Conclusão dos comentários ao Evangelho XXII Domingo do Tempo Comum – Ano B
O espírito do mundo
6 Jesus respondeu: “Bem profetizou Isaías a
vosso respeito, hipócritas, como está escrito: ‘Este povo Me honra com os
lábios, mas seu coração está longe de Mim. 7 De nada adianta o culto que Me
prestam, pois as doutrinas que ensinam são preceitos humanos’. 8 Vós abandonais
o Mandamento de Deus para seguir a tradição dos homens”.
A
resposta de Jesus não significa uma reprovação à praxe de lavar as mãos antes
de comer. Isto também nós o fazemos hoje, por higiene, sem nos atermos a uma
lei temporal que nos imponha modos de ser mundanos. Se, contudo, houvesse um
decreto para assim proceder por amor a Deus, ele seria legítimo.
Aqueles
que amam o mundo — como os fariseus — são levados a dar mais atenção aos
princípios do convívio social do que à Lei de Deus, porque, na prática, vivem
como se Deus não existisse. E, por vezes, certas leis humanas, contrárias à Lei
divina, as observam com uma precisão absoluta. Para estas pessoas o fim último
da vida se cumpre aqui na Terra e, no fim, a paga que recebem se reduz ao
conceito que os demais fizeram a seu respeito.
Nós
precisamos cuidar, em nosso cotidiano, de não dar mais importância à opinião
dos outros do que à de Deus. Importa-nos, acima de tudo, seu juízo sobre nós!
Imensamente séria é sua Lei e transgredi-la acarreta consequências terríveis.
Quando alguém infringe uma lei de trânsito é penalizado com uma multa; mas se
por infelicidade violar um Mandamento divino, pode ver as portas do Céu se
fecharem diante de si e ir para o inferno por toda a eternidade!
O horrível defeito da hipocrisia
Por
este motivo Jesus Se levantou contra os fariseus e os recriminou,
aplicando-lhes a frase de Isaías: “Este povo Me honra com os lábios, mas seu
coração está longe de Mim. De nada adianta o culto que Me prestam, pois as
doutrinas que ensinam são preceitos humanos”. Ou seja, era meramente humano o
empenho deles em observar, de forma meticulosa, uma série de regras externas.
Apesar de assim agirem por uma suposta razão religiosa e louvarem o Senhor com
os lábios, seu coração estava longe d’Ele. Erravam, pois, ao praticar uma
devoção de aparência, bastando-lhes aquelas abluções para ficarem satisfeitos e
se julgarem livres de qualquer impureza, sem se preocuparem com os vícios que
lhes manchavam a alma. Enquanto no coração guardavam tudo aquilo que Jesus vai
enumerar mais adiante — “más intenções, imoralidades, roubos, assassínios,
adultérios, ambições desmedidas, maldades”, entre outros —, eles sustentavam a
ideia de que o interior do homem — sobretudo se fosse fariseu — de si mesmo era
puro, e supunham encontrar nas exterioridades a tranquilidade de consciência e
a solução para encobrir estas falhas de espírito. Por isso o principal título
que receberam do Salvador foi o de “hipócritas”!
A
hipocrisia é um defeito horrível — muito mais comum do que pensamos! —, pelo
qual há uma dissociação entre os ditos e as atitudes de uma pessoa e aquilo que
ela pensa ou deseja. O hipócrita se parece com o “pai da mentira” (Jo 8, 44),
porque este é justamente o modo de ser do demônio: apresenta-se com palavras
atraentíssimas, dando a impressão de querer fazer o bem, mas suas intenções são
péssimas. Embora não constem no Evangelho deste domingo, os versículos 9 a 13
tornam ainda mais compreensível este ensinamento do Divino Mestre: “Na
realidade, invalidais o Mandamento de Deus para estabelecer a vossa tradição”
(Mc 7, 9). De fato, os fariseus chegaram a transformar estas normas, que
deveriam visar o sobrenatural, numa espécie de idolatria. Arrancaram os
autênticos preceitos morais e criaram uma religião própria, diferente da
verdadeira, totalmente desprovida de cunho religioso e separada de Deus, porque
se apoiava em ditames mundanos, determinados pela vida social da época.
Divinizaram a lei humana; dessacralizaram e humanizaram a Lei divina!
Em
seguida Jesus citou um exemplo (cf. Mc 7, 10-13) para mostrar como faziam a
distorção da Lei, esvaziando seu conteúdo e falseando os costumes que nela se
baseavam: os fariseus, porque eram avarentos, recorriam a um estratagema, de
maneira a poder guardar o dinheiro que, em função do Quarto Mandamento do
Decálogo, todo filho tem a obrigação de usar para assistir os pais na velhice,
contribuindo para a subsistência deles. Em vez de dar aos pais a quantia
necessária para seu sustento, os fariseus a consagravam como oferta a Deus e
consideravam-se livres daquele dever filial.
Por meio de um enigma, Jesus
chama as multidões para Si
14 Em seguida, Jesus chamou a multidão para
perto de Si e disse: “Escutai todos e compreendei: 15 o que torna impuro o
homem não é o que entra nele vindo de fora, mas o que sai do seu interior”.
“Jesus
chamou a multidão para perto de Si”, pois ela se tinha afastado e achava-se
meio dispersa. Decerto esta dissipação provinha de uma formação religiosa
deficiente. Quantas vezes as pessoas se interessam mais por seus problemas
concretos, mesmo quando têm o próprio Salvador diante de si!
Para
atrair a atenção das turbas, Ele lhes lançou, muito ao estilo oriental, um
quase que enigma: “O que torna impuro o homem não é o que entra nele vindo de
fora, mas o que sai do seu interior”. É de se supor que logo se levantou um
vozerio, uma discussão para tentar descobrir qual o significado daquela frase.
No entanto, não a resolveram... Só mais tarde, estando em casa, os discípulos O
interrogaram a respeito da parábola, e Jesus lhes explicou aquilo que também
eles não tinham compreendido (cf. Mc 7, 17-20).
O homem se define por suas
intenções
21 “Pois é de dentro do coração humano que
saem as más intenções, imoralidades, roubos, assassínios, 22 adultérios,
ambições desmedidas, maldades, fraudes, devassidão, inveja, calúnia, orgulho, falta
de juízo. 23 Todas estas coisas más saem de dentro, e são elas que tornam
impuro o homem”.
Nosso
Senhor vinha quebrando a mencionada teoria farisaica do “universo fechado”,
quando “declarava puros todos os alimentos” (Mc 7, 19), isto é, que todas as
criaturas são neutras. A matéria assimilada pelo homem não é impura; pelo
contrário, é o homem que torna boas ou ruins as coisas, segundo o uso que delas
faz. Por conseguinte, a “fábrica” de impurezas já existe dentro do coração de
todo ser humano, porque foi concebido no pecado original e suas inclinações são
más. Sem o auxílio da graça ele é um verdadeiro poço de misérias, um feitor de
loucuras e de crimes, incapaz, por seu esforço pessoal, de se manter fiel à
prática dos Mandamentos, de forma estável.
Esta
corrupção depende, sobretudo, das suas intenções, pois se, de um lado, é
possível executar uma ação per se santa tendo em mente um desígnio perverso, de
outro, pode acontecer que alguém se veja na contingência de presenciar cenas
péssimas e por elas não seja tisnado, uma vez que não lhes dê sua adesão. Esta
é a razão pela qual não devemos nos perturbar quando, por exemplo, um
pensamento desonesto, sugerido pelo demônio, nos vem à cabeça; desde que o
coração não consinta nele e o rejeite, fiquemos tranquilos...
A
impureza de alma: eis “o pomo da discórdia” nesta discussão entre o Divino
Mestre e os fariseus. Jesus demonstra quanto é ridículo imaginar que pelo toque
de algum objeto a alma se macule. É claro que se alguém utiliza o corpo para
ofender a Deus adquire uma mancha de alma; mas este ato partiu de um mau desejo
da inteligência e da vontade, potências da alma, enquanto o corpo foi mero
instrumento para fazer o que é ilícito.
III – Estejam os lábios de acordo
com o coração!
Deus
nos deu uma Lei eterna que gravou em nossa alma; no Sinai nos entregou esta Lei
escrita em tábuas de pedra e, por fim, a manifestou ainda visível e viva no
próprio Nosso Senhor Jesus Cristo, o Verbo de Deus que Se fez carne e habitou
entre nós, “para dar testemunho da verdade” (Jo 18, 37), de modo que todos a
conhecêssemos perfeitamente.
Entretanto,
a partir do momento em que Adão e Eva desprezaram esta Lei, no Paraíso e, na
hora da prova, não optaram pela virtude, deixando-se levar pelas atrações do
demônio a ponto de cometerem o pecado, a tendência do homem é esquecer a
Palavra e a Lei.
Ora,
Deus quer de nós uma aceitação plena da Lei imutável e sempiterna, sendo
“praticantes da Palavra e não meros ouvintes” (Tg 1, 22); Ele deseja que nosso
íntimo esteja inteiramente de acordo com os lábios. Estes devem pronunciar
aquilo que transborda do coração, conforme afirmou Nosso Senhor: “A boca fala
daquilo de que o coração está cheio” (Lc 6, 45). É bem verdade que nós temos de
traduzir em palavras, em atitudes, em gestos, em decoração de ambientes, em
cerimonial e na própria pessoa, a doutrina que recebemos como herança. Mas para
não cairmos no equívoco farisaico, é preciso primeiro progredir na vida
espiritual, transformar a alma e alcançar a máxima união de vias e de
cogitações com Nosso Senhor Jesus Cristo; o resto virá como consequência! É Ele
quem, por sua graça, há de tornar puro o nosso interior, para que dele saia a
bondade e brotem obras Jesus discute com os fariseus - Catedral de Saint
Gatien, Tours (França) de justiça.
Se não
tivermos meios de dar a Deus uma boa dádiva, à altura de nossos anseios,
ofereçamos a Ele o pouco que possuímos, animados, porém, de excelente intenção,
com toda a alma... Será como o óbolo da viúva elogiada por Jesus no Evangelho
(cf. Mc 12, 41-44): ela lançou só duas moedinhas, quando, no fundo, queria
entregar o seu coração!
Como é meu interior?
A
Liturgia deste 22º Domingo do Tempo Comum resume-se no seguinte problema: onde
está o meu coração? Será que meus lábios louvam a Deus, mas o interior está
fora da Lei? Quantas vezes prefiro estar em consonância com o mundo e em
oposição a Nosso Senhor? Eu coloco Deus no centro de minha vida ou me ponho a
mim mesmo?
Todas
as nossas ações se correlacionam com nosso destino eterno e com nossa vocação
sobrenatural; por isso somos convidados a ser íntegros diante de Deus,
amando-O, respeitando suas Leis com elevação de espírito, fervorosos em relação
à prática da santidade. Peçamos a Maria Santíssima que nos obtenha graças
extraordinárias para que nossos corações sejam chamejantes e os lábios
transbordem do que canta e proclama o coração!
1 SÃO TOMÁS DE AQUINO.
Suma Teológica. I, q.25, a.6, ad 4.
2 ROYO MARÍN, OP, Antonio. Teología de la perfección cristiana. Madrid:
BAC, 2006, p.286.
3 BONSIRVEN, SJ, Joseph. Le judaïsme palestinien au temps de Jésus-Christ. 2.ed. Paris: Gabriel
Beauchesne, 1934, t.I, p.265-267.
4 TUYA, OP, Manuel de;
SALGUERO, OP, José. Introducción a la Biblia. Madrid:
BAC, 1967, v.II, p.508.
5 Cf. KELIM. M 17, 14. In: BONSIRVEN, SJ, Joseph (Ed.). Textes rabbiniques des
deux premiers siècles chrétiens. Roma: Pontificio Istituto Biblico, 1955,
p.665.
6 Cf. SÃO TOMÁS DE
AQUINO, op. cit., q.103, a.5.
7 Cf. OHALOT. M 1-3. In: BONSIRVEN, Textes rabbiniques des deux premiers siècles
chrétiens, op. cit., p.672-674.
8 Cf. BERAKHOT. Y 12a; HAGIGÁ. M 3, 1; ZEBAHIM. B 11, 7-8; KELIM. M 25, 6-9. In: BONSIRVEN, Textes rabbiniques des deux
premiers siècles chrétiens, op. cit., p.107; 283; 573; 668.
9 YADAIM. M 2, 3. In: BONSIRVEN, Textes rabbiniques des deux premiers
siècles chrétiens, op. cit., p.707.
10 SANTO
IRINEU DE LYON. Adversus Hæreses. L.IV, c.16, n.5: MG 7, 1018.
11 Idem, n.4.
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