III – Só os pobres de espírito entrarão no reino dos céus
23 Jesus então olhou ao redor e
disse aos discípulos: “Como é difícil para os ricos entrar no Reino de Deus!” 24Os
discípulos se admiravam com estas palavras, mas ele disse de novo: “Meus
filhos, como é difícil entrar no Reino de Deus! 25É mais fácil um camelo passar
pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus!”
Neste último versículo, Nosso Senhor Se serve de um
provérbio utilizado pelos judeus para expressar algo extremamente difícil e
quase impossível. Recorre propositalmente a essa comparação na aparência
exagerada — “é mais fácil passar o camelo pelo buraco de uma agulha...” — para
mostrar a gravidade da “desordem própria dessa paixão, consistente em apegar o
coração à terra, endurecê-lo no que diz respeito a Deus e ao próximo, torná-lo
insensível às coisas do Céu”.12
Para bem analisar essas
palavras de Jesus, é preciso começar por evitar a interpretação errada, segundo
a qual todo rico estaria condenado e todo pobre, ao contrário, estaria no
caminho certo para a salvação. Pois o Mestre não se refere aqui à riqueza
material, mas sim ao desvio que leva o homem a depositar sua confiança nos bens
terrenos, antepondo-os aos bens superiores.
Sobre este particular,
esclarece Fillion: “Não se trata aqui dos ricos enquanto tais, pois a posse dos
bens temporais não é, de si, um estado de pecado nem causa de condenação,
embora ofereça sérios perigos. Jesus não exclui de Seu Reino senão aqueles
ricos que se apegam às suas riquezas e nelas põem — digamos assim — sua
finalidade e todo o seu afeto”.13
Como valer-se da riqueza para alcançar a vida eterna
A finalidade última do homem
está no Céu. O dinheiro e as riquezas podem ser apenas meios — efêmeros,
instáveis e dispensáveis — para alcançar esse supremo fim. Assim, é legítimo
acumular bens e deles usufruir, desde que sejam adquiridos de forma lícita e
seu uso esteja subordinado à glória de Deus.
Nesta linha se insere o
comentário feito por São Clemente de Alexandria a esta passagem do Evangelho:
“A parábola ensina aos ricos que não devem descuidar-se de sua salvação eterna,
como se de antemão dela se desesperassem, não que seja preciso jogar ao mar a
riqueza, nem condená-la como insidiosa e inimiga da vida eterna. O que importa
é saber qual a maneira de valer-se dela para possuir a vida eterna”.14
Com efeito, quantos reis,
príncipes ou simples pessoas abastadas que, administrando o que tinham com
inteiro desprendimento, encontram-se hoje no Céu como atesta o catálogo dos
santos?
Por outro lado, quantos pobres
há que se recusam a praticar a virtude! Bem fariam estes em ouvir a conclamação
de São Cesário de Arles: “Ricos e pobres, escutai o que diz Cristo. Falo ao
povo de Deus. Em vossa maioria, sois pobres ou deveis aprender a sê-lo. No
entanto, escutai, pois podemos inclusive nos vangloriarmos de ser pobres; tende
cuidado com a soberba, não aconteça que os ricos humildes vos superem;
acautelai-vos contra a impiedade, não aconteça que os ricos piedosos vos deixem
para trás”.15
O problema não está, portanto,
na quantidade de bens materiais possuídos por alguém, mas no uso que deles se
faz. Para poder entrar no Reino dos Céus, é preciso não ter apego algum a eles.
A pobreza de espírito consiste em nos compenetrarmos que somos criaturas
contingentes, que dependem de Deus. Pode-se lutar para se ter recursos, mas com
vistas a espalhar o Reino de Deus, e fazer com que Ele reine de fato em todos
os corações.
Por nosso simples esforço, jamais conquistaremos o Céu
26Eles ficaram muito espantados ao ouvirem isso, e perguntavam uns aos
outros: “Então, quem pode ser salvo?”27Jesus olhou para eles e disse: “Para os
homens isso é impossível, mas não para Deus. Para Deus tudo é possível”.
Não é de estranhar o espanto
dos discípulos perante a força da comparação usada por Nosso Senhor. Mas essa
mesma perplexidade os leva a considerar melhor a própria contingência e a fixar
no espírito o duplo ensinamento do Divino Mestre: pelos seus simples esforços,
o homem jamais conseguirá conquistar o Céu; mas aquilo que para o homem é
impossível, não o é para Deus.
Deus é onipotente, ama-nos
desde toda a eternidade e está desejoso de abrir-nos as portas do Céu. Para
nele entrar, é preciso apenas que sejamos humildes e reconheçamos nossas
misérias, pedindo o auxílio divino, sem desanimar.
A salvação, como a própria
vida, é uma dádiva de Deus. É Sua graça que nos dá forças para praticar os
Mandamentos e nos torna dignos de entrar no Seu Reino. Não façamos, pois, como
o moço rico, mas confiemos humildemente na Sua bondade, como ensina São Paulo
na segunda leitura deste domingo: “Aproximemo-nos confiadamente do trono da
graça, a fim de alcançar misericórdia e achar a graça de um auxílio oportuno”
(Hb 4, 16).
Ainda sobre estes dois
versículos, convém notar, com Maldonado, que a pergunta “quem pode então
salvar-se?”, os Apóstolos a fizeram “a si próprios”, isto é, somente eles
puderam ouvi-la. Cristo, entretanto, olhou para eles e deu-lhes a resposta,
mostrando assim que “lia seus pensamentos e ouvia suas conversas, por mais
reservadas que fossem”.16
O cêntuplo já neste mundo
28 Pedro então começou a dizer-lhe: 'Eis que nós deixamos tudo e te
seguimos'. 29Respondeu Jesus: 'Em verdade vos digo, quem tiver deixado
casa, irmãos, irmãs, mãe, pai, filhos,
campos, por causa de mim e do Evangelho, 30receberá cem vezes mais agora,
durante esta vida - casa, irmãos, irmãs, mães, filhos e campos, com
perseguições - e, no mundo futuro, a vida eterna.
Talvez pelo fato de se sentirem
apanhados, São Pedro, impulsivo porta-voz de todas as perplexidades dos
Apóstolos, formula uma frase que, no dizer de Lagrange, “resume todo o episódio
precedente, do ponto de vista dos discípulos”.17
Segundo Maldonado — o qual
segue a opinião de Orígenes, São Jerônimo e São João Crisóstomo — quis Pedro,
com sua afirmação, lembrar a Cristo o fato de terem os Apóstolos já cumprido
anteriormente aquilo que era agora pedido ao jovem rico.18 No mesmo sentido se
pronuncia Lagrange, observando que a afirmação do Príncipe dos Apóstolos foi
feita “com uma certa satisfação que parece solicitar uma aprovação”.19
Mas caberia perguntar, com
Maldonado: “Por que, então, duvidava? Por que não creu firmemente que também
para eles havia um tesouro no Céu?”. Ao que ele próprio responde: “Talvez
porque pensassem que Cristo prometia tão grande recompensa àquele jovem por
causa das muitas riquezas que este devia abandonar; ora, como os Apóstolos
possuíam apenas coisas de pouco valor, esperavam receber algo, sim, mas não se
atreviam a esperar tanto; por isso perguntam como e quanto será”.20
No fundo da afirmação de Pedro
havia uma desconfiança e uma objeção. Jesus, entretanto, não os repreende.
Sendo a Bondade em essência, Ele os trata com carinho e acrescenta, ao prêmio
da vida eterna no Céu, uma recompensa ainda aqui na terra.
Comentam certos autores que o
Senhor, fazendo essa promessa, quis afirmar que quem por causa dEle deixar os
bens desta terra, receberá em troca bens de valor infinito. Ou seja: quem por
Ele abandonar aquilo que é “carnal”, receberá em troca o prêmio do bem
“espiritual”.
Parece-nos, entretanto, que as
palavras do versículo 30 — “já neste século” — tornam claro o caráter terreno
dessa recompensa, cuja efetivação concreta na era apostólica é assim assinalada
por Fillion: “Nos primórdios da Igreja, quando tão amiúde os neófitos
precisavam romper os mais estreitos laços de família para se alistarem no
serviço de Cristo, encontravam eles na grande comunidade cristã irmãos e irmãs,
pais e mães que lhes suavizavam os padecimentos causados por uma violenta
separação e enchiam de consolo seus doloridos corações”.21
Sob uma perspectiva mais
atemporal, assinala o padre Didon que o Espírito divino “não só traz a todos
aqueles que invisivelmente O recebem o antegozo dos bens celestiais, eternos,
infinitos, mas, além disso, exalta ainda a vida deste mundo, aumenta seus
recursos, harmoniza as suas energias, transfigura todos os seus atos. Entre os
seres eleitos que este Espírito aproxima, formam-se laços mais íntimos, mais
profundos, mais doces que entre aqueles que são parentes do mesmo sangue”.22
E o padre Fernández Truyols,
referindo-se especificamente às pessoas que correspondem à vocação religiosa e
fazem a entrega completa de si mesmas, comenta: “O sacrifício dos bens terrenos
terá sua recompensa já nesta vida. E não só em vantagens exclusivamente
espirituais, mas também em bens temporais, embora num plano superior ao
puramente material. Quem se despoja de tudo para seguir Cristo Jesus receberá
da Divina Providência, quiçá com acréscimo e superabundantemente, o quanto
necessitar para sua subsistência. Deixa seu pai e sua mãe, e Deus dá-lhe pais e
mães que o adotam como um filho muito querido. Donzelas na flor da juventude
renunciam à maternidade, e Deus as faz mães não de alguns, mas de inumeráveis
filhos, nos quais derramam todas as ternuras de um coração verdadeiramente
maternal”.23
IV – Uma pergunta decisiva para nossa vida espiritual
Somos todos “participantes da
vocação celestial” (Hb 3, 1). Contudo, enquanto Jesus nos chama a segui-Lo a
caminho do Reino de Deus, as nossas tendências desordenadas em consequência do
pecado original nos arrastam para aquilo que é inferior.
Exemplo paradigmático dessa
dicotomia é o episódio do Evangelho que acabamos de comentar. O jovem rico era
bom. Praticava os Mandamentos a ponto de Nosso Senhor o fitar com amor. Quando,
porém, o Mestre o convidou a ser um dos Seus discípulos, afastou-se triste e
abatido, pois sempre que alguém recusa um convite da graça, é pervadido pela
tristeza e pelo remorso. O padre Duquesne descreve com notável clareza essa
lamentável situação de alma: “Ninguém renuncia à sua vocação sem uma dor de
coração, sem uma secreta tristeza que increpa sua covardia, tristeza que
difunde amargura ao longo de todo o curso da vida e aumenta na hora da
morte”.24
A liturgia deste domingo nos
coloca, assim, diante de uma pergunta decisiva para nossa vida espiritual: a
que distância se encontra nossa alma da atitude do moço rico? Se Cristo nos
convidasse hoje a segui-Lo, como Lhe responderíamos? Bradaríamos com alegria,
como Samuel: “Præsto sum” (I Sm 3, 16) – “Eis-me aqui”? Ou, tomados pela
tristeza, recusaríamos o convite de nosso Salvador?
Quando chegar esse chamado — e
ele pode vir em hora inesperada —, seremos muito mais capazes de dar resposta
afirmativa se nos tivermos preparado previamente. Para isso, é necessário que,
em todas as circunstâncias da vida, nosso coração esteja à procura do Divino
Mestre, combatendo o apego aos bens terrenos, aumentando sem cessar o fogo do
amor a Deus e fazendo a pergunta de São Paulo no caminho de Damasco: “Senhor,
que quereis que eu faça?” (At 9, 6).
A isto nos incita o Príncipe
dos Apóstolos: “Irmãos, cuidai cada vez mais em assegurar a vossa vocação e
eleição. Procedendo deste modo, não tropeçareis jamais. Assim vos será aberta
largamente a entrada no Reino eterno de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo”
(II Pd 1, 10-11).
1AQUINO, São Tomás de. Suma
Teológica. III q. 24, a. 1, resp. “A predestinação propriamente dita é a eterna
pré-ordenação divina com relação às coisas que, pela graça de Deus, devem
realizar-se no tempo. Ora, pela graça da união, Deus fez com que, no tempo, o
homem fosse Deus e Deus fosse homem. E não se pode afirmar que Deus não tenha
pré-ordenado desde a eternidade que Ele faria isso no tempo, porque daí se
seguiria que algo de novo poderia acontecer para o entendimento divino. Por
isso é preciso afirmar que a união das naturezas na pessoa de Cristo entra na
predestinação eterna de Deus”.
2 JOÃO PAULO II. Encíclica
Redemptoris Mater, n. 8. “No mistério de Cristo, Maria está presente já ‘antes
da criação do mundo’, como aquela a quem o Pai ‘escolheu’ para Mãe do seu Filho
na Encarnação — e, conjuntamente ao Pai, escolheu-a também o Filho, confiando-a
eternamente ao Espírito de santidade. Maria está unida a Cristo, de um modo
absolutamente especial e excepcional; e é amada neste ‘Filho muito amado’ desde
toda a eternidade, neste Filho consubstancial ao Pai, no qual se concentra toda
‘a magnificência da graça’”.
3 DIDON, OP, Pe. Henri. Jesus Christo. Porto:
Chardron, 1895, p. 381.
4 LAGRANGE, OP, Pe. M.J. Évangile selon Saint Marc. Paris:
Lecoffre, 1929, p. 264.
5 FILLION, Louis-Claude. Vida
de Nuestro Señor Jesucristo. Madrid: Rialp, v. 2, p. 429.
6 DUQUESNE. L’Évangile médité.
Paris-Lyon: Perisse Frères, 1849, p. 266.
7 SAN EFRÉN DE NISIBE,
Comentario al Diatessaron, 15, 210 apud ODEN, Thomas C. e HALL, Cristopher A.
La Biblia comentada por los Padres de la Iglesia – Nuevo Testamento 2 San
Marcos. Madrid: Ciudad Nueva,
2000, p. 199.
8 DUQUESNE. Op. cit., p. 267.
9 FILLION. Op. cit., p. 431.
10 MALDONADO, SJ, Pe. Juan de.
Comentarios a los cuatro evangelios – I Evangelio de San Mateo. Madrid: BAC,
1950, p. 692.
11 LAGRANGE, OP. Op. cit., p. 266.
12 DUQUESNE. Op. cit., p. 273.
13 FILLION. Op. cit., p. 431.
14 CLEMENTE DE ALEJANDRÍA. Quis
dives salvetur? c. XXVII.
15 CESÁREO DE ARLES, Sermo 153,
156 apud ODEN e HALL. Op. cit., p. 202.
16 MALDONADO, SJ. Op. cit., p.
695.
17 LAGRANGE, OP. Op. cit., p.
271.
18 Cf. MALDONADO, SJ. Op. cit., p. 695.
19 LAGRANGE, OP. Op. cit., p. 271.
20 MALDONADO, SJ. Op. cit., p.
695.
21 FILLION. Op. cit., p. 433.
22 DIDON, OP. Op. cit., p. 385.
23 FERNÁNDEZ TRUYOLS, SJ, Andrés. Vida de
Nuestro Señor Jesucristo. Madrid:
BAC, 1954, p. 482.
24 DUQUESNE. Op. cit., p.
270-271.
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