Comentário ao Evangelho XXIV Domingo do Tempo Comum – Ano B – Mc
8,27-35
Naquele tempo, 27 Jesus partiu com seus discípulos para os povoados de
Cesareia de Filipe. No caminho perguntou aos discípulos: “Quem dizem os homens
que eu sou?”
28 Eles responderam: “Alguns dizem que tu és João Batista; outros que és
Elias; outros, ainda, que és um dos profetas”. 29 Então ele perguntou: “E vós,
quem dizeis que eu sou?” Pedro respondeu: “Tu és o Messias”.
30 Jesus proibiu-lhes severamente de falar a alguém a respeito. 31 Em
seguida, começou a ensiná-los, dizendo que o Filho do Homem devia sofrer muito,
ser rejeitado pelos anciãos, pelos sumos sacerdotes e doutores da Lei; devia
ser morto, e ressuscitar depois de três dias. 32 Ele dizia isso abertamente. Então
Pedro tomou Jesus à parte e começou a repreendê-lo. 33 Jesus voltou-se, olhou
para os discípulos e repreendeu a Pedro, dizendo: “Vai para longe de mim,
Satanás! Tu não pensas como Deus, e sim como os homens”.
34 Então chamou a multidão com seus discípulos e disse: “Se alguém me
quer seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e me siga. 35 Pois, quem
quiser salvar a sua vida, vai perdê-la; mas, quem perder a sua vida por causa
de mim e do Evangelho, vai salvá-la”. (Mc
8,27-35)
Salvar ou perder a vida?
Preparando os
Apóstolos para o que havia de vir, Jesus lhes revela ao mesmo tempo sua
divindade e sua próxima Paixão. As reações de Pedro lhe valem o louvor e a
repreensão da parte do Senhor, e o episódio termina com Jesus nos convidando a
segui-Lo: “Tome a sua cruz”.
I – A via eleita por Deus para a redenção
O orgulho de nossa natureza
decaída leva o homem, não poucas vezes, a imaginar-se Deus ou a Ele procurar
igualar-se.
Talvez por essa razão, mas,
sobretudo, pelas limitações de nosso estado de contingência, se tivéssemos de
imaginar um Salvador, este teria de ser glorioso, transcorrendo sua missão de
vitória em vitória, e coroada por um esplendoroso triunfo final. Assim O
conceberam os filhos de Zebedeu e sua mãe: “Ele disse-lhe: ‘Que queres?’ Ela
respondeu: ‘Ordena que estes meus dois filhos se sentem no teu Reino, um à tua
direita e outro à tua esquerda’” (Mt 20, 21). “Eles responderam: ‘Concede-nos
que, na tua glória, um de nós se sente à tua direita e outro à tua esquerda’”
(Mc 10, 36-37).
Essa mentalidade acompanhou o
povo eleito, inclusive os Apóstolos, até a descida do Espírito Santo, conforme
nos declara São Lucas nos Atos dos Apóstolos: “Então, os que se tinham
congregado interrogavam-No: ‘Senhor, porventura, chegou o tempo em que vais
restaurar o reino de Israel?’” (At 1, 6). Jesus já havia declarado que
retornaria ao Pai, que seu Reino não era deste mundo, etc. Entretanto, nada
disso bastara; os anseios de domínio não os abandonavam um só instante. Eram
essas as ideias fixas que tornaram obscura a fé do povo eleito,
dificultando-lhe aderir aos dogmas da Encarnação, Paixão e Morte do Cordeiro de
Deus.
De fato, o grande mistério de
um Homem-Deus padecente e moribundo, pregado numa cruz entre dois ladrões,
abandonado por seu povo, desprezado por todos e, mais especialmente, pelas
altas autoridades, só é admissível com uma vigorosa fé. Todavia, essa foi a via
eleita por Deus para a Redenção.
A glória não esteve ausente na
Paixão do Senhor. Muito pelo contrário, é impossível imaginá-la maior ou, até mesmo,
acrescível de alguma fímbria, por minúscula que seja. Porém, ela não pode ser
vista através de um prisma meramente temporal. Essa glória só é compreensível
através dos mirantes da eternidade. Aliás, se bem que nasçamos nos calendários
deste mundo, nosso destino post mortem não tem limites no tempo, e é em função
dele que devemos pautar nossa existência.
Esse é o fundo de quadro no
qual se desenrola a Liturgia do 24º Domingo do Tempo Comum.
A síntese do presente Evangelho
se concentra em dois extremos harmônicos. De um lado, recebem os Apóstolos a
revelação da divindade de Jesus e, de outro, da Paixão do Senhor. Como anexos a
esse quadro de enorme paradoxo, há a reação de Pedro e, por fim, a declaração
de Jesus sobre a condição para segui-Lo: “Tome a sua cruz”.
II – “Tu és o Cristo”
Os fatos se passam a caminho de
Cesaréia de Filipe. Essa cidade outrora se chamara Paneion, pois, durante longo
período, seus habitantes prestaram culto ao deus Pan, numa gruta natural ali
existente. Filipe, filho de Herodes o Grande, empregou todos os seus esforços
para reconstruí-la, ampliando-a e embelezando-a, e, para cair nas boas graças
do Imperador Tibério César, mudou-lhe o nome para Cesareia de Filipe.
Conforme opina Santo Agostinho,
fazendo uma aproximação entre esta narração de Marcos e a de Lucas (9, 18),
Jesus, depois de rezar, recolhido à parte, começou a interrogar os Apóstolos.
Transparece neste episódio o empenho do Divino Mestre em preparar os
fundamentos de sua Igreja. Já desenvolvera amplamente sua ação junto ao
público, tornava-se necessário, àquela altura, deixar fixados os elementos para
dar continuidade à sua obra salvadora.
Para o mundo, Jesus era um grande herói
Naquele tempo, 27 Jesus partiu com seus discípulos para os povoados de
Cesareia de Filipe. No caminho perguntou aos discípulos: “Quem dizem os homens
que eu sou?” 28 Eles responderam: “Alguns dizem que tu és João Batista; outros
que és Elias; outros, ainda, que és um dos profetas”.
Neste diálogo constataremos,
uma vez mais, a grande incoerência do espírito humano. Com toda a facilidade, naquela
quadra histórica, chegavam os homens a cultuar como deus o imperador romano.
Assim, nessa mesma cidade que havia sido dada de presente ao pai de
Filipe, Herodes o Grande, foi imediatamente construído, ao lado do “santuário”
dedicado ao deus Pan, um faustoso templo de mármore para se prestar culto ao
imperador. Alguém poderia objetar que não nascera esse plano — e menos ainda
sua realização — do seio do judaísmo; mas quantos foram os deuses criados pelo
povo eleito, em seu passado? O próprio efod produzido e utilizado por Gedeão
(cf. Jz 8, 2427) passou a ser objeto de culto de latria e, por isso mesmo,
causa de castigos. Ou seja, com a maior facilidade, os judeus caíam no
mimetismo idolátrico com os povos pagãos. Em contrapartida, quando se tratou do
Deus verdadeiro feito Homem, praticando uma fileira de incontáveis milagres
comprobatórios de sua onipotência, não se levantou uma opinião unânime de que
aparecera o Messias esperado dos Patriarcas e Profetas, e previsto nas
Escrituras. Alguns poucos, de fato, reconheceram-No, mas a maioria preferia
admitir toda espécie de quimeras e exageros, a aderir a um Messias cuja imagem
não conferia com os ditames equivocados e caprichosos de cada um.
A pergunta de Jesus lhes é
dirigida no último ano de sua vida pública. A demonstração, pelos fatos
concretos, de Quem era Ele, já se tornara suficientemente conclusiva. Os
próprios demônios O haviam proclamado o “Santo de Deus” (Mc 1, 24), o “Filho de
Deus” (Mc 3, 11), o “Filho do Deus Altíssimo” (Lc 8, 28). O Batista havia
declarado não ser digno de lhe desatar a correia das sandálias, devido à sua
inferioridade (cf. Mc 1, 7). Mas os lábios do povo não pronunciaram o título de
Messias.
Esse é o resultado da triste
inclinação do espírito humano para o erro, quando perde a inocência. Facilmente
segue o caminho oposto ao das verdades próprias à salvação. Não é fácil à
opinião pública reconhecer como autênticos e dignos de crédito os valores
reais, sobretudo quando estes contradizem tendências racionalizadas opostas à
moral.
Apesar disso, nota-se, pelas
suposições enunciadas pelos Apóstolos, que se atribuía a Jesus a categoria dos
grandes heróis da história judaica, chegando-se a considerá-Lo um precursor do
Messias.
A resposta de Pedro
29 Então ele perguntou: “E vós, quem dizeis que eu sou?” Pedro
respondeu: “Tu és o Messias”.
E por que Jesus lhes faz essa
pergunta?
Jamais por mera curiosidade,
pois, enquanto Verbo Eterno, Ele tudo sabia ab initio. Tornar explícito, aos
olhos dos Apóstolos, o ridículo dos conceitos gerais a seu respeito, trazia uma
enorme vantagem, como sublinha São João Crisóstomo (1), pois os obrigava a se
destacarem do mundo e alçarem vôo às mais elevadas camadas do pensamento: à
visão sobrenatural. Tanto mais que poucos meses restavam a Jesus para
formá-los, antes de subir ao Pai, e era de fundamental importância tornar-lhes
explícita a exata noção de quem era Aquele que os havia transformado em
pescadores de homens. Por isso, pergunta aos Apóstolos: “E vós, quem dizeis que
Eu sou?”
Pedro responderá em nome
próprio, e não de todos, como afirmam certos autores. Esse detalhe se tornará
patente através dos outros Evangelhos. Marcos omite alguns detalhes
importantes, como o elogio feito por Jesus à declaração de Pedro, antes de
constituí-lo como pedra fundamental de sua Igreja (cf. Mt 16, 17-19).
Quem comenta com precisão esta
passagem é o Cardeal Goma: “Pedro se adianta à resposta dos outros, talvez por
tê-los notado vacilantes na opinião a respeito de Jesus. A graça de Deus
ilumina seu entendimento, e seu modo de ser impetuoso, ajudado por essa mesma
graça, o faz ser o primeiro a proclamar a fé. Noutra ocasião, também tinha sido
ele o único a elevar sua voz para falar de Jesus: ‘Respondeu Simão Pedro, e
disse...’ (cf. Jo 6, 67-69).
“A definição que Pedro dá de
Jesus é plena, precisa, enérgica: Tu és o Cristo, o Messias em pessoa,
prometido aos judeus e ardentemente esperado por eles. Mais: Tu és o Filho de
Deus! Não, como eram designados os santos, no sentido de uma relação moral de
santidade ou por uma filiação adotiva, mas sim o Filho único de Deus, pela
natureza divina, a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade. Se o Apóstolo não tivesse
entendido assim, não teria necessitado uma especial revelação de Deus. O que
com imprecisão tinham insinuado os Apóstolos em outras ocasiões (cf. Mt 14, 33;
Jo 1, 49) é afirmado por Pedro de forma clara e categórica. O Pai de Jesus é
Deus vivo: vivo porque é vida essencial que essencialmente gera desde toda a
eternidade um Filho vivo. Vivo por oposição às divindades mortas do paganismo.”
Jesus proíbe divulgar que Ele era o Messias
30 Jesus proibiu-lhes severamente de falar a alguém a respeito.
Em seguida a essa belíssima
proclamação de fé realizada por Pedro, os três primeiros Evangelhos registram
uma formal e categórica proibição de Jesus aos Apóstolos, de nada contarem a
ninguém. Essa ordem de guardar silêncio não havia sido a primeira. Com certa frequência,
era imposta também a certos doentes ou possessos por Ele curados.
De um lado, até então não havia
chegado o momento de divulgar revelações que o público ainda não estava
suficientemente preparado para compreender. Os erros a propósito da figura do
Messias eram substanciais e por demais naturalistas. Por muito menos, o povo já
quisera proclamá-Lo Rei (cf. Jo 6,15), com todas as graves e inconvenientes consequências
políticas que daí decorreriam. Quiçá, neste caso, não seria Ele preso e morto
pelos próprios romanos? Ademais, bem poderia acontecer que os fariseus e o
sinédrio se aproveitassem dessa circunstância para antecipar a execução de seu
plano deicida.
Os próprios Apóstolos só
estiveram preparados para pregar com toda eficácia sobre o Cristo, Deus e Homem
verdadeiro, depois da descida do Espírito Santo sobre eles. Antes disso, os
mesmos equívocos sobre a messianidade assumidos por todo o povo eleito eram
compartilhados por eles e, por isso mesmo, muito provavelmente, em seu
apostolado apresentariam de maneira defectiva a figura de Jesus. Assim, dado
ser o mistério da Encarnação, por sua própria substância, tão insuperavelmente
elevado, só mesmo o próprio Verbo de Deus poderia pregá-lo com a devida
dignidade. Segundo decretos eternos, a divindade de Jesus devia estar selada
pelo Preciosíssimo Sangue do Filho de Deus.
De outro lado, se essa
revelação tivesse sido pública, a fé do povo, provavelmente débil, não
resistiria à fortíssima prova da Paixão, tal qual se deu com os Apóstolos.
Pregar sobre a divindade de um Homem que em breve seria crucificado entre dois
ladrões não parecia ser fácil tarefa.
III – Jesus prepara os apóstolos para a paixão
31 Em seguida, começou a ensiná-los, dizendo que o Filho do Homem devia
sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, pelos sumos sacerdotes e doutores da
Lei; devia ser morto, e ressuscitar depois de três dias.
Em rigor de objetividade, não
era a primeira vez que Jesus tratava de sua futura Paixão. De maneira
implícita, já a ela se referira anteriormente (por exemplo, em Mt 9, 15; 12,
40; Jo 2, 19-21; 3, 14), mas não com tanta clareza como agora. Sobretudo pelo
fato de todos estarem sob a forte impressão da figura de um Messias triunfal e
político, era indispensável usar de inteira franqueza. Ora, o momento não podia
ser mais propício para tal, pois o coração de cada um deles estava pervadido
pela consideração da divindade do Mestre. Sem embargo, essa revelação deve ter
sido surpreendente, por isso mesmo representando uma excelente ocasião para
introduzi-los nas perspectivas de sua morte. A divindade de Nosso Senhor
permaneceria como forte lembrança no fundo de suas almas, apesar de estar, nas
aparências, mais do que invisível, destruída. Sobretudo, o fato de ter sido
prevista com tantos detalhes, como consta no presente versículo, constituía um
auxílio à virtude da Fé e afastava qualquer resquício de escândalo.
Compreende-se que São Paulo ensine que sem a Ressurreição, nossa fé seria vã (1
Cor 15, 14).
Os primeiros a meditarem na Paixão
Os Apóstolos foram muito
privilegiados também a respeito disso. Somente eles e a Santíssima Virgem
puderam meditar sobre as ignomínias e tormentos pelos quais iria passar o
Salvador, antes mesmo de se terem estes verificado. Foram eles os primeiros
convidados a se beneficiar das grandezas da misericórdia divina, de um Deus que
se encarna e morre por amor a cada um de nós. Quanta consolação, graças e
forças estavam à disposição deles, a partir dessa revelação!
Aliança entre justiça e misericórdia
Jesus afirma a necessidade de
sua morte, que seria injustamente imposta pelo Sinédrio. Por desígnios
inimagináveis, o Pai havia determinado, desde toda a eternidade, a aliança
entre a mais severa justiça e a mais afetuosa misericórdia. Para salvar-nos,
não hesitou em nos dar seu próprio Filho e, entretanto, ao considerar os
direitos de sua justiça, exigiu desse Filho muito amado a pior das mortes.
Nosso Senhor sofre enquanto
filho do Homem e, por ser Filho de Deus, nos salva pelo oferecimento de seus
tormentos. Sua humanidade está hipostaticamente unida à natureza divina, e por
isso sua Paixão tem mérito infinito. Em função dessas duas naturezas unidas
numa pessoa divina, Jesus repara a desobediência de nossos primeiros pais,
assim como os pecados de toda humanidade. Ele é a cabeça e o primogênito dos
homens e, assim, acaba por constituir uma nova geração de resgatados e
regenerados, pela força de seu Preciosíssimo Sangue. Esse é o mais fino fundo
da proposta que Jesus faz aos Apóstolos, ao lhes revelar sua morte, conforme
diria, mais tarde, São Paulo: “O primeiro homem formado da terra, é terreno; o
segundo homem, vindo do Céu, é celeste” (1 Cor 15, 47). Era-lhes indispensável
renunciar ao velho Adão, originado do barro, para se entregarem ao Novo Adão,
descido dos Céus.
O amor não se contenta com
pouco. Ora, o amor de Jesus é infinito e, por isso, deseja a plenitude de sua
entrega às dores, à rejeição das mais altas autoridades eclesiásticas, à morte
e ao sepultamento. Que maiores provas de amor, a Deus e à humanidade decaída,
poderiam ser dadas?
Por fim, eis uma revelação que
anula qualquer possibilidade de escândalo proveniente da crucifixão: “Que
ressuscitasse depois de três dias”. É o penhor de nossa própria ressurreição. A
morte, limite máximo do poder do mundo, é o seu termo implacável, mas o poder
de Jesus é eterno e, depois de sofrermos e morrermos por Ele, ressuscitaremos
para eternamente reinarmos com Ele.
Pedro repreende Jesus...
32 Ele dizia isso abertamente. Então Pedro tomou Jesus à parte e começou
a repreendê-lo.
Há um leque de interpretações a
propósito deste episódio, desde as de autores calvinistas de mau espírito, como
refere Maldonado, até as de santos e doutores. Para bem entendê-lo, devemos
levar em conta a falta de conhecimento dos Apóstolos sobre a Paixão de Jesus.
De fato, logo depois de ter proclamado a filiação divina do Mestre, não era
nada fácil a Pedro ter de admitir a necessidade de sua condenação e morte, por
mais que se falasse em ressurreição.
Realmente, nesta cena, se bem que
não tenha sido Pedro quem falou, mas Simão, o filho de Jonas, não se pode negar
que o tenha feito com enorme manifestação de benquerença. Os bons autores
ressaltam o caráter afetuoso do gesto de Pedro. São Jerônimo, por exemplo,
aponta essa circunstância, mostrando que Pedro pode ter errado “no sentido”,
mas não no afeto (2). É nessa mesma linha que Beda explica: “Disse isso, levado
por seu afeto e bons desejos, como se quisesse dizer: Isso não pode ser! E os meus
ouvidos se recusam a ouvir que o Filho de Deus há de ser morto” (3).
Jesus admoesta Pedro
33 Jesus voltou-se, olhou para os discípulos e repreendeu a Pedro,
dizendo: “Vai para longe de mim, Satanás! Tu não pensas como Deus, e sim como
os homens”.
A própria dramaticidade
empregada pelo Divino Mestre, nessa reprimenda, é didática, pois, assim, melhor
conformou a mentalidade dos Apóstolos a um messianismo redentor através da dor.
Essa é a opinião de São João Crisóstomo: “Como é que São Pedro, tendo sido
favorecido por uma revelação de Deus, caiu tão rápido e perdeu sua
estabilidade? Diremos que não é motivo de espanto ele ignorar isso. Sabia por
revelação que Cristo era Filho de Deus vivo, mas ainda não lhe tinha sido
revelado o mistério da Cruz e da Ressurreição. [Jesus] então, para manifestar
ser conveniente que Ele chegasse até a Paixão, repreendeu Pedro” (4).
E por que Jesus chama Pedro de
Satanás? Assim responde Fr. Manuel de Tuya OP: “Naturalmente, não é que Pedro o
fosse, nem que Satanás o influenciasse (1Jo 13,2), mas sim porque sua afirmação
era digna da missão de Satanás, a qual consistia em desfazer a autêntica obra
messiânica, o que já havia pretendido fazer nas ‘tentações’ do deserto. Por
isso, a sugestão de Pedro a Jesus, que surge transbordante de afeto, é para Ele
‘escândalo’: tropeço, obstáculo, pois, a segui-la, seria boicotada a obra
messiânica do Pai: o messianismo espiritual de morte de cruz. Pedro, com isso,
não olhava ‘as coisas de Deus, mas sim as humanas’ (Mt- Mc)” (5).
IV – As condições para seguir Cristo
34 Então chamou a multidão com seus discípulos e disse: “Se alguém me
quer seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e me siga. 35 Pois, quem
quiser salvar a sua vida, vai perdê-la; mas, quem perder a sua vida por causa
de mim e do Evangelho, vai salvá-la”.
Esta afirmação tão categórica
exige de nossa parte uma especial análise e degustação, por ser repetida,
ademais, nos outros Evangelhos (cf. Mt 10, 38-39; Lc 17, 33; Jo 12, 25). Aqui
se encontram as condições para sermos verdadeiros discípulos de Cristo. 1.
1. “Se alguém me quer seguir”: depende de nossa livre
vontade. Esperar por uma graça que realize em nós a plenitude de nossa
salvação, sem o menor concurso de nossa vontade, é confundir Redenção com
Criação, ou a vida eterna com a natural. Esse convite, evidentemente, deve receber
uma resposta afirmativa de nossa parte. E é indispensável que seja fervorosa,
pertinaz e contínua. Ou, por outra, não podemos nos esquecer um só segundo
dessa determinação.
2. “renuncie a si mesmo” — A origem de todos
os pecados encontra-se no amor desordenado a nós mesmos, em detrimento da
verdadeira caridade. E o melhor remédio para essa terrível enfermidade é essa
renúncia a nós mesmos, para encontrar-nos em Deus. Seu primeiro grau consiste
no horror ao pecado mortal, preferindo morrer a consentir nessa aversão a Deus.
O segundo diz respeito ao pecado venial consciente e deliberado. O terceiro
incide sobre as imperfeições e o amor próprio, tão sorrateiro em imiscuir-se
até na prática das virtudes. Ao se progredir neste último grau, maior se torna
nossa liberdade interior, como também o gozo da paz e de consolações. Quem vive
no oposto a esses três graus, ou não entendeu a grandeza deste convite, ou
conscientemente o recusou.
3. “...tome a sua cruz ...” — Há cruzes e cruzes! As
extraordinárias se apresentam diante de nós em épocas de perseguição religiosa.
São os suplícios e a própria morte. Devemos enfrentá-los tal qual o fizeram
Jesus e todos os mártires, jamais renegando a nossa fé.
Outras haverá que são comuns a
todos os tempos. Boa parte delas não são procuradas por nós, mas indesejadas,
como por exemplo, as doenças, as debilidades da ancianidade, os rigores do
clima, etc. Outras, ainda, são oriundas do acaso: as perdas financeiras, as
desgraças, os contratempos, a pobreza, a incompreensão e o ódio gratuito da
parte dos outros, perseguições, injustiças. Às vezes, são os efeitos do nosso
próprio caráter, temperamento, inclinações, etc.
Como são numerosas as cruzes
que surgem ao longo de nossa vida!... Não as podemos evitar; pelo contrário,
temos obrigação de carregá-las. E a experiência nos mostra como elas se tornam
mais pesadas sobre nossos ombros quando as conduzimos entre choramingos e
lamúrias, ou, pior ainda, se contra elas nos revoltamos. Ademais, nestes casos
diminuímos, ou até perdemos, os correspondentes méritos.
Por fim, há também as cruzes
escolhidas livremente por nós. Abraçar a via do matrimônio, ou a de uma
comunidade religiosa, ou ainda a de leigo solteiro vivendo cristãmente no
mundo, significa compreender e desejar todos os sofrimentos que são correlatos
a cada situação. O cumprimento perfeito de cada uma das exigências do
respectivo estado de vida, a subordinação das paixões, o freio dos caprichos, a
privação destas ou daquelas comodidades, etc., constituem um campo florido de
cruzes, inerentes ao caminho eleito por nossa deliberação. Sem contar a aridez,
o tédio, o desgosto que de tempos em tempos nos assaltam ao longo da estrada
percorrida por nós, e sem volta atrás. Mas se nossa decisão foi consciente e,
sobretudo, se teve origem num sopro do Espírito Santo, jamais devemos nos
arrepender. Muito pelo contrário, enchamo-nos de ânimo e até de entusiasmo,
dando passos firmes rumo à meta final de nossa salvação.
4. “... e siga-Me” — Se empregássemos o melhor de nossos esforços,
praticando os maiores sacrifícios para carregar nossa cruz, mas num caminho
diferente do traçado por Jesus, não bastaria! É preciso abraçar a própria cruz,
“por Ele, com Ele e n’Ele”. Na contemplação dos padecimentos da Paixão de
Cristo, encontrarei as energias para carregar minha própria cruz.
Quanto a perder ou salvar a
vida, comenta o Pe. Andrés Fernández Truyols SJ: “O que o Mestre quer gravar no
coração de seus ouvintes é que devemos estar dispostos a passar por tudo, até
mesmo a morte, desde que seja para salvar a alma. Porque de nada adianta ao
homem ganhar o mundo todo se, no fim, vier a perder a sua alma, ou seja, se não
alcançar a salvação eterna” (6).
1 ) Cf. Hom. 54 in Mt, in Obras completas, BAC,
Madrid, 1956, v. II, p. 137.
2 ) Cf. ML, 26, 103.
3 ) Apud São Tomás de Aquino,
Catena Aurea, in Mc.
4 ) Hom. 55 sobre Mt 3, 22 -23.
5 ) Bíblia Comentada, BAC,
Madrid, 1964, vol. II, p. 385.
6 ) Vida de Nuestro Señor
Jesucristo, BAC, Madrid, 1954, vol. III, p. 369.
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