Comentário ao Evangelho XXII Domingo do Tempo Comum – Ano B
Naquele tempo, 1 os fariseus e alguns
mestres da Lei vieram de Jerusalém e se reuniram em torno de Jesus. 2 Eles viam
que alguns dos seus discípulos comiam o pão com as mãos impuras, isto é, sem as
terem lavado. 3 Com efeito, os fariseus e todos os judeus só comem depois de
lavar bem as mãos, seguindo a tradição recebida dos antigos. 4 Ao voltar da
praça, eles não comem sem tomar banho. E seguem muitos outros costumes que
receberam por tradição: a maneira certa de lavar copos, jarras e vasilhas de
cobre. 5 Os fariseus e os mestres da Lei perguntaram então a Jesus: “Por que os
teus discípulos não seguem a tradição dos antigos, mas comem o pão sem lavar as
mãos?” 6 Jesus respondeu: “Bem profetizou Isaías a vosso respeito, hipócritas,
como está escrito: ‘Este povo Me honra com os lábios, mas seu coração está
longe de Mim. 7 De nada adianta o culto que Me prestam, pois as doutrinas que
ensinam são preceitos humanos’. 8 Vós abandonais o Mandamento de Deus para
seguir a tradição dos homens”. 14 Em seguida, Jesus chamou a multidão para
perto de Si e disse: “Escutai todos e compreendei: 15 o que torna impuro o
homem não é o que entra nele vindo de fora, mas o que sai do seu interior. 21
Pois é de dentro do coração humano que saem as más intenções, imoralidades,
roubos, assassínios, 22 adultérios, ambições desmedidas, maldades, fraudes,
devassidão, inveja, calúnia, orgulho, falta de juízo. 23 Todas estas coisas más
saem de dentro, e são elas que tornam impuro o homem” (Mc 7, 1-8.14-15.21-23).
Onde está o meu coração?
Face à hipocrisia farisaica, o Divino Mestre demonstra que o
homem não se define pelas exterioridades, mas sim pelas intenções do coração.
Mons. João Scognamiglio Clá Dias, EP
I – Qual o comportamento à altura
da vida divina?
Todos
nós nascemos em pecado, como inimigos de Deus e objeto de sua ira (cf. Ef 2,
3), mas, chamados a obter a posse da visão beatífica, fomos — ao lado dos Anjos
— elevados à vida divina. Vida tão superior à simplesmente natural, que a graça
— pela qual dela participamos — pertence ao sexto plano da criação, muito acima
dos minerais, dos vegetais, dos animais, dos homens e até mesmo dos Anjos. É o
próprio Deus quem toma a iniciativa de introduzi-la em nós pelo milagre
extraordinário do Batismo que nos faz filhos d’Ele. Quando o sacerdote derrama
água sobre a nossa cabeça e diz “Eu te batizo em nome do Pai, e do Filho e do
Espírito Santo”, deixamos de ser meros animais racionais para nos tornarmos
entes divinos, com as virtudes da fé, esperança, caridade, prudência, justiça,
fortaleza, temperança, e todos os dons do Espírito Santo infundidos na alma.
Na
Liturgia do 22º Domingo do Tempo Comum encontramos estímulos, convites e esclarecimentos
a respeito desta vida, para podermos merecer chegar à sua plenitude, ao passar
do tempo à eternidade.
A vida sobrenatural: dom do “Pai
das luzes”
Na
segunda leitura (Tg 1, 17-18.21b-22.27) insiste São Tiago: “Todo dom precioso e
toda dádiva perfeita vêm do alto; descem do Pai das luzes” (1, 17a). Não há
dádiva mais perfeita do que esta vida sobrenatural! Três são as criaturas que
têm “até certo ponto infinita dignidade”,1 pois Deus não podia fazê-las mais
excelentes: Jesus Cristo Homem, Maria Santíssima e a visão beatífica; e esta
última já a possuímos em germe, neste mundo, através da graça.
O “Pai
das luzes, no qual não há mudança nem sombra de variação” (Tg 1, 17b) porque é
o Ser Absoluto, “de livre vontade nos gerou pela Palavra da verdade, a fim de
sermos como que as primícias de suas criaturas” (Tg 1, 18). Sim, Ele nos gerou
para a vida divina através do seu Verbo, que Se encarnou para que todos
tenhamos vida em abundância (cf. Jo 10, 10). Por isso nos cabe receber com
humildade a Palavra de Deus, que é capaz de salvar nossas almas (cf. Tg 1,
21b).
“Todavia”
— continua São Tiago — “sede praticantes da Palavra e não meros ouvintes,
enganando-vos a vós mesmos” (1, 22); isto é, não basta conhecer a doutrina, é
preciso respeitar as leis da vida sobrenatural, aprendendo a nos comportarmos
de modo diferente, enfrentando as inclinações que brotam em nós devido ao
pecado original, e vencendo-as para alcançar o prêmio prometido. Nisto consiste
a prova que todos atravessamos, ao longo de nossa passagem pela Terra. Para
mantermos a filiação divina é indispensável que desenvolvamos a vida da graça,
cumprindo a Palavra. Para tal, adverte ainda São Tiago, é necessário, “não se
deixar contaminar pelo mundo” (1, 27). O mundo, de fato, tem uma visualização
carente de sobrenatural.
Por sua
vez, o Salmo Responsorial é muito elucidativo, ao perguntar: “Senhor, quem
morará em vossa casa e no vosso monte santo habitará?” (Sl 14, 1a). Como se
dissesse: quem terá convívio convosco, ó Deus? Quem estará eternamente na vossa
companhia? Quem gozará de vossa própria felicidade? Quem Vos verá face a face?
Quem participará de vossos bens? E prossegue o salmista: “É aquele que caminha
sem pecado e pratica a justiça fielmente” (Sl 14, 2), ou seja, aquele que ama a
santidade e a põe em prática.
Para entrar na Terra Prometida,
Israel deve abraçar o espírito sobrenatural
Na
primeira leitura (Dt 4, 1-2.6-8) encontramos Moisés depois de ter realizado
grandes maravilhas pelo poder de Deus. Ele livrara o povo hebreu da escravidão
do Egito e, estendendo o seu cajado, dividira as águas do Mar Vermelho para que
os israelitas o cruzassem até o outro lado, a pé enxuto (cf. Ex 14, 21-22). Em
seguida, ante a tremenda ameaça das tropas egípcias que chegaram para os
prender e levar de volta — porque o Faraó se arrependera de os ter deixado
partir —, ele levantara novamente o seu braço e as águas se juntaram e
deglutiram todo o exército inimigo (cf. Ex 14, 27-28).
Seguiram-se
quarenta anos no deserto, durante os quais Moisés tirou água da pedra, Deus fez
descer do céu o maná e mandou vir codornizes sobre o acampamento dos israelitas
para os alimentar (cf. Ex 17, 1-6; 16, 4-31), bem como outros milagres
estupendos. Quatro décadas de educação e aprendizagem para aquele povo, e
também de castigo, por terem praticado o mal! Apesar dessas infidelidades, Deus
não falta à sua promessa; pelo contrário, Ele a cumpre, entregando-lhes a Terra
Prometida.
Chegada
a hora de ali entrar, trata-se de o povo retribuir o bem já recebido, assim
como aquele que ainda iria receber. No que consiste esta reciprocidade? Eis o
ensinamento da leitura: em abraçar o espírito sobrenatural e observar a conduta
moral e religiosa prescrita por Deus, com o intuito de estabelecer um
relacionamento entre Ele e o povo. Os decretos que o profeta transmite
manifestam a superioridade da nação eleita pelo Senhor “perante os povos” (Dt
4, 6) e são, segundo a linguagem do próprio Moisés, “justos” (Dt 4, 8). Sim,
porque, como indica São Paulo, esta Lei era um educador para conduzir os
hebreus até Nosso Senhor Jesus Cristo e serem justificados pela fé n’Ele (cf.
Gal 3, 24).
Sem a Lei de Deus não há
participação na vida divina
Ora, o
verdadeiro espírito dos preceitos positivos da Lei Mosaica estava sintetizado
no Decálogo, explicitação do comportamento que devemos ter para sermos
semelhantes ao Criador. Estas simples leis resumem, de modo excelente, no que
consiste o exercício da vida divina em nossas almas e nos torna adequados a
ela.
Sem a
guarda dos Dez Mandamentos não se participa da vida de Deus, pois, a partir do
momento em que é cometido um pecado grave, pela transgressão de qualquer deles,
perde-se a graça santificante e a inabitação da Santíssima Trindade na alma,
voltando esta a ser escrava do demônio. “O pecado mortal é o inferno em
potência. É, pois, como um desabamento instantâneo de nossa vida sobrenatural,
um verdadeiro suicídio da alma para a vida da graça”.2
Mas a
natureza humana é profundamente lógica: quando o homem, arrastado por suas más
inclinações, quer praticar o mal, antes mesmo de perpetrá-lo ele inventa uma
racionalização para justificar seu ato. E, aos poucos, vai criando outra
religião, com uma moral diversa, independente da Lei de Deus. Esta é a
tendência que, sob a capa de fidelidade aos ensinamentos de Moisés, veremos
retratada no Evangelho deste domingo e desmascarada por Nosso Senhor Jesus
Cristo.
II – Divinizaram as leis humanas,
e humanizaram as leis divinas
Naquele tempo, 1 os fariseus e alguns
mestres da Lei vieram de Jerusalém e se reuniram em torno de Jesus.
O
Evangelista São Marcos é muito positivo, afirmativo e categórico. Enquanto
discípulo de São Pedro, e acompanhando-o amiúde, podia comprovar a maldade dos
fariseus que, aliás, já conhecia de sobra, porque também ele era judeu. Por
isso empenhou-se em transcrever as discussões de Jesus com eles, quer lhe
tivessem sido contadas por São Pedro, quer as houvesse testemunhado. Na cena
recolhida pela Liturgia de hoje, ele narra como os escribas e fariseus de
Jerusalém — ou seja, aqueles que mais frequentavam o Templo — foram até Nosso
Senhor. Não era para se encantarem com Ele que O seguiam; vinham com o objetivo
de estudar suas ações e encontrar alguma falha pela qual pudessem condená-Lo.
Tradições humanas que desviavam
da Lei de Deus
2 Eles viam que alguns dos seus discípulos
comiam o pão com as mãos impuras, isto é, sem as terem lavado. 3 Com efeito, os
fariseus e todos os judeus só comem depois de lavar bem as mãos, seguindo a
tradição recebida dos antigos. 4 Ao voltar da praça, eles não comem sem tomar
banho. E seguem muitos outros costumes que receberam por tradição: a maneira
certa de lavar copos, jarras e vasilhas de cobre.
Os
escribas e fariseus eram extremamente minuciosos e detalhistas no cumprimento
de uma série de costumes antigos, chegando às vezes a exageros ridículos. Estas
normas, é preciso dizer, não faziam parte da Lei de Moisés, pois haviam sido
transmitidas por tradição, mas, para eles, tinham valor de dogmas, superiores
mesmo às da Revelação.
O douto
padre Bonsirven assim se estende sobre este ponto: “A lei oral é apresentada no
início como a cerca com a qual se circunda a Torá [a Lei de Moisés], para
precisar aquilo que nela é muito vago ou muito amplo, e assegurar uma
observância mais exata. Esta via, contudo, era muito perigosa: à força de se
encher de novas prescrições, a cerca acabava por tornar-se sufocante; [...] as
novas precisões, que sem cessar restringem o terreno onde era possível mover-se
livremente, as deduções e assimilações infindas que ampliam as obrigações e
multiplicam os interditos, submetendo ao preceito os mínimos objetos e
introduzindo minúcias que a Lei não previa nem queria, não param de engrossar e
elevar a cerca, apertando e amarrando o israelita numa profusão de
mandamentos”.3 Em concreto, a origem das prescrições de purificação remontava à
exigência divina de que os israelitas não se misturassem com os povos
idólatras, para não serem atraídos por suas falsas religiões (cf. Ex 34,
12-16). Aos poucos, todavia, “o que no princípio servira para exprimir a
santidade de Deus e de seu povo converteu-se num jugo insuportável, e o que era
um meio de proteção veio a ser um laço para as almas”.4
Uma errônea teologia
Com
efeito, os fariseus acabaram por inventar uma teologia de “universo fechado”,
pela qual dividiam a criação em duas grandes categorias: a primeira era a das
coisas puras, aquelas atinentes diretamente ao culto; a segunda, vastíssima,
abarcava as demais coisas, tidas por eles como impuras.5 Concepção
absolutamente errada, pois implicava em afirmar que Deus houvesse criado só
alguns seres que tivessem relação com Ele, e todo o resto fosse autônomo, sem
qualquer vinculação com o Criador.6
Por
isso consideravam indispensáveis as abluções e os banhos após o contato
corporal com tudo o que não fosse puro, pois, a seu ver, o homem ficava
manchado. Quem comparecesse, pois, a um enterro e tocasse no defunto, ou mesmo
quem atravessasse um cemitério e se encostasse num túmulo, estava obrigado a se
purificar.7 Os copos, as vasilhas e as jarras eram lavados por fora, para não
poluir as mãos de quem os usasse.8 Tal pormenor constituía um verdadeiro
contrassenso, já que, por higiene, estes objetos deviam sobretudo ser limpos
por dentro; mas o problema para eles cifrava-se na possibilidade de apanhá-los
sem risco de contaminação.
Sob
certo aspecto se entende que eles caíssem neste engano, já que o ponto de
partida de seu raciocínio era válido. De fato, enquanto os Anjos, puros
espíritos, não precisam ver, ouvir, degustar, apalpar ou sentir os odores,
porque têm um conhecimento intuitivo, a criatura humana, composta de corpo e
alma, adquire o conhecimento através dos sentidos e, portanto, necessita de um
símbolo exterior para chegar às conclusões e compreender bem as realidades
interiores. Os próprios Sacramentos são constituídos de matéria e forma a fim
de serem mais acessíveis à nossa natureza. A matéria do Batismo, por exemplo, é
a água — utilizada sempre para limpar —, de maneira que, ao ser derramada sobre
a cabeça do batizando, significa e realiza a purificação completa da alma.
Ora, os
fariseus haviam exacerbado esta inclinação natural do homem até o inconcebível,
e era inevitável que hábitos estabelecidos de modo tão arbitrário, e não por
amor a Deus, chegassem ao absurdo. Para citar um deles, no tratado Yadaim, dedicado às mãos, acha-se
descrito como efetuar o meticuloso ritual de sua purificação, após tocar
“indevidamente” nas coisas impuras. Note-se, entretanto, não se tratar de uma
questão de mãos sujas ou limpas, e sim de mãos legalmente impuras segundo os
conceitos farisaicos: “As mãos são puras ou impuras até a articulação.
Derrama-se a primeira água até a articulação e a segunda mais além, voltando à
mão, é puro. Se as duas abluções são feitas mais além da articulação,
retornando à mão, é impuro. Se é feita a primeira [ablução] sobre uma mão, e
depois, mudando de intenção, sobre as duas mãos, é impuro. Se a primeira
[ablução] se faz sobre as duas [mãos], e depois, mudando de intenção, sobre uma
só, é puro. Se uma mão está lavada e esfrega-se na outra, é impuro. Se ela se
esfrega na cabeça ou na parede, é puro”.9
Jesus não obriga a preceitos
humanos
5 Os fariseus e os mestres da Lei
perguntaram então a Jesus: “Por que os teus discípulos
não seguem a tradição dos antigos, mas comem o pão sem lavar as mãos?”
É
curioso reparar como os escribas e fariseus não atacam o Divino Mestre de
maneira direta, porque provavelmente Ele observava estas exigências
tradicionais, a fim de evitar murmurações contra Si. Chegada a hora da
refeição, lavava as mãos e cumpria o preceito, já que era costume adquirido. Ao
mesmo tempo, permitia que outros — neste caso, alguns dos Apóstolos — o
rompessem, pois estas minúcias e querelas constituíam uma espécie de lei
terrena que Ele, certamente, criticava e a respeito da qual promovia um agere
contra, para facilitar que seus discípulos, longe de se apegarem a normas
humanas e de quererem transformá-las em divinas, esquecendo-se de Deus,
subissem, isto sim, das criaturas ao Criador.
Não
obstante, em relação à Lei entregue por Ele mesmo a Moisés no Monte Sinai,
Nosso Senhor não dava liberdade de seguir ou não, dado ser ela eterna. Os Dez
Mandamentos não podem sofrer mudança alguma, são fixos e perenes, e têm de ser
praticados até o fim do mundo por todos os homens e mulheres, sem adaptações às
conveniências do momento; quanto aos demais preceitos da Lei Mosaica, Ele não
veio “para os abolir, mas sim para levá-los à perfeição” (Mt 5, 17). Foram
superados porque “depois que veio a fé [em Jesus Cristo], já não dependemos de
pedagogo” (Gal 3, 25). É o que explica Santo Irineu, com muita clareza:
“aqueles preceitos que acarretavam servidão e eram apenas sinais foram
revogados na liberdade do Novo Testamento. Enquanto os preceitos naturais
próprios a quem é livre, e que são comuns a todos, foram reforçados e
aumentados, dando aos homens, com largueza, o dom de conhecer a Deus como Pai
por adoção, de amá-Lo de todo coração e, sem desvios, de seguir seu Verbo”.10 E
comenta ainda o mesmo Santo: “As palavras do Decálogo [...] permanecem entre
nós, expandidas e ampliadas, mas não anuladas por ocasião de sua vinda
carnal”.11
O espírito do mundo
6 Jesus respondeu: “Bem profetizou Isaías a
vosso respeito, hipócritas, como está escrito: ‘Este povo Me honra com os
lábios, mas seu coração está longe de Mim. 7 De nada adianta o culto que Me
prestam, pois as doutrinas que ensinam são preceitos humanos’. 8 Vós abandonais
o Mandamento de Deus para seguir a tradição dos homens”.
A
resposta de Jesus não significa uma reprovação à praxe de lavar as mãos antes
de comer. Isto também nós o fazemos hoje, por higiene, sem nos atermos a uma
lei temporal que nos imponha modos de ser mundanos. Se, contudo, houvesse um
decreto para assim proceder por amor a Deus, ele seria legítimo.
Aqueles
que amam o mundo — como os fariseus — são levados a dar mais atenção aos
princípios do convívio social do que à Lei de Deus, porque, na prática, vivem
como se Deus não existisse. E, por vezes, certas leis humanas, contrárias à Lei
divina, as observam com uma precisão absoluta. Para estas pessoas o fim último
da vida se cumpre aqui na Terra e, no fim, a paga que recebem se reduz ao
conceito que os demais fizeram a seu respeito.
Nós
precisamos cuidar, em nosso cotidiano, de não dar mais importância à opinião
dos outros do que à de Deus. Importa-nos, acima de tudo, seu juízo sobre nós!
Imensamente séria é sua Lei e transgredi-la acarreta consequências terríveis.
Quando alguém infringe uma lei de trânsito é penalizado com uma multa; mas se
por infelicidade violar um Mandamento divino, pode ver as portas do Céu se
fecharem diante de si e ir para o inferno por toda a eternidade!
O horrível defeito da hipocrisia
Por
este motivo Jesus Se levantou contra os fariseus e os recriminou,
aplicando-lhes a frase de Isaías: “Este povo Me honra com os lábios, mas seu
coração está longe de Mim. De nada adianta o culto que Me prestam, pois as
doutrinas que ensinam são preceitos humanos”. Ou seja, era meramente humano o
empenho deles em observar, de forma meticulosa, uma série de regras externas.
Apesar de assim agirem por uma suposta razão religiosa e louvarem o Senhor com
os lábios, seu coração estava longe d’Ele. Erravam, pois, ao praticar uma
devoção de aparência, bastando-lhes aquelas abluções para ficarem satisfeitos e
se julgarem livres de qualquer impureza, sem se preocuparem com os vícios que
lhes manchavam a alma. Enquanto no coração guardavam tudo aquilo que Jesus vai
enumerar mais adiante — “más intenções, imoralidades, roubos, assassínios,
adultérios, ambições desmedidas, maldades”, entre outros —, eles sustentavam a
ideia de que o interior do homem — sobretudo se fosse fariseu — de si mesmo era
puro, e supunham encontrar nas exterioridades a tranquilidade de consciência e
a solução para encobrir estas falhas de espírito. Por isso o principal título
que receberam do Salvador foi o de “hipócritas”!
A
hipocrisia é um defeito horrível — muito mais comum do que pensamos! —, pelo
qual há uma dissociação entre os ditos e as atitudes de uma pessoa e aquilo que
ela pensa ou deseja. O hipócrita se parece com o “pai da mentira” (Jo 8, 44),
porque este é justamente o modo de ser do demônio: apresenta-se com palavras
atraentíssimas, dando a impressão de querer fazer o bem, mas suas intenções são
péssimas. Embora não constem no Evangelho deste domingo, os versículos 9 a 13
tornam ainda mais compreensível este ensinamento do Divino Mestre: “Na
realidade, invalidais o Mandamento de Deus para estabelecer a vossa tradição”
(Mc 7, 9). De fato, os fariseus chegaram a transformar estas normas, que
deveriam visar o sobrenatural, numa espécie de idolatria. Arrancaram os
autênticos preceitos morais e criaram uma religião própria, diferente da
verdadeira, totalmente desprovida de cunho religioso e separada de Deus, porque
se apoiava em ditames mundanos, determinados pela vida social da época.
Divinizaram a lei humana; dessacralizaram e humanizaram a Lei divina!
Em
seguida Jesus citou um exemplo (cf. Mc 7, 10-13) para mostrar como faziam a
distorção da Lei, esvaziando seu conteúdo e falseando os costumes que nela se
baseavam: os fariseus, porque eram avarentos, recorriam a um estratagema, de
maneira a poder guardar o dinheiro que, em função do Quarto Mandamento do
Decálogo, todo filho tem a obrigação de usar para assistir os pais na velhice,
contribuindo para a subsistência deles. Em vez de dar aos pais a quantia
necessária para seu sustento, os fariseus a consagravam como oferta a Deus e
consideravam-se livres daquele dever filial.
Por meio de um enigma, Jesus
chama as multidões para Si
14 Em seguida, Jesus chamou a multidão para
perto de Si e disse: “Escutai todos e compreendei: 15 o que torna impuro o
homem não é o que entra nele vindo de fora, mas o que sai do seu interior”.
“Jesus
chamou a multidão para perto de Si”, pois ela se tinha afastado e achava-se
meio dispersa. Decerto esta dissipação provinha de uma formação religiosa
deficiente. Quantas vezes as pessoas se interessam mais por seus problemas
concretos, mesmo quando têm o próprio Salvador diante de si!
Para
atrair a atenção das turbas, Ele lhes lançou, muito ao estilo oriental, um
quase que enigma: “O que torna impuro o homem não é o que entra nele vindo de
fora, mas o que sai do seu interior”. É de se supor que logo se levantou um
vozerio, uma discussão para tentar descobrir qual o significado daquela frase.
No entanto, não a resolveram... Só mais tarde, estando em casa, os discípulos O
interrogaram a respeito da parábola, e Jesus lhes explicou aquilo que também
eles não tinham compreendido (cf. Mc 7, 17-20).
O homem se define por suas
intenções
21 “Pois é de dentro do coração humano que
saem as más intenções, imoralidades, roubos, assassínios, 22 adultérios,
ambições desmedidas, maldades, fraudes, devassidão, inveja, calúnia, orgulho, falta
de juízo. 23 Todas estas coisas más saem de dentro, e são elas que tornam
impuro o homem”.
Nosso
Senhor vinha quebrando a mencionada teoria farisaica do “universo fechado”,
quando “declarava puros todos os alimentos” (Mc 7, 19), isto é, que todas as
criaturas são neutras. A matéria assimilada pelo homem não é impura; pelo
contrário, é o homem que torna boas ou ruins as coisas, segundo o uso que delas
faz. Por conseguinte, a “fábrica” de impurezas já existe dentro do coração de
todo ser humano, porque foi concebido no pecado original e suas inclinações são
más. Sem o auxílio da graça ele é um verdadeiro poço de misérias, um feitor de
loucuras e de crimes, incapaz, por seu esforço pessoal, de se manter fiel à
prática dos Mandamentos, de forma estável.
Esta
corrupção depende, sobretudo, das suas intenções, pois se, de um lado, é
possível executar uma ação per se santa tendo em mente um desígnio perverso, de
outro, pode acontecer que alguém se veja na contingência de presenciar cenas
péssimas e por elas não seja tisnado, uma vez que não lhes dê sua adesão. Esta
é a razão pela qual não devemos nos perturbar quando, por exemplo, um
pensamento desonesto, sugerido pelo demônio, nos vem à cabeça; desde que o
coração não consinta nele e o rejeite, fiquemos tranquilos...
A
impureza de alma: eis “o pomo da discórdia” nesta discussão entre o Divino
Mestre e os fariseus. Jesus demonstra quanto é ridículo imaginar que pelo toque
de algum objeto a alma se macule. É claro que se alguém utiliza o corpo para
ofender a Deus adquire uma mancha de alma; mas este ato partiu de um mau desejo
da inteligência e da vontade, potências da alma, enquanto o corpo foi mero
instrumento para fazer o que é ilícito.
III – Estejam os lábios de acordo
com o coração!
Deus
nos deu uma Lei eterna que gravou em nossa alma; no Sinai nos entregou esta Lei
escrita em tábuas de pedra e, por fim, a manifestou ainda visível e viva no
próprio Nosso Senhor Jesus Cristo, o Verbo de Deus que Se fez carne e habitou
entre nós, “para dar testemunho da verdade” (Jo 18, 37), de modo que todos a
conhecêssemos perfeitamente.
Entretanto,
a partir do momento em que Adão e Eva desprezaram esta Lei, no Paraíso e, na
hora da prova, não optaram pela virtude, deixando-se levar pelas atrações do
demônio a ponto de cometerem o pecado, a tendência do homem é esquecer a
Palavra e a Lei.
Ora,
Deus quer de nós uma aceitação plena da Lei imutável e sempiterna, sendo
“praticantes da Palavra e não meros ouvintes” (Tg 1, 22); Ele deseja que nosso
íntimo esteja inteiramente de acordo com os lábios. Estes devem pronunciar aquilo
que transborda do coração, conforme afirmou Nosso Senhor: “A boca fala daquilo
de que o coração está cheio” (Lc 6, 45). É bem verdade que nós temos de
traduzir em palavras, em atitudes, em gestos, em decoração de ambientes, em
cerimonial e na própria pessoa, a doutrina que recebemos como herança. Mas para
não cairmos no equívoco farisaico, é preciso primeiro progredir na vida
espiritual, transformar a alma e alcançar a máxima união de vias e de
cogitações com Nosso Senhor Jesus Cristo; o resto virá como consequência! É Ele
quem, por sua graça, há de tornar puro o nosso interior, para que dele saia a
bondade e brotem obras Jesus discute com os fariseus - Catedral de Saint
Gatien, Tours (França) de justiça.
Se não
tivermos meios de dar a Deus uma boa dádiva, à altura de nossos anseios,
ofereçamos a Ele o pouco que possuímos, animados, porém, de excelente intenção,
com toda a alma... Será como o óbolo da viúva elogiada por Jesus no Evangelho
(cf. Mc 12, 41-44): ela lançou só duas moedinhas, quando, no fundo, queria
entregar o seu coração!
Como é meu interior?
A
Liturgia deste 22º Domingo do Tempo Comum resume-se no seguinte problema: onde
está o meu coração? Será que meus lábios louvam a Deus, mas o interior está
fora da Lei? Quantas vezes prefiro estar em consonância com o mundo e em
oposição a Nosso Senhor? Eu coloco Deus no centro de minha vida ou me ponho a
mim mesmo?
Todas
as nossas ações se correlacionam com nosso destino eterno e com nossa vocação
sobrenatural; por isso somos convidados a ser íntegros diante de Deus,
amando-O, respeitando suas Leis com elevação de espírito, fervorosos em relação
à prática da santidade. Peçamos a Maria Santíssima que nos obtenha graças
extraordinárias para que nossos corações sejam chamejantes e os lábios
transbordem do que canta e proclama o coração!
1 SÃO TOMÁS DE AQUINO.
Suma Teológica. I, q.25, a.6, ad 4.
2 ROYO MARÍN, OP, Antonio. Teología de la perfección cristiana. Madrid: BAC, 2006, p.286.
3 BONSIRVEN, SJ, Joseph. Le judaïsme palestinien au temps de Jésus-Christ. 2.ed.
Paris: Gabriel Beauchesne, 1934, t.I, p.265-267.
4 TUYA, OP, Manuel de;
SALGUERO, OP, José. Introducción a la Biblia. Madrid: BAC, 1967, v.II, p.508.
5 Cf. KELIM. M 17, 14. In: BONSIRVEN, SJ, Joseph (Ed.). Textes rabbiniques des
deux premiers siècles chrétiens. Roma: Pontificio Istituto Biblico, 1955,
p.665.
6 Cf. SÃO TOMÁS DE
AQUINO, op. cit., q.103, a.5.
7 Cf. OHALOT. M 1-3. In: BONSIRVEN, Textes rabbiniques des deux premiers
siècles chrétiens, op. cit., p.672-674.
8 Cf. BERAKHOT. Y 12a; HAGIGÁ. M 3, 1; ZEBAHIM. B 11, 7-8; KELIM. M 25, 6-9. In: BONSIRVEN, Textes rabbiniques des deux
premiers siècles chrétiens, op. cit., p.107; 283; 573; 668.
9 YADAIM. M 2, 3. In: BONSIRVEN, Textes rabbiniques des deux premiers
siècles chrétiens, op. cit., p.707.
10 SANTO
IRINEU DE LYON. Adversus Hæreses. L.IV, c.16, n.5: MG 7, 1018.
11 Idem, n.4.
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