, é chamada a imitá-La também na sua relação com este
mistério santíssimo”.21
Acrescenta
pouco adiante o Pontífice: “De certo modo, Maria praticou a Sua fé eucarística
ainda antes de ser instituída a Eucaristia, quando ofereceu o Seu ventre
virginal para a encarnação do Verbo de Deus. [...] E o olhar extasiado de
Maria, quando contemplava o rosto de Cristo recém-nascido e O estreitava nos
Seus braços, não é porventura o modelo inatingível de amor que deve inspirar
todas as nossas comunhões eucarísticas?”.22
Explica
ainda que Maria viveu a “dimensão sacrificial da Eucaristia”, não apenas no
Calvário, mas ao longo de toda a Sua existência ao lado de Cristo.
“Preparando-Se dia a dia para o Calvário, Maria vive uma espécie de ‘Eucaristia
antecipada’, dir-se-ia uma ‘comunhão espiritual’ de desejo e oferta, que terá o
seu cumprimento na união com o Filho durante a Paixão e manifestar-se-á depois,
no período pós-pascal, na Sua participação na Celebração Eucarística, presidida
pelos Apóstolos, como ‘memorial’ da Paixão”.23
Por
isso, viver o memorial da morte de Cristo na Eucaristia implica em receber
constantemente Maria como Mãe. “Significa ao mesmo tempo assumir o compromisso
de nos conformarmos com Cristo, entrando na escola da Mãe e aceitando a Sua
companhia. Maria está presente — com a Igreja e como Mãe da Igreja — em cada
uma das Celebrações Eucarísticas. Se Igreja e Eucaristia são um binômio
indivisível, o mesmo é preciso afirmar do binômio Maria e Eucaristia”.24
Que
estas belas e profundas considerações tão eucarísticas e mariais nos ajudem a
melhor nos compenetrarmos da sublimidade deste imenso dom de Deus à humanidade
e do papel de Maria na devoção eucarística dos fiéis, sejam eles leigos ou
sacerdotes.
1Cf. AQUINO, São Tomás
de. Super Evangelium S. Ioannis lectura. c. 6, l. 5.
2TUYA, OP, Pe. Manuel
de. Biblia Comentada – II Evangelios. Madrid: BAC, 1964, p. 1107.
3AGOSTINHO, Santo. Sermo
131, n. 2.
4JOÃO CRISÓSTOMO, São.
Homilia 46 in Homilías sobre el Evangelio de San Juan. Madrid: Ciudad Nueva,
2001, V. 2. p. 175.
5FILLION, Louis-Claude.
Vida de Nuestro Señor Jesucristo – II Vida pública. Madrid: Rialp, 2000, p.
245.
6GOMÁ Y TOMÁS, Card.
Isidro. El Evangelio explicado. Barcelona: Rafael Casulleras, 1930, V. 2. p.
384.
7Apud AQUINO, São Tomás
de. Catena Aurea.
8BENTO XVI. Discurso aos
participantes na reunião dos Bispos nomeados no último ano, 22/9/2007.
9GOMÁ Y TOMÁS, Op. cit.,
p. 385.
10MALDONADO, SJ, Pe.
Juan de. Comentarios a los cuatro Evangelios – III Evangelio de San Juan.
Madrid: BAC, 1954, p. 398
11Idem, p. 398.
12Idem, p. 405.
13Idem, p. 405.
14Idem, p. 406.
15Idem, p. 407.
16Cf. idem, p. 408.
17Idem, p. 408.
18GUÉRANGER, OSB, Dom
Prosper. L’Année Liturgique – Le temps après la Pentecôte. Tome I. Tours: Maison Alfred Mame et fils, 1921, p. 307-308.
19JOURDAIN, Abbé Z.C. Somme des grandeurs de Marie – Marie dans la
Sainte Église. Paris:
Hippolyte Walzer, 1900, p. 561.
20Idem, p. 562.
21JOÃO PAULO II.
Ecclesia de Eucharistia, n. 53.
22Idem, n. 55.
23Idem, n. 56.
24Idem, n. 57.
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