Conclusão dos comentários ao Evangelho XXIV Domingo do Tempo Comum – Ano B – Mc 8,27-35
III – Jesus prepara os apóstolos para a paixão
31 Em seguida, começou a ensiná-los, dizendo que o Filho do Homem devia
sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, pelos sumos sacerdotes e doutores da
Lei; devia ser morto, e ressuscitar depois de três dias.
Em rigor de objetividade, não
era a primeira vez que Jesus tratava de sua futura Paixão. De maneira
implícita, já a ela se referira anteriormente (por exemplo, em Mt 9, 15; 12,
40; Jo 2, 19-21; 3, 14), mas não com tanta clareza como agora. Sobretudo pelo
fato de todos estarem sob a forte impressão da figura de um Messias triunfal e
político, era indispensável usar de inteira franqueza. Ora, o momento não podia
ser mais propício para tal, pois o coração de cada um deles estava pervadido
pela consideração da divindade do Mestre. Sem embargo, essa revelação deve ter
sido surpreendente, por isso mesmo representando uma excelente ocasião para
introduzi-los nas perspectivas de sua morte. A divindade de Nosso Senhor
permaneceria como forte lembrança no fundo de suas almas, apesar de estar, nas
aparências, mais do que invisível, destruída. Sobretudo, o fato de ter sido
prevista com tantos detalhes, como consta no presente versículo, constituía um
auxílio à virtude da Fé e afastava qualquer resquício de escândalo.
Compreende-se que São Paulo ensine que sem a Ressurreição, nossa fé seria vã (1
Cor 15, 14).
Os primeiros a meditarem na Paixão
Os Apóstolos foram muito
privilegiados também a respeito disso. Somente eles e a Santíssima Virgem
puderam meditar sobre as ignomínias e tormentos pelos quais iria passar o
Salvador, antes mesmo de se terem estes verificado. Foram eles os primeiros
convidados a se beneficiar das grandezas da misericórdia divina, de um Deus que
se encarna e morre por amor a cada um de nós. Quanta consolação, graças e
forças estavam à disposição deles, a partir dessa revelação!
Aliança entre justiça e misericórdia
Jesus afirma a necessidade de
sua morte, que seria injustamente imposta pelo Sinédrio. Por desígnios
inimagináveis, o Pai havia determinado, desde toda a eternidade, a aliança
entre a mais severa justiça e a mais afetuosa misericórdia. Para salvar-nos,
não hesitou em nos dar seu próprio Filho e, entretanto, ao considerar os
direitos de sua justiça, exigiu desse Filho muito amado a pior das mortes.
Nosso Senhor sofre enquanto
filho do Homem e, por ser Filho de Deus, nos salva pelo oferecimento de seus
tormentos. Sua humanidade está hipostaticamente unida à natureza divina, e por
isso sua Paixão tem mérito infinito. Em função dessas duas naturezas unidas
numa pessoa divina, Jesus repara a desobediência de nossos primeiros pais,
assim como os pecados de toda humanidade. Ele é a cabeça e o primogênito dos
homens e, assim, acaba por constituir uma nova geração de resgatados e
regenerados, pela força de seu Preciosíssimo Sangue. Esse é o mais fino fundo
da proposta que Jesus faz aos Apóstolos, ao lhes revelar sua morte, conforme
diria, mais tarde, São Paulo: “O primeiro homem formado da terra, é terreno; o
segundo homem, vindo do Céu, é celeste” (1 Cor 15, 47). Era-lhes indispensável
renunciar ao velho Adão, originado do barro, para se entregarem ao Novo Adão,
descido dos Céus.
O amor não se contenta com
pouco. Ora, o amor de Jesus é infinito e, por isso, deseja a plenitude de sua
entrega às dores, à rejeição das mais altas autoridades eclesiásticas, à morte
e ao sepultamento. Que maiores provas de amor, a Deus e à humanidade decaída,
poderiam ser dadas?
Por fim, eis uma revelação que
anula qualquer possibilidade de escândalo proveniente da crucifixão: “Que
ressuscitasse depois de três dias”. É o penhor de nossa própria ressurreição. A
morte, limite máximo do poder do mundo, é o seu termo implacável, mas o poder
de Jesus é eterno e, depois de sofrermos e morrermos por Ele, ressuscitaremos
para eternamente reinarmos com Ele.
Pedro repreende Jesus...
32 Ele dizia isso abertamente. Então Pedro tomou Jesus à parte e começou
a repreendê-lo.
Há um leque de interpretações a
propósito deste episódio, desde as de autores calvinistas de mau espírito, como
refere Maldonado, até as de santos e doutores. Para bem entendê-lo, devemos
levar em conta a falta de conhecimento dos Apóstolos sobre a Paixão de Jesus.
De fato, logo depois de ter proclamado a filiação divina do Mestre, não era
nada fácil a Pedro ter de admitir a necessidade de sua condenação e morte, por
mais que se falasse em ressurreição.
Realmente, nesta cena, se bem que
não tenha sido Pedro quem falou, mas Simão, o filho de Jonas, não se pode negar
que o tenha feito com enorme manifestação de benquerença. Os bons autores
ressaltam o caráter afetuoso do gesto de Pedro. São Jerônimo, por exemplo,
aponta essa circunstância, mostrando que Pedro pode ter errado “no sentido”,
mas não no afeto (2). É nessa mesma linha que Beda explica: “Disse isso, levado
por seu afeto e bons desejos, como se quisesse dizer: Isso não pode ser! E os meus
ouvidos se recusam a ouvir que o Filho de Deus há de ser morto” (3).
Jesus admoesta Pedro
33 Jesus voltou-se, olhou para os discípulos e repreendeu a Pedro,
dizendo: “Vai para longe de mim, Satanás! Tu não pensas como Deus, e sim como
os homens”.
A própria dramaticidade
empregada pelo Divino Mestre, nessa reprimenda, é didática, pois, assim, melhor
conformou a mentalidade dos Apóstolos a um messianismo redentor através da dor.
Essa é a opinião de São João Crisóstomo: “Como é que São Pedro, tendo sido
favorecido por uma revelação de Deus, caiu tão rápido e perdeu sua
estabilidade? Diremos que não é motivo de espanto ele ignorar isso. Sabia por
revelação que Cristo era Filho de Deus vivo, mas ainda não lhe tinha sido
revelado o mistério da Cruz e da Ressurreição. [Jesus] então, para manifestar
ser conveniente que Ele chegasse até a Paixão, repreendeu Pedro” (4).
E por que Jesus chama Pedro de
Satanás? Assim responde Fr. Manuel de Tuya OP: “Naturalmente, não é que Pedro o
fosse, nem que Satanás o influenciasse (1Jo 13,2), mas sim porque sua afirmação
era digna da missão de Satanás, a qual consistia em desfazer a autêntica obra
messiânica, o que já havia pretendido fazer nas ‘tentações’ do deserto. Por
isso, a sugestão de Pedro a Jesus, que surge transbordante de afeto, é para Ele
‘escândalo’: tropeço, obstáculo, pois, a segui-la, seria boicotada a obra
messiânica do Pai: o messianismo espiritual de morte de cruz. Pedro, com isso,
não olhava ‘as coisas de Deus, mas sim as humanas’ (Mt- Mc)” (5).
IV – As condições para seguir Cristo
34 Então chamou a multidão com seus discípulos e disse: “Se alguém me
quer seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e me siga. 35 Pois, quem
quiser salvar a sua vida, vai perdê-la; mas, quem perder a sua vida por causa
de mim e do Evangelho, vai salvá-la”.
Esta afirmação tão categórica
exige de nossa parte uma especial análise e degustação, por ser repetida,
ademais, nos outros Evangelhos (cf. Mt 10, 38-39; Lc 17, 33; Jo 12, 25). Aqui
se encontram as condições para sermos verdadeiros discípulos de Cristo. 1.
1. “Se alguém me quer seguir”: depende de nossa livre
vontade. Esperar por uma graça que realize em nós a plenitude de nossa
salvação, sem o menor concurso de nossa vontade, é confundir Redenção com
Criação, ou a vida eterna com a natural. Esse convite, evidentemente, deve
receber uma resposta afirmativa de nossa parte. E é indispensável que seja
fervorosa, pertinaz e contínua. Ou, por outra, não podemos nos esquecer um só
segundo dessa determinação.
2. “renuncie a si mesmo” — A origem de todos
os pecados encontra-se no amor desordenado a nós mesmos, em detrimento da
verdadeira caridade. E o melhor remédio para essa terrível enfermidade é essa
renúncia a nós mesmos, para encontrar-nos em Deus. Seu primeiro grau consiste
no horror ao pecado mortal, preferindo morrer a consentir nessa aversão a Deus.
O segundo diz respeito ao pecado venial consciente e deliberado. O terceiro
incide sobre as imperfeições e o amor próprio, tão sorrateiro em imiscuir-se
até na prática das virtudes. Ao se progredir neste último grau, maior se torna
nossa liberdade interior, como também o gozo da paz e de consolações. Quem vive
no oposto a esses três graus, ou não entendeu a grandeza deste convite, ou
conscientemente o recusou.
3. “...tome a sua cruz ...” — Há cruzes e cruzes! As
extraordinárias se apresentam diante de nós em épocas de perseguição religiosa.
São os suplícios e a própria morte. Devemos enfrentá-los tal qual o fizeram
Jesus e todos os mártires, jamais renegando a nossa fé.
Outras haverá que são comuns a
todos os tempos. Boa parte delas não são procuradas por nós, mas indesejadas,
como por exemplo, as doenças, as debilidades da ancianidade, os rigores do
clima, etc. Outras, ainda, são oriundas do acaso: as perdas financeiras, as
desgraças, os contratempos, a pobreza, a incompreensão e o ódio gratuito da
parte dos outros, perseguições, injustiças. Às vezes, são os efeitos do nosso
próprio caráter, temperamento, inclinações, etc.
Como são numerosas as cruzes
que surgem ao longo de nossa vida!... Não as podemos evitar; pelo contrário,
temos obrigação de carregá-las. E a experiência nos mostra como elas se tornam
mais pesadas sobre nossos ombros quando as conduzimos entre choramingos e
lamúrias, ou, pior ainda, se contra elas nos revoltamos. Ademais, nestes casos
diminuímos, ou até perdemos, os correspondentes méritos.
Por fim, há também as cruzes
escolhidas livremente por nós. Abraçar a via do matrimônio, ou a de uma
comunidade religiosa, ou ainda a de leigo solteiro vivendo cristãmente no
mundo, significa compreender e desejar todos os sofrimentos que são correlatos
a cada situação. O cumprimento perfeito de cada uma das exigências do
respectivo estado de vida, a subordinação das paixões, o freio dos caprichos, a
privação destas ou daquelas comodidades, etc., constituem um campo florido de
cruzes, inerentes ao caminho eleito por nossa deliberação. Sem contar a aridez,
o tédio, o desgosto que de tempos em tempos nos assaltam ao longo da estrada
percorrida por nós, e sem volta atrás. Mas se nossa decisão foi consciente e,
sobretudo, se teve origem num sopro do Espírito Santo, jamais devemos nos
arrepender. Muito pelo contrário, enchamo-nos de ânimo e até de entusiasmo,
dando passos firmes rumo à meta final de nossa salvação.
4. “... e siga-Me” — Se empregássemos o melhor de nossos esforços,
praticando os maiores sacrifícios para carregar nossa cruz, mas num caminho
diferente do traçado por Jesus, não bastaria! É preciso abraçar a própria cruz,
“por Ele, com Ele e n’Ele”. Na contemplação dos padecimentos da Paixão de
Cristo, encontrarei as energias para carregar minha própria cruz.
Quanto a perder ou salvar a
vida, comenta o Pe. Andrés Fernández Truyols SJ: “O que o Mestre quer gravar no
coração de seus ouvintes é que devemos estar dispostos a passar por tudo, até
mesmo a morte, desde que seja para salvar a alma. Porque de nada adianta ao
homem ganhar o mundo todo se, no fim, vier a perder a sua alma, ou seja, se não
alcançar a salvação eterna” (6).
1 ) Cf. Hom. 54 in Mt, in Obras completas, BAC,
Madrid, 1956, v. II, p. 137.
2 ) Cf. ML, 26, 103.
3 ) Apud São Tomás de Aquino,
Catena Aurea, in Mc.
4 ) Hom. 55 sobre Mt 3, 22 -23.
5 ) Bíblia Comentada, BAC,
Madrid, 1964, vol. II, p. 385.
6 ) Vida de Nuestro Señor
Jesucristo, BAC, Madrid, 1954, vol. III, p. 369.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Escreva seus comentarios e sugerencias